NARCISISMO E IDENTIDADE NACIONAL
Trabalho apresentado na
60 FEIRA DO LIVRO DE PORTO ALEGRE
organizado pelo
CENTRO DE ESTUDOS PSICANALITICOS DE PORTO ALEGRE
Júlio Conte
A FEIRA DO LIVRO AGORA É ÁGORA
Penso
que a Feira do Livro de Porto Alegre nos seus 60 anos é o lugar mais
interessante e mais difícil de falar sobre qualquer assunto. Não apenas porque
é uma feira tão cheia de palavras, ideias e livros, mas por trata-se de o próprio fato de formular o pensamento num
espaço-tempo de uma cidade. Nunca é demais lembrar que a Academia de Platão
ficava no bosque de Akademos fora dos
limites da cidade, o que simbolicamente possibilitava a liberdade fundamental
para o processo. Pensar é se diferenciar, pois o pensamento a marca a
identidade de um povo.
Além disso, a Feira
do Livro foi ao longo dos anos se tornando a nossa Ágora. Para o os gregos era
o ponto de reuniões onde se podia discutir qualquer assunto, cultural, politico
ou urbano. Lugar incerto, indefinido, cercado por feiras no qual o cidadão se
expressava e debatia a multiplicidade das ideias e projetos sobre tudo e todas
as coisas. Gestavam os sonhos democráticos e identificatórios. E o sonhos no
universo da psicanálise são objetos de primeira grandeza e privam de absoluta
intimidade entre o sonho e sonhador. Porém quando partilhados tornam-se
essenciais para o exercício da vida publica na medida que nos constituem desde o
nosso mundo interno nos inventando no social.
Por
isso, diferente de ambientes psicanalíticos protegidos pelos muros das
instituições, falar na Feira é ter a voz exposta ao julgamento do vento, no
qual a turbulência e o tempo espalham as ideias, na expectativa de que a
semente das palavras encontre mentes que nos ajudem a estabelecer raízes para o
pensamento.
O
narcisismo é velho conhecido-desconhecido da psicanálise, pois, embora seja um
conceito amplamente debatido, tanto no campo da psicanálise quanto no imaginário popular, circunscreve um
conjunto de vivências intimas, repleta
de contradições, controversa, e essencialmente obscura, pois habita a
intimidade de nossa alma e desta não temos como nos evadir.
NASCIMENTO DE UMA TRAGEDIA
O
próprio nascimento do conceito foi controvertido a ponto de Freud escrever que
o texto nascera com os problemas inerentes dos partos extraídos a fórceps e por
isso impregnado de prematuridade. Encontrava-se em um embate teórico com Jung e
Tausk. O texto vindo a luz em meio a um ambiente polêmico resulta
inesperadamente na criação de um conceito que, para o próprio Freud, coloca em
desequilíbrio a tópica psicanalítica estável até então. Quem gerou o filho que
o embale, e Freud o carregou o narcisismo envolto a turbulências teóricas até
os anos 20 quando começa a resolver as contradições geradas pelo conceito nascido
em 1914. Comemora-se assim centenário de um conceito que nasceu na mesma data
que iniciou a Primeira Guerra Mundial.
LISTA DE PERSONAGENS
Acompanhando
o desenrolar da Primeira Guerra podemos encontrar a vida de personagens reais
que ocuparam cargo secundários em 14 e que vieram se tornarem essenciais nas
mudanças da identidade do mundo durante e após Segunda Guerra Mundial. Adolf Hitler era, antes de 14, um jovem
artista que sonhava com a fama, mas foi rejeitado na Escola de Artes. Vendia
seu desenhos a qualquer preço e se sentia deprimido. Quando estoura a guerra,
tenta se alistar no exercito austríaco, porém é rejeitado pois, esquálido, não parece
ter força capaz para segurar um fuzil. Então se incorpora ao exercito alemão.
Este sonhara em se tornar a maior força bélica do mundo, neste sentido, os critérios de seleção eram bem flexíveis.
Winston Churchill
jovem ambicioso, filho de rica família inglesa, graças a sua espetacular
oratória, fora rapidamente levado ao cargo de Almirante Chefe da Marinha
Britânica. Apresenta então um plano ousado de invadir a Rússia pelo Mar Negro
atravessando a península da Galípoli. Fracasso retumbante obrigou-o a se
afastar do exercito. Narcisismo ferido, se recupera na fumaça e whisky de pubs
britânicos. Ali sob a nevoa dos pensamento e de repetidos charutos, toma uma
decisão inesperada. Alistar-se como
soldado raso e foi direto para a linha de frente.
Em 1915 um
jornalista, Benito Mussolini, militante preocupado com a paz se descobre um
exímio atirador em serviço de defesa da fronteira da Itália com a Áustria.
Enquanto isso na Rússia, Wladimir Lenin retorna de seu exilio na Alemanha e se dirige
a Moscou onde encontra um jovem seis vezes presos preso na Sibéria e seis vezes
foragido, Joseph Stalin.
É celebre o episódio
no qual o jovem Hitler ferido e em fuga, se defronta com a mira do soldado
inglês, Henry Tendy. Hitler pára e, ao
fazer contato, olho no olho, tem sua vida poupada pelo soldado britânico. Tal
evento, encruzilhada de Delfos, mudou sem saber o destino do mundo e a
geografia das identidades nacionais. Pouco depois, Hiltler é infectado com o
gás mostarda que começava a ser usado nas guerras de trincheira e quase morre.
Prisioneiro ferido gesta sua grandiosidade enquanto cura-se das feridas
provocadas pelo gás. Ironicamente um gás, mais especificamente o Zyklon B, será
usado por ele de forma hedionda e perversa no futuro.
Essa
personalidades com fortes traços predominantes de narcisismo fazem parte de
mundo que vivemos e nos determinou, criando uma guerra que posteriormente veio
desenhar a geografia e a identidade do mundo e cuja consequências e influencia
se verificam até os nossos dias.
Na
virada dos 20 Freud resolve finalmente sua guerra particular com Jung e Tausk. Reorganiza
a teoria com a Segunda Tópica, o mais além do principio do prazer e o conceito
de pulsão de morte.
Em 1939 viria também
a Segunda Guerra Mundial tendo como atores os coadjuvantes da Primeira Guerra,
agora como protagonistas.
Portanto em 14, nada
de novo no front. A não ser um texto inspirado numa flor e num mito surgido sob
pena compulsiva de um Freud criativo que viu nascer uma esquálida flor a beira
do buraco negro de uma trincheira.
NARCISO: A FLOR E A GUERRA
Narciso é uma flor primaveril. Dela se
extrai um óleo usado, em algumas culturas,
como um perfume para ungir o sujeito antes de entrar em templos com o intuito de enraizar o
individuo.
Tem aroma inebriante, herbáceo, verde
com notas altas doces, e tons misteriosos. O Narciso também é um
afrodisíaco suave e favorece processo meditativos que demandem introspecção. Mas o que mais chama atenção é
que Narciso tem uma pronunciada ação narcótica donde advém o nome. Este
atributo narcótico deve ser usado com muito cuidado, pois é sedativo, hipnótico
e calmante.
O
MITO NÃO MENTE E A MENTE DE-MENTE
Quanto ao Mito no chegaram tem
três versões.
A mais conhecida é de Ovídio. Narciso é filho do deus-rio
chamado Cesifo com a ninfa Lírope. Tiveram uma gestação tumultuada pois Lírope
não deseja ter o filho e não amava o deus-rio. Teve um parto cheio de apreensão
e, para seu espanto, nasceu uma criança linda como jamais se vira antes. E como
se sabe, a beleza tão intensa de um ser humano, um mortal, produz terror, espanto
e inveja no mundo mítico. Ameaça a perfeição dos Deuses. Tal beleza torna fácil para o
sujeito incorrer numa desmedida, e como consequência despertar a Nêmeses, a
inveja divina ou também conhecida como a
deusa da justiça distributiva. Punido as desmedidas sempre que elas se
apresentam.
Lírope
preocupada com a excessiva beleza de Narciso o levou ao oráculo. Tirésias revela que Narciso poderia viver
muito desde que não se conhecesse. Sempre despertando paixões, Narciso permanecia
insensível ao amor das ninfas. Uma dela, Eco, apaixonou-se de tal modo que frente
a indiferença daquele definha até restar apenas a voz que repete as últimas
palavras faladas. As demais ninfas clamam justiça a Nêmeses. Narciso então é condenado a viver um amor impossível.
O resto é bem conhecido, depois de uma caçada se aproxima
do lago para beber e se apaixona pela imagem refletida e dali não pode mais
sair.
O corpo se transforma numa flor amarela circundada por
pétalas brancas, Narciso Poeticus e Narciso Serotinus.
Cabe destacar que o
pai é um Deus-rio, agua corrente enquanto que a ninfa significa noiva, mas é
também é uma referencias aos genitais femininos. As ninfas são
espíritos, habitantes dos lagos, riachos, bosques, prados e montanhas
frequentemente habitam as margens dos rios e das águas.
A segunda versão é de Pausânia. Nesta variante Narciso tem uma
irmã gêmea que morre prematuramente. Narciso fica desolado e quando vê a imagem
no lago pensar ser aquela irmã amada e, preso a tal ilusão, dali não consegue
mais sair.
A terceira versão é a Tebana e nesta Narciso segue tento
uma beleza incomum sendo alvo de paixões de toda ordem. Uma delas de um jovem
chamado Amínias que Narciso obviamente rechaça. E no impulso entrega para
Amínias um punhal. Este supõe ser um
recado e se mata. Antes de morrer, porém, invoca a Deusa Afrodite pedindo
justiça contra seu objeto de amor, Narciso.
O final em
todas as narrativas é sempre a mesma. Aproximação do lago, espelho das águas, a
imagem, o sujeito siderado, e o suicídio
mergulhando no buraco negro das águas.
As
invariantes que aparecem no mito são a beleza funcionando como uma desmedida e
o fascínio imobilizante frente a própria imagem.
Nas
variantes do mito destaco a falta de amor da mãe, como fator de turbulência, a imagem
da irmã gêmea, o amigo apaixonado e o punhal. Entre os elementos simbólicos
variáveis temos questão da bissexualidade e da paixão por si mesmo, o
auto-amor. O punhal poderia ser a imagem do corte que restituiu, mas torna-se a
arma que mata.
Esta
multiplicidade de versões torna Narciso uma narrativa complexa. Em sua narcose
narcísica que impede de suportar a perda, Narciso inconsolável realiza o
mergulho para dentro de si, em direção as origens. Transpõem para imagens a
impossibilidade de resignação. O luto da perfeição jamais realizado que envolve
o mito na mais profunda melancolia e mutismo em busca de águas primitivas. Viés inverso ao de Édipo o qual direciona a flecha do tempo para o futuro,
apontando o social, o mundo externo, o sair de casa, o caminhante que suportar
as consequências das leis e imagens paternas.
Direções
opostas, Édipo e Narciso, um em busca da verdade externa e outro, indiferente
ao social, busca as razões de ser no si mesmo, representado pela autoestima, da
restauração pela onipotência do pensamento e na busca tornar-se ele mesmo do
objeto da própria libido.
A
IDENTIDADE E OS AMORES PERDIDOS
A identificação é o
laço mais primitivo que se estabelece entre os humanos. E o sujeito é a
história de seus amores perdidos.
Identidade não é um
conceito estritamente psicanalítico. Quase não aparece na obra de Freud ao
contrário da Identificação que é central. Do ponto de vista filosófico
identidade é algo a rigor idêntico a si mesmo, pode no entanto ser substituído
desde que haja uma convecção para tal. Toda identidade se realiza por contraste
com a alteridade, com o outro e este fator é essencial para a compreensão dos
processos sociais de identidade. Enquanto que identidade transita no âmbito do
consciente a identificação é trabalho psíquico que advém de camadas profundas
do ser.
Narciso siderado
frente ao sua imagem frente ao espelho de águas reflete a estagnação do
sujeito. A identidade estática. A quebra do espelho vai originar a
identificação com os objetos perdidos e constituir, por consequência, a
identidade resultante da identificação. Esta quebra se revela essencial para
produção de movimento.
No Brasil, durante o
período imperial surgiram várias revoltas. A mais longa delas começou 1835 quando
um grupo de revolucionários partiu a cavalo de Viamão para tomar a cidade de Porto
Alegre dando inicio a Guerra dos Farrapos. Juntamente com ideais republicamos, havia
um sentimento generalizado de descontentamento. A Guerra dos Farrapos, ao
final, revelou-se numa grande derrota militar. E justamente por isso tornou-se
um núcleo identificatórios do gaúcho. O dano narcísico desencadeou a formação
de uma identidade com suas particularidades regionais espelho da diversidade
cultural. O mesmo talvez possa se dizer das outras revoltas. O narcisismo
ferido, espelho quebrado, forma o caldo cultural que inventa a diversidade de um pais.
Movimento
paradoxal dos processos identificatórios podem surgir tanto como restituição
como restauração. Sob o viés da parte psicótica da personalidade o identidade toma
formas de autoritarismo e intolerância. Estática, marcada pelo narcisismo
predominante. Como que gestada no ninho da psicose, rejeita o contraste cuja
consequência, a rigor, leva ao racismo,
ao fanatismo, o extremismo e separatismo.
Identidade
no ambiente da parte não psicótica proporciona processos móveis, flexíveis. Podendo
por isso evoluírem, intercambiáveis, devido ao caráter lúdico, prazeroso. A diversidade
cultural, o outro, nesta perspectiva se oferece como objeto da curiosidade e
desejo de conhecimento. Revela e procura a alteridade. Produz a sensação de
pertencimento sem perder a particularidade e se articula com determinado tipo
de movimento que se descola da simetria produzindo uma circularidade e
aceitação da diferença.
ÉDIPO E NARCISO EM
SEU ETERNO EMBATE
Universo circular
delimitado entre Édipo e Narciso, surge da assimetria enquanto diferença, e, do
simétrico enquanto identidade. A circularidade da identificação se relaciona
com a constante desconstrução da própria identidade num movimento de
reinvenção.
Na aurora precursora
do narcisismo quebrado gera a identidade social, como uma tentativa de
restituição de um narcisismo dissipado, por isso, quase sempre, é resultado de
um hiato da razão. Essencialmente porque o Ser se cria na ação da não-palavra e
dali evolui na linguagem. O zero (O) evoluiu para o 1, depois 2, 3 em direção ao infinito.
Animal, o primitivo,
antecede ao Homem, e esta antecipação, de certo modo, é aquilo que procuramos
conhecer no buraco negro do espelho e na decifração da esfinge. O pré-humano, busca realizar a identidade do
homem ao longo dos tempos. Porém, isso não determina que o homem lhe seja superior. O tempo de convívio
entre eles é o tempo da história e o tempo histórico é nosso trabalho de
criação do ser.
No Ser toda identidade é contradição. Primeiro porque
é um fenômeno da consciência enquanto que a identificação vem de outra
instancia. O sujeito procura a identidade, mas o Ser vem antes e é carregado de
uma energia potencial, um poder inespecífico. Por outro lado, a identidade é
uma forma de congelamento, por isso restrita, específica, finita. Este
congelamento restringe o Ser. Por isso, esta sempre em conflito com o infinito intrínseco
do Ser, que insiste sempre em ser outra coisa. A sucata quando mais sucata,
mais pode ser outra coisa. E é justamente neste conflito de energias potencia, estáticas
e móveis, nesta contradição entre a repouso e o movimento, que determina a
constante evolução e intercambio entre o ser e a identidade.
Assim neste duplo
viés do narcisismo em relação a identidade temos:
1) Narcisismo ferido que faz a
ruptura, cria a parte, rompe a unidade.
Cria a alteridade sob efeito do corte, da
dor e da guerra .
2)
Narcisismo
restituído refaz o equilíbrio da unidade, mas não através da restauração, mas
sim da produção de uma identidade terceira que se opõe, radicaliza e nos
aparta. Muitas vezes de forma brusca.
O
narcisismo ferido, restituído ou restaurado,
constitui uma serie de eventos psíquicos essências. Manifestam-se através
do social pelo exercício da dúvida ou pelo discurso das certezas. Hitler
cevando o ódio na enfermaria depois de preso e ferido sonha com a
grandiosidade. Churchil humilhado entra na fila e se alista. Lenin vindo do
exilio, Stalin preso na Sibéria formam a enzima catalizadora do universo trágico que atravessou nosso século.
O
Brasil viveu um momento desta ordem com as eleições para presidente de 2014. Um
embate de trincheiras virtuais, informações desencontradas, universo de ódio
que torce o pensar e o pensamento em direção a imobilidade e a intolerância.
Uma trama macabra urdida em agencia de estratégia e marketing, cujo desenlace
torna-se difícil antecipar. O conteúdo manifesto é o ódio e a
intolerância.
Outro
dia, conversando com minha filha ela me falou da primeira cena de Bailei na
Curva quando, no inicio da peça radio anuncia que o Brasil pode explodir a
qualquer momento e em qualquer direção. Não chego a pensar que podemos estar no
mesmo momento, de 64, mas não é alentador pensar que vivemos momento de crise e
obscuridade da identidade nacional. A expectativa é que a realidade sirva para
o País evoluir superando as radicalidades, de ambos lados. Pois de outro modo
ficaremos armadilhados num estado mental da paranoia que antecipa a depressão
ou numa depressão perseguida pela
paranoia.
Qualquer
evolução sonhada passa pelo dialogo e por trocas e intercambio simbólico. A
vida se passa no movimento.
E
a circularidade salva.
PREMATURIDADE
Alguns
pesquisadores sustentam que a evolução do homem se deu a partir da prematuridade. O tamanho cada vez maior do
cérebro obrigou o humano, para fins de sobrevivência da espécie, a um
nascimento prematuro. Consequência momentosas pois enquanto que em outros
animais predomina o inato, no humano temos a necessidade imperiosa do cuidado
do outro e consequentemente a possibilidade de aprender com a experiência.
O
homem, do mesmo modo que o texto de Freud, nasce com as marcas do fórceps e da
prematuridade. Nos defrontamos com a dificuldade de pensar do tempo-espaço
exatamente ali onde os fatos se sucedem. Pensar demanda a construção de distancia
mínima para um segundo pensar. Porém o pensamento, de modo constante, se vê espremido
pela urgência de resposta. Desta vicissitude o humano não tem como se evadir e
pensar, por maior prudência que se consiga, sempre carrega traços da
prematuridade.
Como
o texto de Freud, de outros e este.
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