NARCISISMO E CULTURA (palestra apresentada em Caxias do Sul)

NARCISISMO E CULTURA


Júlio Conte

CICLO DASD AGUAS
do obscuro das aguas uterinas para o tenebroso mergulho no lago final

            Convido a vocês imaginarem a seguinte situação. O mundo antes da vida. Eletricidade, raios, trovões, tempestades, lama, terra, pedra, calor, frio, vento, água, a química do planeta em absoluta convulsão, uma gigantesca turbulência e, de repente, algo se condensa numa sopa primordial. Um caldo de aminoácidos submetido a radiações e alterações cíclicas do clima forma pequenos agrupamentos moleculares que vão originar a vida.
O primeiro filosofo, Anaximandro, surpreendentemente vai pensar por exercício absoluto da intuição e do pensamento que a vida começa na água. 
Sigam comigo. Neste caldo marítimo se formam seres microscópicos, alguns  instáveis se  se produzem e se desarranjam, a vida se faz e desfaz quase no mesmo instante em que é criada. Ambiente e circunstâncias viabilizam algumas formas e desagregam. Gradativamente a circunstância ambiental externa que sustenta o liquido primordial é incorporado para dentro de um ser vivo, que devido as estabilidade,  protege a existência e manutenção da vida. Este liquido persiste no humano dentro do útero e na constituição do sêmen.
Então da turbulência do ser se estabiliza numa imagem. O mar tenebroso se acalma e temos o espelho das águas.  E a vida em evolução.
Narciso e Édipo formam um núcleo narrativo sobre o qual se sustenta a clinica psicanalítica. Narciso, imagem estabilizada, frequenta o dia a dia dos nosso consultórios tanto quanto ou mais do que Édipo. Destaco o vinculo profundo que os une, no qual Narciso seria o investimento essencial, a contraparte emocional de Édipo enquanto Édipo seria resultado da evolução deste investimento, quase um tempo lacunar na ampla existência de Narciso antes de seu irremediável mergulho para dentro das águas de si mesmo. Ou seja, a morte fecha o circulo das águas, desde a origem da vida. O liquido primordial de onde advém a vida se dobra para dentro do corpo materno. Nesta evolução do ciclo das águas o que existe fora, vai para dentro do corpo, útero, continente que alberga o inicio da vida humana. Narciso refaz este percurso, em sua longa jornada vida afora, deste o germinar nas obscuras aguas uterinas até as tenebrosas águas além do ser. 
Narciso siderado em busca de uma estabilidade, na busca radical do objeto de amor e do ser essencial interno, serve com narrativa, sonho ancestral,  na qual a vida-morte é a ponte fundamental. Ali se trava o embate sem fim e talvez sem começo, cuja origem possivelmente se encontre no umbigo dos sonhos que Freud celebrizou como o mergulho no desconhecido.
O rastro deste trajeto é uma flor inebriante.
CICLO DAS FLORES
Para não dizer que não falei de flores
Narciso é uma flor. Flores, simbolicamente, carregam a beleza da transitoriedade. Sobre a Transitoriedade, Freud desenvolve um pensamento absolutamente genial sobre o narcisismo e o luto.
Mas justamente contra a turbulência e o transitório que Narciso se debate. Falemos um pouco de botânica. Trata-se de uma flor primaveril usada como um perfume e de onde se extrai um óleo que deve ungir o sujeito, em algumas culturas, antes de entrar em  templos para rezar, com intuito de enraizar o individuo.
Tem aroma inebriante, herbáceo, verde com notas altas doces, e tons misteriosos.  O Narciso também é um afrodisíaco suave e favorece processo meditativos que demandem  introspecção. Mas o que mais chama atenção é que Narciso tem uma pronunciada ação narcótica donde advém o nome. Este atributo narcótico deve ser usado com muito cuidado, pois é sedativo e hipnótico.

CICLO MITICO
três versões do mito
            O mito de Narciso tem três versões.
1)   OVIDIO:
É a mais conhecida. Narciso é filho do deus-rio chamado Cesifo com a ninfa Lírope. Tiveram uma gestação tumultuada pois Lírope não deseja ter o filho e não amava o deus-rio. Teve um parto cheio de apreensão e, para espanto, nasceu uma criança linda como nunca se viu antes. E como se sabe, a beleza tão intensa de um ser humano, um mortal, produz terror, espanto e inveja no mundo mítico. Ameaça a perfeição  dos Deuses. Tal beleza torna fácil para o sujeito incorrer numa desmedida, e como consequência despertar a Nêmeses, a inveja divina ou também conhecida como  a deusa da justiça distributiva. Ele pune a desmedida sempre que elas se apresentam.
      Lírope preocupada com a excessiva beleza de Narciso o levou ao oráculo e Tirésias disse que Narciso viveriam muito se não se visse. Sempre despertando paixões, permanecia no entanto insensível. Uma dela, Eco, apaixonou-se por Narciso e frente a indiferença foi definhando até restar apenas a voz que repete as ultimas palavras faladas. As demais ninfas foram a Nêmeses e  pediram justiça e então Narciso foi condenado a um amor impossível.
      O resto é bem conhecido, depois de uma caçada se aproxima do lago para beber e se apaixona pela imagem refletida e dali não pode mais sair.
O corpo se transforma numa flor amarela circundada por pétalas brancas.
Cabe destacar que o pai é um Deus-rio, agua corrente enquanto que a ninfa significa noiva, e uma referencias aos genitais femininos. As ninfas são espíritos, habitantes dos lagos, riachos, bosques e frequentemente habitam as margens dos rios e das águas.

2)   PAUSÂNIA:
Na versão de Pausânia a variante fala de uma irmã gêmea que morreu prematuramente. Narciso fica desolado e quando vê a imagem no lago pensar ser a irmã amada e dali não consegue mais sair.
3)   TEBANA:
Narciso segue tento uma beleza incomum sendo alvo de paixões de toda ordem. Desperta a paixão de um jovem chamado Amínias. Abordado, Narciso o rechaça e entrega para Amínias um punhal. Este supõe ser um recado e se mata. Mas antes de morrer invoca a maldição dos deuses.
O final é sempre o mesmo, aproximação do lago, apaixonamento pela  imagem e o suicídio mergulhando no lago.
Ali onde Nsarciso estava nasce a flor Narciso Poeticus e Narciso Serotinus.
As invariantes que aparecem no mito são a beleza funcionando como uma desmedida,  fascínio imóvel  frente a própria imagem.
Nas variantes do mito destaco a falta de amor da mãe, como fator de turbulência, a imagem da irmã gêmea, como elemento do auto-amor, o amigo apaixonado e o punhal. Elemento variáveis tem em comum a questão simbólica da bissexualidade e da paixão por si mesmo, o auto-amor. O punhal poderia ser a imagem do corte que restituiu, mas é a arma que mata.
Esta multiplicidade de versões torna Narciso uma narrativa complexa. Em sua narcose narcísica se realiza o mergulho para dentro de si, em direção as origens, refletem a impossibilidade de resignação e da elaboração do luto da perfeição perdida e um mergulho melancólico nas águas primitivas. Viés  inverso ao de Édipo o qual  direciona a flecha do tempo para o futuro, apontando o social, o mundo externo, o sair de casa, o suportar as leis e para as imagens paternas.
Direções opostas, Édipo e Narciso, um em busca da verdade externa e outro, indiferente ao social, busca as razões de ser no si mesmo, representado pela autoestima, pela persistência da onipotência no pensar e na busca tornar-se ele mesmo do objeto da própria libido.

CICLO DO PERSONAGEM
Cyrano vê nas águas a representação de Narciso
Em determinada passagem qual seja “Carta sobre a sombra que faziam as arvores sobre as aguas”, Cyrano de Berjerac enxerga no seu reflexo dentro das águas que contempla a história de Narciso. Do mesmo modo, Cyrano personagem conhecido por seu nariz imenso tão grande quanto a sua sensibilidade, nós nos  encontramos com  mito que se desenha cada vez que entramos num elevador. A imagem refletida nos interroga sobre nosso estado de espírito e sobre a direção que vamos. Parados examinamos nossa imagem enquanto o elevador sobe ou desce.  A contrastante questão que Cyrano se faz é:
-       Não será o reflexo tão real quanto o mundo.
Ou seja, será a imagem virtual tão real quanto a imagem real?  Tal interrogação nos remete a uma questão recorrente sobre o que é sonho ou o que é realidade, o que real e ou que virtual, o que estar acordado ou estar dormindo, o que é inconsciente e o que é consciente, mas acima de tudo, neste constante transito a interrogação  é onde a verdadeira vida se realiza.
Os sonhos humanos formam narrativas nas quais as vivencias são tão importantes quanto estar acordado e seria um ato autoritário estabelecer hierarquia sobre a prerrogativa reivindicada do ser.
Nos dias de hoje, talvez nunca nos defrontamos tanto e tão intensamente com estas questões. Em  amor nos tempos do virtual, what’s up, facebook e skipe, hologramas e o futuro, a interrogação que não cessa é o que mais real do que a realidade. O sonho paradoxalmente molda a realidade. E tomando o sonho como modelo e o mito com um sonho coletivo nos defrontamos uma confusão de imagens, mas que por servirem para confundir acabam esclarecendo o grau da complexidade.
O sonho seria nesta perspectiva o tecido reticular sobre o qual a realidade é embalada e transformada, sendo o espelho a contraparte emocional deste estranho-familiar desconhecido. O mito é o sonho individual aplicado ao senso comum.
E neste universo inebriante encontramos o espelho para a alma.
ESPELHOS
Sobre o espelho de Lacan, Winnicott e Lupicínio
Lacan em seu trabalho sobre a Fase do espelho dá conta de um corpo fragmentado.  O sujeito, segundo sua propriocepção, entende a si mesmo como um corpo fragmentado, aos pedaços, sensações de desarticulação.
Porém o bebê ao se defrontar com sua imagem refletida no espelho percebe-se mais integrado do que de fato esta. Somado a isso, o olhar da mãe. Ela sustenta a criança frente ao espelho e confere um jubilo jamais experimentado até então. A criança se vê, inteira, articulada, unida e vê ao seu lado a mãe que o observa.  O bebê se vendo, vendo a mãe que  vê o bebê.  Formando assim um triangulo entre a mãe, o bebê e a imagem virtual do bebê. O bebê vive uma ilusão que é algo mais do que ele é.
No bebê winicotiano o espelho se encontra na retina do olhar materno. Bebê se vê no olhar devolvido pela mãe e aquele tipo de espelho talvez seja o mais perto do paraíso que podemos chegar. Destino utópico o qual não temos acesso, a não ser por substitutos fugazes. Espelho são os olhos da mãe que olha o bebê. O bebê vê e descobre o que ele é, no olhar amoroso da mãe.
Lupicínio Rodrigues um dos maiores compositores do Brasil tem uma música que diz mais ou menos assim:
Reparem bem que quando ela fala
Ilumina mais a sala
Do que a luz do refletor

Aqui a fala é o espelho que se ilumina do desejo. A voz que cria a luz do mundo e depois conclui:
O mundo este grande espelho
Que me fez pensar assim
Ela tem o destino da lua
Pra todos que vivem na rua
Não vai viver só pra mim
O poeta especialista na decepção dos amores frustrados, pela dor de cotovelo,  tem que recorrer ao luto para voltar a viver. Reconhece o imperativo e abre mão do desejo amoroso.
Deste este corte, castração e luto, e consequentemente uma cesura, o corte-cicatriz  suportado é que faria o Narciso sair a caminhar pelo mundo na sua trajetória edípica.
Lupicínio deixa implícito a luta constante do sujeito frente suas perdas e a necessidade de seguir buscando objetos substitutivos.
Quando isso é insuportável, a estagnação e a morte.

CICLO FREUDIANO
sobre Freud e o conhecido
Freud escreveu a “Sobre o Narcisismo: Uma Introdução” para responder questões levantadas por Jung e Adler, podemos imaginar uma grande disputa subjaz ao texto e que pelo calor e urgência foi um texto que nasceu prematuro e sofreu as sequelas da prematuridade.
Freud, sempre genial, já percebera que alguma coisa teórica lhe escapava ao se defrontar com as psicoses. Quando escreveu a introdução ao narcisismo criou um problema teórico que somente foi resolvido com a segunda tópica no mais além do principio do prazer com a pulsão de morte. O negativo do representável que produz efeito pelo silencio e pela ausência o impossível de  ser representado. A amplitude teórica deste evento é imensa remetendo a algo sempre mais além.
Penso este justamente a questão, o mais além, o desconhecido, o motivo que pacientes frequentam nossos consultórios. Não vem para saber o que já sabem, mas para se tornarem aquilo deveria ter sido. Análise é um caminho pelo desconhecido. Se não for assim é perda de tempo.


Ciclo Bion
parte psicótica e não psicótica da personalidade
Num outro viés, Bion sustentou que há um espectro que transita entre o narcisismo e o social-ismo. Porém para estender a ideia de inconsciente espectral temos que entender que seu eixo clínico, seu objeto psicanalítico, se apoia não na neurose, mas na hipótese de convívio no mesmo sujeito de  parte psicóticas e não psicóticas da personalidade. A falha na capacidade de conter as emoções primitivas, violentas por si só, produzem um duplo funcionamento no aparelho psíquico. Uma parte torna-se capaz de transformar a realidade bruta das emoções primitivas em objetos do pensamento habilitados a serem usados e outras situações além daquela na qual foram gerados. Outra parte remanesce impossibilitada deste uso e tais experiência emocionais servem apenas para descarga. O primeiro seria a parte não psicótica da personalidade na qual a relação continente/conteúdo pode suportar o tempo das transformações. Função alfa obteve sucesso parcial. O outro se realiza quando a função falha e algo não é possível de ser contido o tempo suficiente para ser devolvido mitigado. O problema é que  isso sempre acontece. Sempre algo falha e algo funciona. Em graus diversos. Criando assim um inconsciente espectral que se diferencia do estrutural justamente por este convívio de funcionamentos diversos e até certo ponto autônomos.
Consequência é  que o narcisismo forma uma par espectral com o social-ismo.  De um lado alberga a onipotência do pensamento e a arrogância, de outro o amor objetal e a autoestima.


NARCISISMO NA CULTURA
Arrogância, curiosidade, estupidez
No texto “Sobre a Arrogância”, Bion coloca Édipo com o investigador por excelência. É o Édipo epistemológico que busca o saber a qualquer custo. Bion equivale neste aspecto ao sentido grego de desmedida segundo o qual crime edípico, para além do sexual é o da arrogância. Se examinarmos o texto de Sófocles veremos que já nas primeiras cenas Tirésias recomenda a blindagem da investigação pois o assassino que procurado é ele mesmo.  Hamlet tem a mesma vicissitude pois na primeira cena o espectro do pai revela o assassino e o filho, mesmo em posse de tal informação encontra-se impossibilitado de agir.  
A arrogância é acompanhado da estupidez e da curiosidade, mórbida, denunciando a falha na continência. A promessa é que em algum momento futuro tivéssemos a certeza que veríamos a saber de tudo com toda curiosidade esclarecida, livres das incertezas e incompletudes.
Conflito análogo ao proposto até onde uma análise pode ser terminável ou interminável.  Assim Narciso estaria dentro de Édipo tanto quanto Édipo de Narciso.
            André Green vai falar sobre o Narcisismo de Vida e Narcisismo de Morte enquanto que Arnaldo Chuster fala do Social-ismo de Vida e Social-ismo de morte.
            Na dobra do tempo, opostos de aproximam. Um sujeito pode ser tão altruísta que seu altruísmo pode ser uma vaidade. Enquanto que outro pode ser tão vaidoso que se torna, involuntariamente, altruísta.
SONHO, MITO E ARTE
Paradigma cientifico evolui para o estético

O mito é uma ferramenta que serve para investigar problemas emocionais. Sua narrativa envolve o encontro de imagens em uma conjunção constante e representa uma experiência emocional. Assim o sonho é a contraparte irracional de uma teoria cientifica.
E justamente esta característica poética do mito que faz com que Bion amplie a possibilidade do pensamento cientifico para um pensamento estético. Desloca a grade paradigma cientificista para o mítico. Édipo, Expulsão do Paraíso, os ladrões da Tumba do Rei de Ur, Babel e Palinurus tornam-se ferramentas poéticas da psicanálise. O mundo interno fonte de objetos que advém da reverie e da função alfa. Reverie é o momento inaugural na formação do simbólico ao produzir elementos alfa, ou seja experiências emocionais passiveis de serem reaproveitadas em situações futuras. Continente e conteúdo jogam papel central pois a reverie implica em conter as projeções terroríficas da criança por um tempo suficiente para devolve-las mitigadas. Neste processo cria-se o mundo interno e o resultado é a formação de uma parte poética da personalidade.
O fato é todo sujeito para existir tem que ser sonhado por uma mente criativa.
Neste sentido, Narciso, sofre por ter a mãe que não ama o pai e por isso tem uma gestação muito tumultuada impedido se ser objeto de sonho e reverencia. Para lidar com tal desamparo Narciso conta com sua extrema beleza para narcotizar o social. A beleza pode ser uma droga tão poderosa quanto o álcool que deixa as pessoas mais bonitas, a cocaína que infla a autoestima ou o crack e heroína que estimulam a onipotência.
Em “Escritores Criativos e Devaneios”, Freud diz que o trabalho da criança é brincar. Existe uma classe de adultos que desenvolve esta habilidade de seguir brincando e assim ganham a vida. Certa vez escutei que pessoa feliz seria aquela que ganha a vida fazendo aquilo que fazia quando era criança. São os artistas e em parte os psicanalista. Estes objetos fontes da prazer narcísico, adquirem status e importância social. Transformam o universo de objetos internos em objetos de valor social. Isso chamamos de arte.  A arte a rigor não modificam o mundo externo, oriunda da mesma fonte onírica,  mas por ser um objeto inserido no social, altera a realidade. E pública interfere no cotidiano e transforma aquilo que anteriormente fora um objeto narcísico num objeto socialmente valorizado. Por isso deixa de ser narcísico.
Mas para que este processo se realize há que através o luto.

GUERRA DOS FARRAPOS
Luto e identidade
            É dito e redito sobre as façanhas que devem servir de modelo a toda a terra. Projetinho humilde este, resultado evidente de uma grandiosa derrota. E consequentemente o luto, a melancolia e a depressão.
Porém, a medida que o luto é elaborado, a sombra identificatória que recaiu como uma nuvem negra, é liberada e a energia psíquica descerra  o céu aberto e pleno de futuro. Freud escreveu:
Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.
            Assim como no processo individual de elaboração do luto, disponibiliza novamente o investimento liberando das inibições, do mesmo modo  que quando  povo assume as suas derrotas poderá, depois de um certo período, voltar do luto e encarrar a luta.
Claro que no caso do narcisismo gaudério há uma nova dobra narcísica que obscurece o ganho e transforma numa mania apoiada na perseguição e aquilo que deveria ser orgulho vira soberba. Nestas horas a narcose vence.  

O VALOR DO NARCISISMO
Na cultura

Depois dos gregos, ao longo do tempos, o mito de Narciso foi sendo reescrito. Em  “Narciso ou a Ilha de Venus”, de Milfilatre, Narciso ama Eco e confunde-se ao ver a imagem pois pensa ser outra ninfa pelo qual se apaixona. Desiludido, ao perceber que ama uma imagem, deixa-se morrer. Narcotizado pelo próprio amor. Mais uma vez o perigo que o amor representa para si mesmo. “Em Narciso, O Amante de Si Mesmo”, Jean Jacques Rosseau a desilusão recai sobre um retrato e este é destruído.
O retrato também é um elemento narrativo essencial no romance de Oscar Wilde, uma vez que a personagem não envelhece enquanto  o retrato fenece para preservar a ilusão narcótica que o tempo não existe.
André Gide em “O Tratado Sobre o Narciso” destaca a importância da água que representa a pureza da obra de arte. A arte faz essa conciliação entre o principio do prazer e da realidade na qual os homens precisam voltar para recuperar sua capacidade de sonhar coletivamente.
É em Paul Valery que o narcisismo é valorizado e posto na perspectiva de um valor de restituição. Neste sentido o adormecer todas as noites e o olhar no espelho dos sonhos é um exercício de recuperação de algo perdido. Talvez, na retina de Narciso, a imagem de si mesmo seja uma maneira complexa de expor aquilo que se perdeu para sempre, mas que ele recusa a aceitar.

O valor restitutivo do narcisismo integra o sujeito em determinado lugar, ciar um tempo e um espaço dentro do qual é permitido ser, mas não para sempre. O aroma do perfume da pétala do Narciso enraíza o sujeito. Esta existência, por certo fugaz e passageira é o que nos resta, pois se mesmo que por alguns instantes podemos estamos no centro amoroso do mundo, então todas desilusões futuras podem ser suportado.
Este núcleo amoroso nos inscreve numa rede simbólica que nada mais é do que uma rede poética. Só a poesia salva porque a poesia cria significado sobre a brutalidade do real. Do mesmo modo que o canto precede a fala, a poesia precede a prosa e a linguagem conotativa é anterior a denotativa. A poesia antecede e de certo modo cria, a realidade. Por esta via, a realidade bruta pode ser poetizada pelo vinculo humano primordial e inventa representações. Poesia é a função alfa que o olhar materno nos inventa.

SOCIAL
Violência, fanatismo, intolerância
No âmbito social de desvalorização do sujeito, o povo desvalorizado pelo narcisismo ferido envolve-se em ondas de violência. A ação do sujeito e do grupo reflete um universo sem consequências, provavelmente porque a catástrofe maior já ocorreu no mundo interno e por consequência tudo que acontecer fora será menos intenso. Resultado é a pratica social do extremismo como podemos ver na Babel das rede sociais. Um dos hastag do tuite e posts do Facebook  mais visto nos últimos tempos é o seguinte: “ Fulano não me representa”. Equivoco narcísico produzido pela narcose social pois na medida que nega a representação, independente de qual seja, ataca-se o processo de transformação e  perde-se possibilidade de realizar ação publica. Este é apenas um exemplo desta torção para dentro daquilo irrepresentável que fragiliza o social e cria a cultura fanática do radicalismo e niilismo. 


NARCISO
Guerra
O narcisismo quando superado, transforma-se em identidade. Durante Segunda Guerra Mundial, foram escritos vários trabalho afirmando que a guerra teria sido ganha nos consultório da Inglaterra. O Henrique V, descrito por Shakespeare, antes da batalha de Azincourt faz um discurso que muda o rumo da guerra dos Cem Anos: “Nós, estes poucos; nós, um punhado de sortudos; nós, um bando de irmãos... pois quem hoje derrama o seu sangue junto comigo passa a ser meu irmão. Pode ser homem de condição humilde; o dia de hoje fará dele um nobre". O narcisismo transformado em orgulho inverte o resultado da guerra e supera uma grande diferença numérica dos franceses sobre os ingleses.
Um exemplo mais próximo é nas eleições. Fica evidente expressão de narcisismo no voto ao vencedor. O eleitor, desvalido,  precisa ganhar e vota em quem esta na frente no IBOPE para sustentar a ilusão. Vida medíocre precisa de um fato especial para se descolar do fundo neutro do cotidiano gerando o radicalismo. Que por sua vez gera a rivalidade e desemboca no fanatismo e intolerância. Vizinhos em guerra dentro do mesmo condomínios, narcisismo de pequenas diferenças, Brasil e Argentina, Israel e Palestinos, gremistas e colorados são marcas desta violência. Meu vizinho, meu rival. Racismo e fanatismo.
TRAGEDIA
Antagonista
Na narrativas contemporâneas o antagonista tem sempre mais poder do que o Herói. Na tragédia o conflito do Herói é contra o destino, a moira, aquela representada pelo deus-destino. O homem sonha em superar o destino, mas é exatamente por se defrontar com tal antagonista que nos tornamos humanos. Por enfrentar a fúria dos Deuses com nossos desafios é que acabamos por encontrar quem somos. O antagonista, tal qual a realidade, nos coloca nos eixos. O herói tem que enfrentar alguém que lhe é superior para ao final, se tudo der certo, superar-se e alcançar o inalcançável.
O antagonista dos nossos tempos é o narcisismo. Talvez sempre tenha sido, mas aparece hoje na sua dimensão mais poderosa. O homem evoluiu tanto para superar sua vaidade e arrogância que se tornou a essência da vaidade e a  arrogância. O social sempre perde, o bom senso sempre perde, o dialogo sempre perde. Porque a força contra o qual enfrentamos é muito mais poderosa. Não faz concessão, não dialoga pois quando dialoga se transforma narcisismo em autoestima.
O narcisismo enquanto vilão é o vilão perfeito pois é mais forte do que tudo.
São as pequenas batalhas que se travam no atelier dos consultórios de psicanálise. E estamos constantemente perdendo, e por isso, evoluindo. O narcisismo não cede e por isso somos maiores, porque somos fracos.

CICLO DO DESAGUAR
Sobre a Conclusão provisória
Para encerrar, trago a afirmação surpreendente de Freud em “Sobre o narcisismo: uma introdução”
“Acho inteiramente impossível situar a gênese da neurose na estreita base do complexo de castração...”.
Advertido sobre a densidade desta afirmação respondeu:
“Sua pergunta relativa à minha afirmação que fiz em meu artigo sobre narcisismo, sobre a existência de neuroses nas quais o complexo de castração não desempenha qualquer papel, coloca-me numa posição embaraçosa. Não me recordo mais do que tinha em mente na ocasião. Hoje, é verdade, não poderia citar qualquer neurose na qual esse complexo não fosse encontrado, e de qualquer maneira hoje não teria escrito a mesma frase. Mas conhecemos tão pouco a respeito de todo esse assunto que preferia não ter que me decidir cabalmente neste ou naquele sentido.
                 
O sábio sustenta a incerteza e não fecha a questão, pois esta sempre em contato e respeita o desconhecido. Manter a suspensão do julgamento tanto quanto seja possível, possibilita  que a verdade advenha do paradoxos que a complexidade da clinica nos joga na cara a todo momento.
Penso que Freud anteviu nesta frase o que ele viria a escrever num texto tardio: Fetichismo. A divisão do ego, a cisão, conceito antecipado no texto, oferece uma alternativa para a repressão.
Minha conclusão provisória é supor que exista mais continuidade entre Narciso e Édipo, entre Ego Ideal e Ideal de Ego, entre amor anaclítico e amor objetal, entre parte psicótica de personalidade e não psicótica de personalidade, entre recalque e cisão, entre mundo interno e o externo, entre a o olhar e ser visto, entre a imagem real e a virtual, entre o narcisismo e o socialismo do que a impressionante cesura da castração e do luto nos faz crer e  que as emoções fanáticas da paixão nos cegam. 
Assim, esta águas finalmente se juntam e chegam ao mar, inicio e fim. Narciso esta para a cisão assim com Édipo para a repressão.
Juntos sempre até o fim.



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