CAMILO DE LÉLIS ESCREVE SOBRE DANÇAREI

"Hoje eu vi teatro. Andava falando mal, reclamando do que virou o nosso teatro na última década. Mas, espera aí! Tenho notado que há alguma excessão. Assisti a "Tá e Aí?", "Pilulas de Vatapá" e, por último, "Dançarei Sobre Teu Cadáver - direções de Julio Conte. "Tá e Aí?" é uma experiência cênica que mereceria um estudo mais aprofundado e se calhar, numa outra temporada, talvez eu me anime a fazê-lo. Porém, essas duas peças, "Pílulas de Vatapá" e "Dançarei Sobre Teu Cadáver" têm muitos pontos em comum, e o mais forte é o elenco que é muito jovem, se não estou errado, oriundo de oficinas ministradas por Julio Conte. Ambas as peças são de dramaturgia juliana e refletem a vida como ela é, e com tintas bem carregadas. Em "Pílulas...", que já faz algum tempo que assisti, a coisa é meio rodrigueana com incestos e que tais, além de muita drogadição e sexo. "Dançarei..." que assisti agorinha, no final da temporada do Teatro de Arena, me estimulou a falar bem de nosso teatro, a equipe merece meus louvores. Julio definiu o texto a partir de improvisações com os atores e conta, também, com o auxílio de Vicky Mendonça, que escreveu uma cena. Suas peças de oficina são espartanas; necas de cenário, alguns adereços e figurino mínimo. Então elas têm de ter alguma coisa a ser dita; e o que se ouve compensa a carência material. A turma de atores é natural, sem "over action" e outros estrionismos ou truculências, que os atores da antiga acabam adquirindo muitas vezes por preguiça de investir suor numa arte tão desvalorizada como é o teatro. Ninguém tranca a respiração, ou tremula o lábio inferior, ou falseia a voz para simular emoção; tudo ocorre com fé cênica, na sequência lógica que as cenas trazem ao espectador. E o que conta a peça? Conta a trajetória de um rapaz que resolve se endireitar na vida, largar as drogas e estudar, mas que não chega a bom fim, pelo contrário, termina morto. A narrativa é em "flash back", inicia pelo fim, e vai construindo os episódios que a trouxeram a tal desfecho. A estória tem vários personagens, que são apresentados ao público, ao mesmo tempo que cada ator se apresenta, pessoalmente, na abertura do espetáculo: "Eu sou fulano e farei tal personagem, que é assim e assado, pensa isso e faz aquilo, etc". Isso faz com que o público relaxe e participe afetivamente do que será mostrado. Há o crack, a prostituição, mas também há o afeto, a amizade e até o amor.Foi um alívio ver uma peça que, apesar de ter sido feita sem recursos financeiros, nos fala a verdade. Eu que andava até enjoado dos shakespeares& sófocles que andaram assombrando a cidade, vi, satisfeito, uma coisa simples, mas eficaz. Sim, o teatro necessita de eficácia, pois trata-se de ministrar um "farmakon", e eu tenho tomado placebos aos montes, até dessas peças riquissimamente encenadas que nosso belo festival nos traz anualmente, mas que falam de um outro mundo, não o mundo em que vivemos, ou mostra outras épocas, não devidamente transpostas. Houve um cara em Atenas, Frínico, contemporâneo de Ésquilo, que cometeu a seguinte gafe: o poderio persa estava apavorando os helenos e acabara de reprimir violentamente uma rebelião em Mileto, matando todos os homens e levando as mulheres e crianças como escravos. Então, Frínico escreveu e encenou "A Tomada de Mileto". A comissão do festival aceitou o argumento e aprovou o financiamento, após um ensaio geral. Mas na representação pública a porca torceu o rabo, pois os atenienses furibundos com o próprio sofrimento, em uma futura invasão persa à sua cidade, que a encenação prenunciava, não se ateve à compaixão pelos vencidos, mas sim ao poderio do vencedor que os ameaçava. Resultado: multa ao dramaturgo e proibição da peça, que jamais foi reencenada. Conto essa passagem, numa defesa de que se volte a escrever e dizer coisas vivas, para lembrar aos ressuscitadores de textos antigos, que estes, se não contextualizados, tornam-se anacrônicos, que o teatro desde suas origens foi uma exposição de atualidades, mesmo que através de episódios históricos ou mitos originais. Na peça " Dançarei Sobre Teu Cadáver" Julio Conte, num exemplo de contextualização, faz uma referência mitológica aos troianos e sua infeliz Cassandra, cuja sina era vaticinar com extremada correção, porém ninguém acreditava em suas profecias. Na peça de Julio, uma moça, normalmente meio tansa, quando é possuída pelo espírito da escrava Anastácia prevê o futuro das outras personagens, mas, como no mito, ninguém acredita nela. É ela que nos dá o epilogo do espetáculo:" Eu vi, eu vejo, eu verei! A sociedade de consumo virou sociedade da consumação! A vida não vale nada, mas nada vale a vida! Eu falo mas ninguém acredita..."Bem, se os gregos, nossos primeiros mestres, falavam de coisas que afetavam os seus contemporâneos, penso que o mesmo devemos fazer nós, se formos bons estudantes daquela filosofia, a qual podemos degustar na precisão e beleza de seus textos. Se não temos toda aquela poesia dramática, que tenhamos ao menos aquela atualidade, isto é, estejamos presentes à chamada do deus do vinho&teatro, Dionisos. E, eu que estava presente, vi quando os atores da peça "Dançarei Sobre Teu Cadáver" responderam em uníssono ao terceiro sinal: "presente!""
Camilo de Lélis

Comentários

Caca disse…
Fico felicíssima de ler cada uma dessas palavras. Parabéns, Júlio! E parabéns ao grupo! Sucesso à peça! As vitórias de vocês sempre serão um pouco minhas também.
Anônimo disse…
Comecei a escrever por aí, em algum lugar há de chegar.
Este comentário está publicado no Jornal Fala Brasil com o nome "Quem Vive Dança & Vice Versa". O texto está mais enxuto e com algumas modificações:
confira!

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