LER EM VOZ ALTA
Quando eu cheguei à casa dos meus pais, minha mãe lia em voz alta o jornal para papai. A cena era estranha, inusitada, afinal minha mãe mal sabia ler, com dificuldade cursou o primário que abandonou na metade, ao passo que papai tinha curso superior,era um erudito, envolvido com política e freqüentara as altas rodas literárias nos anos 60 até 80 quando tomara contato com toda a sorte de intelectual, escritores, dramaturgos, cineastas e poetas. Ele transitara neste meio com elegância e sabedoria e por ter um texto elaborado nas milhares de páginas que escrevera em sua longa carreira de advogado, depois promotor e por fim como magistrado durante os quais desenvolvera o texto conciso e elegante. Nessa época, minha casa, sobrado no bairro Petrópolis, antes dos arranha-céus e da voracidade imobiliária, albergava crianças jogando futebol no meio da rua, e carrinhos de lomba e alçapões para capturar sabiás e pintassilgos, que residiam sob os cinamomos, flamboyant e abacateiros. O andar superior do sobrado fora ponto de referencia para aquela esquerda amordaçada cujo sustento emocional se resumia a mandar cartas denunciando a violação dos direitos humanos para a CNBB e para a Anistia Internacional, sem contar com os amigos, primeiro no Chile até a morte de Aliende, depois na Europa, Paris especialmente, mas também para a Argélia, Londres e obviamente Moscou. Todo aquele império de sonhos transitou sobre a velha mesa de carvalho herdada de meu Avô, junto com a casa, os carros na garagem e uma razoável conta bancária que imaginávamos nunca terminaria. Pois era justamente sobre esta mesma mesa de carvalho, esculpida pelo arrastar de talheres, pelo deslizar de pratos, e sulcada por minúsculos talhos que se acumularam de modo a tornar a superfície convexa dando a impressão errônea de estar empenada. As páginas do jornal se espalhavam caóticas sobre a mesa e meu pai ria e fazia comentários que deixavam a minha mãe irritada a ponto de suspender a leitura. Então ele suplicava, jurava que não faria mais, que não interromperia, que iria finakmente depois de um século de existência, mudar. Quase as lágrimas pedia que mamãe lesse sim as noticias. E logo a seguir, retomada a leitura, pedia também que ela lhe explicasse o sentido das palavras, das inflexões e que lhe elucidasse as entrelinhas, logo para ele tão afeito as intrigas políticas e leitor sagaz do social. Nestas horas, minha mãe perdia a paciência e lia a contragosto, embora percebesse nela uma espécie de cumplicidade afetiva. Não há nada mais comovente do que ler em voz alta para outra pessoa. Parecia uma reza partilhada, mas ela sabia que as palavras lidas em voz alta e explicadas ponto a ponto, esclarecidas e organizadas, já não carregavam sentido algum, esvaziada nos labirintos neuronais, apagadas como o sulcos de um disco arranhado, o odor de um fio queimado, um fusível que sobrecarregado desiste de resistir. Esse era ele, esse era meu pai. Foi então que minha mãe falou:
- Eu não gosto quando tu viaja, assim, diz besteira, coisas sem senso. Logo tu.
Aquela reprimenda produziu efeito. O insuportável finalmente se revelava. Ele parou e olhou fixo para minha mãe e depois um breve século de silêncio, sustentou:
- A gente viaja, vai e volta. A gente volta. Até não voltar mais.
Eu tentei dizer alguma coisa, mas as palavras não saíram da minha boca e ainda em silêncio escutei minha mãe retornar a leitura. Compungida, perfeita e competente. Voz clara e cálida envolvia o ambiente. Na página de política relatou sobre as eleições, os candidatos, explicando pacientemente o que era Ibope, mostrou as alianças políticas, passou rápido pelo esporte e se demorou mais nas páginas policiais. Metódica, e engolindo a dor, explicou tudo do começo ao fim, sabendo que daqui a pouco tudo começaria de novo, e novamente e outra vez.
- Eu não gosto quando tu viaja, assim, diz besteira, coisas sem senso. Logo tu.
Aquela reprimenda produziu efeito. O insuportável finalmente se revelava. Ele parou e olhou fixo para minha mãe e depois um breve século de silêncio, sustentou:
- A gente viaja, vai e volta. A gente volta. Até não voltar mais.
Eu tentei dizer alguma coisa, mas as palavras não saíram da minha boca e ainda em silêncio escutei minha mãe retornar a leitura. Compungida, perfeita e competente. Voz clara e cálida envolvia o ambiente. Na página de política relatou sobre as eleições, os candidatos, explicando pacientemente o que era Ibope, mostrou as alianças políticas, passou rápido pelo esporte e se demorou mais nas páginas policiais. Metódica, e engolindo a dor, explicou tudo do começo ao fim, sabendo que daqui a pouco tudo começaria de novo, e novamente e outra vez.
Comentários
Dom Camillo