AS TRÊS IMAGENS DE MINHA MÃE E UMA LEMBRANCA IMPOSSIVEL

AS TRÊS IMAGENS DE MINHA MÃE E UMA LEMBRANÇA IMPOSSÍVEL 

1.
A última vez que vi minha mãe viva foi no oitavo andar do Hospital Ernesto Dorneles. Era um domingo de manhã e ela tinha baixado com graves problemas circulatórios. Os médicos alertaram para a gravidade. Comum acordo entre os irmãos concluímos: ela não pode mais sofrer. Nada de entubar, nada de alimentação artificial, nada que a tecnologia prolongasse a vida além do caminho natural. O fatal momento há muito temido e esperado, o momento final, e a decisão pela não intervenção fora uma mera formalidade. Nos sentimos tentados a tomar com naturalidade o destino que se desenhava. Aquele domingo,  minha mãe acordou mais cedo. Minha irmã e ela rezaram juntas e falaram tantas coisas que eu não sei nem nunca saberei, alheio a cumplicidade absoluta. Quando o padre passou para dar uma benção minha mãe perguntou desentendida, quem era aquele? O que ele quer aqui? Rezar deve ter respondido minha irmã. Não estava ali portanto não sei o que de fato ocorreu. 
Cheguei perto das onze. Era um dia de sol, céu azul, um pouco frio, mas tudo que se espera de agradável num domingo parecia convergir naquele próximo meio-dia. Fui de bicicleta e a deixei no estacionamento atrás do hospital. Corredores tortuosos me levaram ao elevador e subi até o andar. Ela estava deitada com o rosto virado para a janela que estava atrás de minha cabeça. Eu na contraluz e ela iluminada pelo sol. Eu olhei distraído seus olhos e por um momento duvidei que fosse minha mãe. O cabelo era o dela, a voz, as mãos marcadas pelas artrite e o cabelo limpo, mas levemente suado, grudava no pescoço. Tudo parecia ela. Mas seu olhar através de seus olhos me convidaram para  uma viagem na qual embarcaríamos quatorze horas depois. Meu olhar tocou sua retina, seus tons azulados, azul de doer, sua pálpebra triste e tudo estava ali como sempre estivera. Porém ela me olhava como se estivesse me vendo através de uma janela distante. Era como se o seu olhar se formasse muito atrás dos olhos, em algum lugar distante entre a retina e a vida psíquica e tal distância desvelaram um brilho ausente. Sua voz além das palavras eram uma  melodia triste e conformada de quem aceita de bom grado o seu destino. Ela que lutou para não morrer antes de meu pai, doente e pendurado nas máquinas de sobrevivência, porém o velho estoico não dava sinal de se entregar, pendurado no oxigênio e na teimosia absoluta. Impasse que obrigou minha mãe,  em sua bondade poética e sarcástica, a abrir caminho para o mais além da vida e mergulhar no infinito antes do velho. No seus olhos havia a luz do destino. Na pupila o desenho do irremediável e ela sabia.

2.
            O telefone tocou de madrugada.  Acontecera, já tinha acontecido. A voz no outro lado da linha apenas confirma. Minha mãe morrera. Pensei em escrever alguma coisa, registrar aquele momento, gritar, chorar, mas não tinha nada dentro de mim. Não era dor, não era raiva, não era nada. Era o nada. Dirigi o carro através do vazio da cidade madrugando e não lembro ter cruzado com alma viva. Improvável que tenha ocorrido assim, mas era o que a minha percepção me dizia. Encontrei meus irmãos no corredor. Nos abraçamos em silêncio, não lembro de nada que se tenha dito. O grande silêncio acompanhava minha sombra. A mãe morreu sem incomodar, durante a troca da enfermagem, hora voluntariamente escolhida para que não houvesse nenhuma tentativa de traze-la de volta. Era a viagem para o qual se preparara sempre. Lembrei de um dialogo entre meu pai e ela no almoço quando ainda se almoçava. Revi meu pai eufórico, maníaco em sua obstinação, dizendo que a vida era muito boa, mas muito curta. Ela, a mãe, sem levantar os olhos da sopa, murmura que da sua parte achava a vida muito longa. Eram feitos de contrastes.
Então, no momento fatal, me perguntaram se eu queria ver a mãe. Por um momento pensei em vê-la ali de pé, jovial, por um instante a pergunta a trouxe de volta uma realidade fantasma devolvendo-a a vida na sua vitalidade. Ilusões instantâneas. Alguém falou então que seu corpo estava no quarto ao lado e voltei a mim. E abri a porta e pela primeira vez na vida vi minha mãe morta. 
Não sei se foi a primeira, mas a primeira oficial. 
Passei a mão em sua testa que parecia dormir. Ainda restava um calor na sua pele sedosa, embora já um pouco fria. Olhos fechado e cabelo puxado para trás, como que penteado a mão, no improviso da hora, cabelo fino, grudado na cabeça como quando ela suava muito. Ela parecia ainda cansada. Já era morta, mas que não terminara de viver. Marcas de esforço restavam no corpo.  

3. 
            Fomos encarregados de passar no cartório resolver a papelada, a burocracia da morte, enquanto funerária pragmática levou minha mãe cansada e suada em cima de uma maca fúnebre. O vazio da carne vazia. A madrugada é boa para os mortos e para os que velam pois é feita de penumbras.  Almas passeiam.
Liberto da papelada fui para casa e vi a luz que, durante o dia e nos anos seguintes, minha irmã sustentou ser uma mensagem da mãe, agora luz. Embora eu não tenha acreditado e, por Deus, até hoje duvido do que vi. Sentado na sala um luz cruzou a janela formando uma linha improvável e imaginei. Não afirmo o que vi, pois não creio, duvidar do sentidos mantem a lucidez, mesmo hoje sigo não acreditando no que não existe. Invento, isso sim é a minha religião, inventar a vida. 

4.
Minha mãe já namorava a morte e dela tivera um beijo quase fatal no mesmo domingo em que nasci. Uma hemorragia depois do parto, mais de cinquenta anos atrás produziu algo que os médicos chamaram de choque hipovolêmico. Perda excessiva de sangue, hemorragia incontrolável levando a uma queda abrupta da pressão arterial. Resultando palidez, fraqueza e perda da consciência. Próximo capitulo seria a morte. Antes da fatalidade, que não ocorreu, houve uma confusão mental e minha mãe começou a cantar, um canto antigo e ingênuo sobre o efeito da sombra da morte. Estavam ainda na sala de parto a  mãe e eu o recém parido, ambos entre a vida e a morte. Então surpreendendo, a mãe articulou uma canção triste de despedida. As enfermeiras saíram do quarto chorando, insuportável o modo doce como ela encarava o destino. A emoção tomou conta da sala de parto. Enfermeiras e médicos tentam salvar a vida da mãe, mas eram tomadas pela emoção e, a duros esforços, controlavam as lágrimas para realizar os procedimentos de manutenção da vida. A contraparte da turbulência era eu,  o menino recém nascido, plácido e ausente no canto da sala, sem choro num eterno abandono temporário. O contraste entre o tumulto da vida-morte de minha mãe e a calma recém nascida de uma lembrança impossível forjou a imensidão de um universo conjugado de trevas e luz. Uma tatuagem invisível. Eu respirando,  ela lutando por ar. Nascido no vazio, fui atendido e levado ao banho por uma tia caridosa, carinhosa que me acolheu, relíquias da voz materna. Primeiro banho mais de quatro horas depois parto. 
Nos meus aniversários tenho um prazer especial em tomar longos banhos ao despertar.

5.
Minha tarefa era liberar o corpo de minha mãe. Havíamos escolhido o caixão na madrugada e eu encarregado de pagar as custas e verificar que tudo estivesse bem. No escritório da funerária, ansioso, assinei os sete cheques como se fosse uma máquina de assinaturas. Não sentia minhas mãos, minhas pernas caminham sozinhas, minha cabeça voava autônoma. Nada dentro do meu estômago. Semblante inexpressivo. Entrei na sala. 
Imaginei vê-la na sala onde se maquiam os mortos, mas não era ali que a encontraria. Me levaram para a garagem da funerária. Havia carros fúnebres estacionado no intestino do negócio chamado morte. Duas portas fechadas ao fundo e uma mesa que até hoje me dão a impressão de improvisada. Sobre a mesa encontro a esquife e dentro o corpo de minha mãe. A grande cena que eu antevira e esperara toda uma vida. Minha mãe estava linda. Calma na sua morte final.  Maquiada parecia dormir um sono justo, os olhos fechados como convém os que atravessam o portal, rosto em conforme e combinando com o vestido azul. Olhos azuis para sempre fechados e o azul turquesa da seda delicada como a pele,  era lindo de doer e doía. Mas eu fiquei feliz. Pois minha mãe estava bela, linda e calma. E finalmente eu tivera meu momento com ela. 
Então pude chorar. 

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