SOBRE O ENSINO DE ARTE

SOBRE O ENSINO DE ARTE

Minha primeira aula de arte que lembro foi de música no Colégio Bom Conselho. Havia recém chegado a Porto Alegre, assustado e tímido vindo de um distrito no interior de Caxias. Não contabilizo nesta lembrança os saraus familiares em que minha irmãs recitavam poemas e meu irmão imitava o Cantinflas enquanto eu inventava o meu mundo fazendo arte com uma tesoura e papel recortando foguetes, lambretas e caubóis. A primeira aula foi um evento. Saímos da sala de aula tradicional e depois de infinitos corredores e labirintos uma ampla sala de abriu, sem carteiras, sem mesa da professora e, ao fundo, um misterioso espaço, acima no nível do chão que ganhou o nome de Palco e, descentrado, um piano. A professora era querida, sorria, simpática, a distancia do tempo me faz a imaginar linda. Com paciência ensinou a melodia, faz todos cantarem a letra e depois sentou ao piano e começamos a tocar. Eu mexia a boca maquinalmente sem entender a lógica absurdo dos tons associados as palavras e a alguma coisa ainda mais complexa que ela chamou de ritmo. Nu determinado momento o tal do ritmo se intensificava,  uma parte intensa da música, então várias crianças movidas por uma força que eu não entendia, saíram para dançar, coreografando ao sabor do improviso, os ritmos movendo os corpos,  mimando os significados, mas acima de tudo, senti uma euforia ao ver meus coleguinhas pulando de alegria, arrebatados pelo entusiasmo e êxtase. Eu tímido fiquei sentado, invejando o Dioniso que, sem eu saber, já tomava aqueles corpos em ritual. Levei anos para escutar o sopro de Dioniso, para me permitir. O desejo latente tentando romper as amarras da timidez. É a lembrança mais antiga que tenho de uma aula de artes.
Nos anos setenta eu comecei a morar sozinho apartamento na esquina da avenida Getúlio Vargas,  bairro Menino Deus e a rua Rodolfo Gomes, um transversal que começa ali e terminava na Praia de Belas. Era um bom apartamento num prédio de construção sólida e antiga o que determinava, pela cultura da época, que os espaços internos fossem imensos que que não houvesse elevador e um único banheiro. Eu então frequentava, sem muito entusiasmo, a faculdade de Medicina na UFRGS, e por isso faltava muitas aulas. Algumas faltas eram para me reunir com as turmas de amigos para conspirarmos na utopia de vivermos num pais democrático. Aulas burocráticas, reforma do ensino viera par dispersar aliada tirania de professores estrategicamente coniventes a ditadura vigente. E eu tinha que arcar com um tédio resultante da minha timidez e inibição da minha curiosidade. Tinha receio de mostrar que não sabia e por isso ficava quieto o que me obrigava aprender em silêncio e em segredo. A combinação de fatores fazia consequência. O curso de medicina andava de mal a pior, notas baixas, currículo péssimo, faltas frequentas e uma insatisfação inespecífica com a vida. A solução mágica foi me matricular em  curso 2 de Artes Cênicas e frequentei a cadeira de Expressão Corporal. Maria Helena Lopes era a professora e eu não sabia ainda, mas quando ela parou para me observar viu entrando um cara todo atrapalhado. Eu  senti que estava frente a alguém especial e que podia de alguma forma me ajudar, portanto estava prestes a ter contato com alguma coisa maior do que a minha vida. Estava frente a uma dos maiores artista de teatro que este país já teve, diretora inspirada e exigente, professora genial e uma pessoa que embora estivesse sempre sob a carapaça da demanda radical e uma exigência quase cruel, era de uma generosidade amorosa profunda.
            Resulta esta aula, com uma professora-artista, minha vida mudou. Passei a frequentar regularmente o curso de teatro, embora sempre intercalado pelas aulas de medicina, cuja conclusão dos dois cursos se deu quase ao mesmo tempo tal o crossing-over que me envolvi. Na Medicina me graduei três meses depois do curso de Direção Teatral.
            Voltando ao apartamento da Getúlio Vargas, naquele período vivia precariamente, faltava tudo, principalmente dinheiro, meu apartamento vazio, tinha um fogão improvisado, um frigobar e um colchão que eu chama de “cama”.  E durante o dia fazia todos os trabalhos possíveis, ator de comercias, apresentador de baile de debutante e serviços gerais para pagar as minhas contas. Participava com ator de duas peças, uma adulta a noite e outra infantil a tarde e ainda fiz a minha primeira direção de teatro. No entanto, o conjunto das remunerações não era suficiente para pagar as contas e meu condomínio ficou muitos meses atrasado a ponto de quase perder a propriedade do imóvel.
            Então, numa tarde de desespero, sem nenhum tostão no bolso, passei na frente de uma escola maternal que existe até hoje. Balão Vermelho e, não sei porque, vencendo a timidez daqueles que não tem mais nada a perder, e me ofereci para dar aulas de teatro. Juro que foi assim uma tentativa sem muitas esperanças de que desse certo, mas deu. A Constância, proprietária, uma portuguesa cheia de visão  sotaquee, olhou para mim, talvez do mesmo modo que a Maria Helena Lopes, perscrutando o futuro. Então ela falou “era exatamente o que eu estava procurando!”. E me contratou. Eu tive que inventar uma série de atividades, planos de aula a fim de amenizar minha fragilidade e comecei a trabalhar. Foi uma das grandes encruzilhadas da minha vida. Dentre várias, esta experiência  abriu espaço para imaginar que uma brincadeira, uma atividade estética, lúdica, o jogo dramático ou algo sem objetivo como a arte, pode mudar e efetivamente muda o mundo. Lembro em especial de uma aula que usei tesoura, minha paixão absoluta em fazer recortes em papel, e na atividade propus que cada criança, elas oscilavam entre três, quatro ou cinco anos, recortassem um boneco que representaria a si mesmo.  Um outro eu, uma representação do sujeito. Precisei ajudar alguns frente a dificuldade e o perigo das tesouras. Então, depois dos bonecos recortados eles foram pintados, surgindo detalhes, barba, bigode, longos cabelos, bocas com batom, olhos desenhados, bocas rindo ou tristes, roupas, gravatas, cores, propus a seguir que se criasse  um lugar onde estes “bonecos” viveriam. Logo se iniciou a formação de uma cidade que prendi um fita crepe (ou terá sido durex?) sobre as classe. Formaram um painel, uma maquete de uma cidade que está mais gravada na minha memória do que qualquer foto que já postei no Instagram. Então o jogo espontâneo começou a acontecer e eles, combinações silenciosas, começaram a se visitar, a estabelecer relacionamento e de repente tiveram que construir a rua para se deslocarem, carros, caminhões para se deslocar, e logo foi necessários cria uma praça para levarem as crianças para brincar. E a escola para frequentar. Cada um com seu representante, o marionete de si mesmo, e percebi surpreso que uma cidade na minha frente fora construída e inventada com todas sua organização e caos em diálogo lógico e espontâneo. Quando a aula encaminhava para o final, ofereci a ideia que a noite poderia chegar. Que foi bem acolhida pois estava cansados e felizes. Ele foram para suas casas imaginarias, e cada a um a seu modo, se conciliaram e deitaram. Então coloquei uma música de ninar. Naquele momento, a cidade se quedou me paz, uma calma e um silencio surpreendente e inesperado, o momento mágico, o dia findava as onze da manhã. Foi quando a Constância abriu a porta preocupada com o súbito silencio da classe. Eu e ela nos olhamos e vimos que aquilo tudo era bom, era arte, era vida, era estar presente no mundo. Minha primeira experiência como professor de arte.
            Encontrei vários daqueles pequenos alunos ao longo da vida. E eles, muito mais do que eu, lembravam das experiência. E depois outros que tive em outros cursos e em outros momentos e todos partilharam algo que nunca terminou da acontecer.  Aquele momento magico da arte compartilhada. Tenho a convicção da importância destas impressões mesmo difusas, destas experiências  estéticas, a vivencia o implícita da arte, que mesmo quando não se permite escutar o seu sussurro, como recusei convocação dionisíaca no Bom Conselho, mesmo assim, é e será sempre um chamado, a sombra do futuro, no baluarte ético implícito no jogo dramático, no exercício da solidariedade, na noção de grupo, no sentimento de pertencimento e resulta na Arte como  formação do futuro homem social.
            Os gregos já sabiam e chamavam isso de Democracia.


            

Comentários

Postagens mais visitadas