O CHEIRO DO PAI

Minha queixa de indiferença é muito antiga. Tanto que a família toda sempre falou:

- Rafael, pára de te fazer de vítima.

Pois eu recusei sistematicamente a idéia que eu me fazia de vítima. E reclamava. Quando eu chegave perto, Mamãe me olhava com receio a espera da próxima investida lamuriosa. E assim se passaram anos de conflitos velados. Até que um dia o pai, já bastante velho, me presenteou um cachecol. Como todas as roupas dele tinha um cheiro que não era naftalina, não era mofo, não era uma marca de sabão específica. Era o cheiro que ficava em todas as roupas que uma pessoa usa. Não sei se é do suor ou se é de ficar guardada ou se é porque quando se envelhece o corpo libera odores que lembram que a vida passa. Sei que foi esse era o cheiro que impregnou o cachecol. E eu adorei e presente. Minha irmã, testemunha desconfiada, me olhava de soslaio e murmurou com demasiada ironia:

- Ficou bem em ti, Rafael.

Quando cheguei em casa, me veio a mente que aquele seria um presente que havia dado o pai quando ele fizera 94 anos. Nesta época ele ainda saia de casa, caminhadas pela calçada. Mas desde então já não sai a não ser enrolado em grossas camadas de lã a bem de manter a temperatura corporal que teimava em congelar as extremidades à custa de beta bloqueadores. Será o mesmo cachecol? Fiquei profundamente incomodado com tal pensamento. Procurei fotos do aniversário e encontrei num canto de uma foto do bolo o cachecol que eu lhe presenteara. Alívio. Era de outra cor. Porém o desafogo durou pouco. Papai morreu meses depois. E em meio ao conflito bélico resultante da partilha que dividiu toda a família encerrando relacionamentos, diálogos e cortesias, fiquei com a dor herdada. Depois de muitas disputas judiciais restou em mim a dor, aquela dor que não tem fim, que não tem forma, que não tem corpo, que não tem cor, que não tem som, que não tem gosto. Guardei o cachecol numa caixa de sapatos. E hoje, toda vez que sinto falta de meu pai, eu abro a caixa e deixo que o cheiro de meu pai tome conta do ambiente e me ajude a pensar.

Comentários

Bah Julinho,
Matou à pau!!!!!!!!!!!!
bj

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