Artigo de Luiz Carlos Carlos Uchoa Junqueira Filho
1. Introdução
Dois fatos inspiraram-me a escrever este
trabalho. Em primeiro lugar, o encontro ocorrido nos anos de 1934-35 na
Tavistock Clinic em Londres entre Samuel Beckett e Wilfred Bion. Aos 28 anos,
Beckett, um jovem egresso do Trinity College de Dublin, sentia-se deprimido
e
confuso, estava incapacitado por uma
série de distúrbios psicossomáticos como furunculose, dispnéia e taquicardia,
suas noites eram insones, acordava freqüentemente com pesadelos pavorosos,
chegando ao ponto de evitar dormir com temor de vir a sonhar.3 Seu médico e amigo
Geoffrey Thompson, convencido de que ele estava à beira de um colapso nervoso,
sugeriu que fizesse análise, encaminhando-o à Tavistock, onde foi atendido por
Bion, quem, aos 39 anos, iniciava sua formação psicoterápica, depois de ter
estudado história moderna e filosofia em Oxford e se graduado em medicina em
1929.
As poucas informações que temos a respeito desse
encontro psicoterápico são encontráveis na biografia de Beckett escrita por
Deirdre Bair em 1978 (em especial, no cap.8), tendo chamado minha atenção o
fato de que ele contabilizava suas sessões dizendo, com uma ponta de ironia,
ter tido 134 disputas– prises
de bec– com Bion. Segundo Didier Anzieu (1997), essa curiosa
expressão francesa usada por Beckett, além de evocar o patronímico Becquet de
seus ancestrais huguenotes que emigraram para a Inglaterra, ainda,
etimologicamente, evoca a palavra fácil maledicente ou irônica (talvez aí, a
origem de nossa expressão bom
de bico). Anzieu (1992, p. 44), em
outro estudo, chega a conjeturar um pretenso comentário de Bion a respeito das
artimanhas de Beckett: Il me donne la becquée et,
quand je vais pour le prende, il me flanque un coup de bec (Ele
me oferece um bocadinho, mas, quando avanço para pegá-lo, acabo recebendo uma
bicada).
É importante notarmos que naquela época nem
Beckett era o grande literato que veio a ser agraciado em 1969 com o Nobel, nem
Bion o grande psicanalista que no final da vida produziu a trilogia Uma memória
do futuro, espécie de ilustração onírica de toda a sua obra. No entanto, se
nos fiarmos na convicção bioniana da enorme importância das vivências pré e
perinatais no desenvolvimento do psiquismo adulto, é de supor que já então
ambos estavam às voltas com o esforço de organizar suas ansiedades primitivas
no sentido de garantir vidas maduras e criativas. Ao julgar-se pelas obras
altamente originais que ambos vieram a produzir, é possível supor que na
atmosfera eletrizante desses encontros tivesse surgido uma espécie de laboratório
emocional, onde a transgressão e a ousadia gerassem continuamente insights
experimentais.
Entenda-se por experimental, neste contexto, a interação de duas personalidades
esquizóides possuidoras de uma Gestalt modernista (Simon, 1988, p. 22),
propensa a experimentar, brincar,
transgredir, ampliar limites, formular e encenar todas as implicações de suas
idéias.
O segundo fato foi a oportunidade que tive de
assistir a Film, o único roteiro cinematográfico feito e filmado por
Beckett e apresentado em 1965 no New York Film Festival. O eixo conceitual
utilizado por ele foi extraído do filósofo idealista irlandês George Berkeley
para quem Esse est percipi (Existir
é ser percebido): nesse sentido, mesmo se
suprimirmos toda percepção exterior (animal, humana, até divina) em busca do
inexistir, continuamos à mercê da autopercepção que garante o existir.
Portanto, a única forma de escaparmos de sermos
percebidos seria apelar para a solução
extrema de não-existir.
No meu entender, as questões mais interessantes
que Film oferece a nós psicanalistas são: a) nos permitir contrastar a
visão exterior (que poderíamos chamar de outsight) afinada para captação
da realidade sensorial e a visão interior (o insight de nosso glossário
técnico), burilada para apreensão da realidade psíquica; b) nos fornecer
subsídios para discutir as implicações psíquicas do uso da visão binocular.
Em face do exposto, pareceu-me bastante útil
elaborar um trabalho tendo como ponto central a discussão da dialética existirin-existir, a partir das
contribuições convergentes, mas autônomas, das duas obras em questão. Beckett,
como sabemos, é o poeta da indigência
(Souza Andrade, 2001), da nulificação, da desqualificação, da
despersonalização, da desconstrução, se preferirmos; Bion é o propositor da
não-coisa (no-thing) como objeto que confronta o sujeito com a
possibilidade de pensá-lo ou evacuá-lo– no caso extremo, Bion (1965, cap. 7)
nos descreve o supremo objeto não-existente,
aquele que abomina qualquer partícula de existência.
2. Outsight e insight
Film começa e termina com o close
de um olho, referência explícita à famosa imagem do olho cortado por uma lâmina
de Le Chien Andalou, de Bunữel e Dali, que poderia simbolizar a visão
exterior passível de ser atacada sensorialmente: esta visão do olho
da cara prevalente nos personagens
de Beckett é necessariamente opinativa e por isso vulnerável às ansiedades
esquizo-paranóides. O insight psicanalítico, por seu lado, refere-se à
visão interior propiciada pelo olho da mente (the minds eye, na
expressão de Shakespeare), sempre de prontidão para recolher as percepções da
posição depressiva ou, nos termos de Bion, para unificar-se (be at one)
com o objeto através da rêverie, enxergando-o a partir do interior do
próprio sujeito.
Grotstein (2007) denominou seu último livro de A
beam of intense darkness, em alusão à famosa recomendação de Freud de que o
analista deveria cegar-se artificialmente para melhor captar a realidade
psíquica. Segundo ele, Bion teria numa ocasião traduzido essa passagem de Freud
em carta a Lou Andreas Salomé da seguinte maneira: Ao
conduzirmos uma análise, é preciso emitir um facho de intensa escuridão
de modo que algo que até então tenha ficado obscurecido pelo resplendor da
iluminação possa cintilar ainda mais na escuridão.
Introduzi o oxímoro[1] (instante
eterno) resplendor da obscuridade no
título deste trabalho para ressaltar que tanto Bion como Beckett valeram-se
desse recurso expressivo na abordagem de seus objetos de investigação. De fato,
Webb e Sells (1997) fizeram um interessante estudo comparativo entre a
linguagem apofática[2]
dos místicos neoplatônicos e as formulações de Lacan e Bion, que visam a uma
apreensão do conhecimento psíquico através de um caminho que se movimenta do não-saber em
direção ao saber. O
significado nesses casos emerge em função da tensão surgida entre uma
proposição afirmativa (a catáfase) e outra que a nega (a apófase). Do mesmo
modo, Souza Andrade (2001, p. 69) analisa uma reflexão de Moran sobre seu
encontro com Molloy que resulta num autocancelamento através do uso da
epanortose[3], a
figura de estilo que retoma um fluxo narrativo para reinterpretá-lo em sentido
contrário.
Emitir um facho de intensa
escuridão não é uma recomendação
prescritiva de algo a ser obtido pela vontade, mas a sugestão de que, se
adentrarmos ao aposento dos pensamentos
virgens (Keats, carta a Reynolds,
03.05.1818) do analisando desassistido da iluminação ilusória obtida pela
utilização da memória, desejo e conhecimento do analista, então estaremos aptos
a desenvolver uma percepção que consiga captar os pensamentos
selvagens do analisando, situados
sempre num espectro infra ou ultra-sensorial.
Certos artistas utilizam a técnica pictórica para
produzir uma ilusão sensorial chamada de tromp loeil: o
princípio subjacente a esse procedimento é explorar áreas de auto-engano no
observador, exatamente aquilo que ocorre nas instâncias de prestidigitação. Em
vez de o olho ser enganado, trata-se aqui muito mais do olho deixar-se enganar.
Cônscios do quanto à visão se deixa seduzir pelo óbvio, o artista e o mágico
camuflam o truque desviando a atenção do espectador do sítio onde ele se
concretiza.
Sabendo que o psiquismo humano está vulnerável a
uma variedade inesgotável de operações de auto-engano, compete ao psicanalista
instruir-se a respeito deste jogo de lusco-fusco que constitui, em última
análise, a essência da metapsicologia. De fato, a metapsicologia, no meu
entender, é o conjunto de operações econômicas que o psiquismo utiliza, visando
a representar emoções através de artimanhas
estéticas. Espera-se, portanto, que o
psicanalista, lançando no palco da sessão analítica um facho de intensa
escuridão, consiga rastrear às avessas o enredo criado pelo
analisando-dramaturgo, habilitando-o a reconhecer a ilusão
mental do principal personagem da
análise, ele mesmo.
Bion (1991, p. 271) oferece-nos um diálogo entre
P. A. (psicanalista) e Paul (São Paulo):
P. A.: A penetrante
flecha de escuridão é o que eu gostaria de usar
para iluminar o que Freud chama de áreas escuras da mente.
Paul: Usai
olhos encaramujados, duplamente escurecidos, como
disse Gerald M. Hopkins, e encontrarás a luz
embrionária.
3. Visão monocular Visão binocular
Em Film, nós espectadores somos conduzidos
a reboque da câmera, ou seja, pegamos carona numa visão monocular. O
personagem, designado no roteiro como O (curiosamente o mesmo signo usado por
Bion em Transformações para referir-se à Verdade Última), revela-se ao
final também reduzido à monocularidade.4 São várias as referências à visão binocular
espalhadas pelo filme: o pincenê, os dois orifícios na cadeira de balanço, os
dois botões que amarram a pasta de documentos, os olhos da gravura na parede e
assim por diante. O personagem, na concepção cinematográfica, é dividido em
objeto (que é perseguido) e em olho (que persegue): até o final do filme não
fica explícito que o perseguidor da percepção não
é um agente extrínseco, mas o próprio self. Para que isso aconteça, o
personagem é sempre visto pelas costas ou, no máximo, num ângulo lateral que
não exceda 45º, garantindo a ele uma zona
de imunidade (expressão de Beckett) que o
protege da angústia de ser percebido.
Em sua obra literária, Beckett está perfeitamente
cônscio dessas questões, abordando-as de diversas maneiras. Vejamos, por
exemplo, o reconhecimento por parte de Molloy (2007, p. 78) das limitações da
monocularidade:
E tendo só um olho, de um total de dois, que
funcionava mais ou menos como convém, calculava mal a distância que me separava
do outro mundo, e muitas vezes estendia a mão que se encontrava claramente fora
do seu alcance e muitas vezes batia contra sólidos apenas visíveis no
horizonte. Mas, mesmo quando tinha meus dois olhos, era assim, me parece, mas
talvez não, pois já vai longe esse período da minha vida e guardo dele uma
lembrança mais que imperfeita.
A seguir (p. 81), Lousse utiliza-se da visão
binocular MãeMulher para espreitar Molloy,
invertendo o sentido da espreita da cena primária e justificando a descrição
cáustica que Beckett faz das mães como putas
uníparas5 (ou seriam seres monopanópticos focados em
vigiar os filhos/maridos incansavelmente, como sua própria mãe?):
Lousse, eu a via pouco, ela não se mostrava muito
a mim, por discrição talvez, temendo me afugentar. Mas acho que ela me espiava
muito, escondida atrás das moitas ou das cortinas, ou agachada no canto de um
quarto do primeiro andar, com a ajuda de binóculos talvez. Pois ela não tinha
dito que desejava antes de tudo me ver, tanto indo como vindo, quanto parado,
em repouso? E para ver bem é preciso o buraco da fechadura, a frestinha entre
as folhas, tudo o que impede de ser visto e ao mesmo tempo só deixa ver do
objeto fragmentos por sua vez. Não? Sim, ela me inspecionava, pedaço por
pedaço, e sem dúvida até a minha intimidade ao ir deitar, ao dormir e ao
despertar, nas manhãs em que me deitava.
Um pouco mais adiante (p. 109-110), vemos
exaltada a visão binocular naquilo que ela tem de mais operativo, que é a
possibilidade de fundir duas imagens alternativas numa única imagem:
O que quer que seja, vejo uma mulher que,
enquanto está vindo na minha direção, pára de vez em quando e se volta para as
companheiras. Apertadas como ovelhas, observam-na afastar-se e fazem sinais encorajadores,
rindo sem dúvida, pois creio ouvir risos, ao longe. Depois, vejo-as de costas,
refazendo o caminho, e é agora que ela se volta para mim, mas sem se deter. Mas
talvez esteja fundindo duas ocasiões numa só, e duas mulheres, uma que vem na
minha direção, timidamente, seguida por gritos e risos das companheiras, e
outra que se afasta, com o passo bem mais decidido. Pois as pessoas que vinham
na minha direção, na maioria das vezes, eu as via vir de longe, é uma das
vantagens das praias. Eu as via como pontos negros ao longe, podia vigiar suas
manobras dizendo a mim mesmo, Está diminuindo, ou, Está aumentando. Sim, ser
pego desprevenido era por assim dizer impossível, pois me virava com frequência
também para a terra. Vou lhes dizer uma coisa, enxergo melhor à beira-mar! Sim,
esquadrinhando em todas as direções essa vastidão por assim dizer sem objeto,
sem vertical, meu olho bom funcionava melhor, e quanto ao ruim, havia dias em
que ele também tinha de se revirar. E não apenas enxergava melhor, mas era
menos difícil, para mim, arrear com um nome as raras coisas que via. Estas são
algumas das vantagens e das desvantagens da beira-mar.
Beckett utiliza como estrutura dramática básica a
interação entre pares de personagens que, em geral, representam a interação
entre funções psíquicas complementares ou antagônicas:6 é o caso de Mercier e
Camier, Vladimir e Estragon, Pozzo e Lucky, Nagg e Nell, Hamm e Clov. Hamm, por
exemplo, ocupa tirânico o centro de uma constelação onde, em função de sua
cegueira, funciona como um astro sem luz própria, dependendo para existir do
trabalho diligente de Clov que vasculha o mundo em busca de luzes que possam
iluminá-lo:
Hamm: Por acaso você já viu meus
olhos?
Clov: Não.
Hamm: Nunca teve a curiosidade, enquanto eu
dormia, de tirar meus óculos e espiar meus olhos?
Clov: Levantando as pálpebras.
[pausa] Não.
Hamm: Qualquer dia vou mostrá-los
a você. [pausa] Parece que ficaram completamente brancos. [pausa] Que horas
são?
Clov: A mesma de sempre.
Hamm: [gesto em direção à janela direita]
Você já olhou?
Clov: Olhei.
Hamm: E então?
Clov: Zero.
Quanto mais Hamm incita Clov a perscrutar o mundo
através da visão monocular de uma luneta que ele deve acessar na janela, mais o
resultado final é nulo; quanto mais sua aflição vai demandando a visão das
ondas do mar, das gaivotas, enfim do horizonte do mundo, Clov vai acumulando
uma fieira de zeros, deixando assim claro que o desentendimento entre eles não
só impedia a constituição de uma visão binocular, mas também parecia projetar
no entorno a cegueira de Hamm. Como bem nos lembra Souza Andrade (2005, p. 15)
em sua apresentação da tradução de Fim de partida (de onde extraí o
trecho acima), a relação sado-masoquista entre Hamm (evocação de martelo em
inglês) e Clov (associado a clou, prego em francês) caracterizaria uma disputa
estéril entre dois pontos de vista (vértices na terminologia de Bion) que nunca
se encontram.
Christopher Ricks (1990, p. 61), em sua brilhante
análise sobre as palavras moribundas de
Beckett constituintes da sua sintaxe
da fraqueza, dá-nos um belo exemplo da
constituição daquilo que eu chamaria de palavra
monocular para descrever o mundo. Ele
cita a passagem onde Hamm demanda peremptoriamente a Clov uma única palavra que
possa resumir o mundo que ele vislumbra com sua luneta através da janela:
Hamm: O que é o todo?
Clov: O que vem a ser o todo?
Numa palavra? É isso que você quer saber? Espere um pouco [direciona a luneta
para fora, olha, abaixa a luneta, vira-se para Hamm], cadavérico
[corpsed].
Rastreando a origem semântica de corpse,
somos informados que como verbo transitivo ele representa o ato de matar, de
produzir um defunto, mas como gíria teatral significa desconcertar
um ator durante sua apresentação através de algum erro.
Kenneth Branagh, o ator inglês, estende o termo para o riso incontrolável que
pode baixar no
artista durante sua encenação, jogando-o para fora do script original.
Isso sugere um estado análogo à hamartia grega, que é usado na Ilíada
(Brandão, 1986, p. 77), no sentido de errar o alvo, errar o caminho, cometer
uma falta, tropeçar por irreflexão; para Beckett, portanto, a palavra monocular
síntese da precariedade do mundo bem poderia ser descarrilamento.
Um lindo exemplo de palavra
binocular nos é oferecido pelo próprio
Beckett ao comentar os neologismos expressivos de Joyce: insatisfeito com a
eficácia da palavra doubt (dúvida) para significar estados extremos de
incerteza, ele substituiu-a pela expressão in twosome twinminds, que
evoca, com raro poder de síntese estética, a imagem do encontro
de duas mentes gêmeas divididas.
Vários estudiosos da obra de Beckett, inclusive o
próprio Ricks (1990, p. 47-48), chamam atenção para um aspecto sui generis
da sua biografia que foi a necessidade, depois de ter-se mudado para Paris, de
produzir uma obra binocular, ou seja, em francês e inglês, quase que
simultaneamente. O francês teria-se apossado de Beckett por ser uma língua que
lhe permitia expressar com simplicidade o jorro de sentimento que lhe invadia
quando sob efeito do tropismo que o impelia em direção ao sol negro da morte.
Uma boa maneira de acompanhar esta palavra
binocular de Beckett seria observar a
construção poética forjada para dar conta da extinção de isto:
imagine si ceci– just think it all this
un jour ceci– one day all this
un beau jour– one fine day
imagine– just think
si un jour– if one day
un beau jour ceci– one fine day all this
cessait– stopped
imagine– just think
Confrontado com esse exemplo, fica claro como o
francês permite uma fluidez e harmonia ausente do inglês. A fisiologia da visão
binocular, segundo Bicas (2004) nos ensina que esta visão ocorre pela
superposição dos campos visuais de cada olho numa estreita faixa de otimização:
aquém e além dela, ocorre diplopia e confusão, sendo necessária supressão
fisiológica (cortical) para eliminá-las; por outro lado, é importante assinalar
as benesses da visão binocular normal que são, em resumo, a percepção
simultânea, a fusão e a visão estereoscópica.
Nesse sentido, talvez pudéssemos dizer que para
Beckett a versão poética em francês era produto de uma visão binocular que
cooptou o pragmatismo descolorido do inglês através da estética expressiva da
língua francesa, gerando assim uma binocularidade essencialmente beckttiana:
afinal de contas, ceci cessait não é muito mais bonito e elegante do que
all this stopped?
Bion (1962, p. 54), como sabemos, foi o
introdutor do conceito de visão binocular em psicanálise ao tentar resolver as
contradições implícitas na teoria da consciência como órgão sensorial da
qualidade psíquica, proposta por Freud. Ao sugerir que a proliferação de
elementos- produz uma barreira de contato que determina, concomitantemente,
a separação de qualidades conscientes das inconscientes, Bion nos
disponibilizou um acesso privilegiado à gênese de duas funções cruciais do
funcionamento psíquico, a de correlação e a de auto-observação.
Por isso mesmo, no entanto, ele nos alerta que o
registro imparcial da qualidade psíquica do self fica comprometido, (já
que) a visão de uma parte pela outra é, por assim dizer, monocular.
Depois dessa formulação, Bion sentiu-se possuidor
de um potente instrumento de observação do desenvolvimento emocional, levando-o
a recomendar a absoluta necessidade, ao longo de uma análise, de ajudarmos o
paciente a utilizar a sua visão binocular para integrar suas vivências pré e
pós-natais, seu endoesqueleto com seu exoesqueleto, suas percepções
infra-sensoriais com suas percepções ultra-sensoriais, em suma seu Soma e sua
Psique. Aliás, a esse respeito Bion nos sugere um belo modelo para entender o
duplo trânsito entre estas duas áreas, o qual ilustra como uma desintegração
somato-psicótica7 cede lugar a uma integração psicossomática:
usando as pinturas feitas numa tela de vidro por Picasso (1956/2003) e os dois
diferentes vértices de observação, o do próprio pintor e o do cineasta que o
filmava de frente, é possível acompanharmos a inversão especular da imagem e
assim ecoar a inversão permanente entre o sensorial e o psíquico na visão
humana do mundo.
4 . Existirin-existir
A nostalgia das velhas
palavras nunca deixou de assombrar
Beckett. Poderíamos entender esse sentimento como expressão de sua certeza de
ter nascido com uma mensagem clara ao mundo, passível naquele então de ser
tão-só vagida, já que impossibilitada de ser proferida. Sim, porque, ouvindo
Beckett proliferar seu lamento variado sobre o tema único do nada, é
difícil não acreditar que esse grito de alerta já não estivesse presente ao
nascer:
A expressão de que não há nada a expressar, nada
com que expressar, nada a partir do qual expressar, nenhum poder para
expressar, nenhum desejo a expressar, junto com a obrigação de expressar
(Disjecta, 1949).
Nada a fazer (Fala inaugural de Estragon, Esperando
Godot, 1952).
Não ter sido enganado é o melhor que me terá
ocorrido, o melhor que terei feito, ter sido enganado, querendo não ser,
sabendo ser, e não me enganando de não ser enganado (O inominável,
1953).
Pois não saber nada, não é nada, não querer saber
nada também não, mas não poder saber nada é por aí que passa a paz, na alma do
pesquisador incurioso (Molloy, 1963).
É possível conjeturar-se que Beckett refira o ter
sido enganado ao fato de ter nascido sem
consulta prévia ou ao fato de ter tido um nascimento incompleto.8 Sua visão cética em
relação ao nascimento fica bem expressa na construção do neologismo wombtomb,
de nítida inspiração joyceana e que condensa o espanto de Vladimir em Esperando
Godot, diante da trajetória inexorável que catapulta o ser do útero para o
túmulo. Foi assim, que junto com Sébastien Chamfort, por quem nutria afinidades
de alma-gêmea, Beckett chegou a cunhar esta máxima cortante: Viver
é uma doença que o sono suaviza a cada dezesseis horas de modo paliativo: a
morte é o remédio.
Paul Sheehan (2000, p. 12), discutindo os Texts
for nothing de Beckett (1967), alerta-nos que a vacuidade
da inexistência seria o desejo fútil e
inatingível de nunca ter existido,
tentando impor-se ao já não existir mais
modesto da não-existência. É interessante observarmos em Beckett um padrão de ameaça
expectante: do mesmo modo que a partida
tem seu fim anunciado, mas nunca consegue terminar, que Malone descreve
interminavelmente sua morte, mas esquece de
morrer, o próprio Beckett parece execrar sua existência, mas, ao cabo e ao fim,
transforma seu sofrimento na matéria-prima de sua obra e, numa
curiosa combinação de Descartes e Schopenhauer, acaba subvertendo a máxima:
choro, logo existo (Souza Andrade, 2001, p.
47).
É curioso notar que no decorrer de suas obras
Beckett e Bion não fazem qualquer referência explícita às formulações do outro,
talvez por discrição ou mesmo por criptomnésia, mas o fato, no entanto, é que
eles exploraram os mesmos assuntos com notável semelhança. Darei um exemplo
claro a esse respeito. Em diversas ocasiões, indagado sobre a chave de acesso à
sua obra, Beckett respondeu que ela seria encontrada em dois enunciados: O
zero é mais real do que nada e Onde
nada vale a pena, nada deve ser desejado.
O primeiro enunciado é encontrado em Murphy
(1938, p. 138), obra inaugural de Beckett escrita provavelmente durante o
período em que estava em psicoterapia com Bion. A frase em questão dizia:
Não a paz entorpecida de sua (dos sentidos)
própria suspensão, mas a paz positiva que surge quando os algos (somethings)
cedem lugar, ou talvez simplesmente são adicionados, ao Nada (nothing),
este Nada do qual dizia gargalhando o Abderita9 que o zero (naught) é mais real.
Bion (1965, cap. 11), em linha com Platão, Kant,
Berkeley, Freud e Klein, estava convencido de que uma cortina de ilusão nos
separa da realidade, a qual, portanto, é desconhecida e incognoscível. Ele
utiliza o signo 0 (evocando o zero matemático) para designar a realidade última
de qualquer objeto, abarcando: a) Formas platônicas e os fenômenos que as
evocam; b) A divindade, deus, e suas
encarnações e; c) A Realidade Última ou Verdade. Seu postulado é que a
realidade não se presta a ser conhecida, mas somente a ser existindo:
anseia, portanto, pela existência de um verbo transitivo existir
(ou ser) a ser usado somente com o
termo realidade. Só
se pode estar em uníssono com
0 ou sendo 0.
Como depreendemos dessas duas exposições, o zero
é um conceito fundamental para ambos, mesmo se reconhecendo que para Bion ele
era um ponto de chegada, enquanto para Beckett constituía um ponto de partida.
O segundo enunciado caro a Beckett foi extraído
de um aforismo de Arnold Geulincx, um seguidor de Descartes, por quem ele se
encantou em Paris, formulado em latim: Ubi nihil vales, ubi nihil velis.
Ressalte-se aqui o uso estratégico da palavra nihil, que com sua aura
niilista remete-nos ao universo da desvalia e da falta de significado
associados à impotência e à falta de desejo ou paixão (Stevens, 2005, p. 1-2).
Nesse caso, a correlação inevitável é com a
recomendação de Bion de que o analista deveria abster-se positivamente de
memória e desejo, de modo a desvencilhar-se dos fios de sensorialidade que
acabariam por tecer a trama da cortina de ilusão, impedindo a dupla analítica
de produzir uma transformação em 0.
Contrastemos brevemente as perspectivas
existenciais do homem na visão de nossos autores. In terra bionensis, os
habitantes são convidados a serem competentes administradores
da dor psíquica, levando-os a ter que
enfrentar o sofrimento se possível através da
ciência, ou então, valendo-se de qualquer outro método disponível, inclusive a
religião, como Bion comentou algures.
Além do mais, eles são esclarecidos de que o medo de morrer está ligado à
vontade de viver: portanto, se o medo for excindido, o mesmo ocorrerá com a
vitalidade, o entusiasmo e a criatividade, deixando a pessoa num estado de
vazio aniquilador. Por isso, são orientados para se abrirem à multiplicidade de
vértices (Bion, 1970, cap. 8) como única fórmula de agir (act) pensando
o sofrimento, em vez de atuá-lo (act out).
Os personagens de Bion, apesar de não
apresentarem sua perplexidade a respeito da própria existência de forma
escarrada como os de Beckett, nem por isso deixam de se torturar em sua
intimidade com seus dilemas, abordando-os de vários vértices:
Padre: [dirigindo-se ao
Psicanalista, P. A.] Você está sendo extremamente autocontraditório ao propor
que ela [a psicanálise] é uma ciência e é verdadeira. Seria preciso que
ela tivesse um ponto de referência fora de si mesma. Você não pode acreditar na
Verdade mais do que lhe é permitido acreditar
em Deus. Deus é
Roland: ou não é.
P. A.: Não. Deus
é ou não é não passa de uma formulação
humana em conformidade com princípios humanos de pensamento. Não tem nada a ver
com a realidade. A única realidade, da
qual sabemos indiretamente são as várias esperanças, sonhos, fantasias,
memórias e desejos que nos habitam. A outra realidade existe, é,
gostemos dela ou não. Uma criança pode querer punir uma mesa que a tenha
machucado após uma contusão. Mas ela pode desejar punir-se por sofrer uma
contusão. Ela, em última análise, pode sentir-se compelida a acreditar que,
além do mais, existe uma mesa que não é nem boa nem má, que independe de ser
gostada ou não, ou de ser punida ou perdoada. Nós podemos decidir punir nosso
Deus ou nos punir por acreditarmos nele ou nela ou nessa
coisa. Isto não afetará a realidade que continuará a
ser real, a despeito de quão in-pesquisável, in-cognoscível ou além da
capacidade humana de apreensão seja o seu existir/não-existir.
A contribuição notável de Bion em relação aos
mecanismos de mudança de vértices é fruto, basicamente, de sua experiência com
psicóticos que o levou a perceber que a psique possui dois recursos poderosos
para lidar com a mudança catastrófica
(Bion, 1970, cap. 12) implícita no desenvolvimento emocional: a reversão de
perspectiva e a visão binocular. Mesmo quando estes recursos falham,
como na maior parte dos colapsos psicóticos, a psique ainda tenta organizar-se
a partir de um amplo acervo de sintomas mentais, sendo a única e importante
exceção oferecida por aquilo que Bion denominou de supremo
objeto não-existente. Esse objeto é violento,
voraz, invejoso, cruel, assassino e predatório, não respeitando a verdade, as
pessoas e as coisas. Seu modelo operativo seria o personagem pirandelliano que,
ao encontrar o autor e nascer, revela-se uma consciência imoral turbinada por
uma determinação invejosa de possuir tudo aquilo que os objetos que existem
possuem, incluindo a própria existência. Clinicamente, a psique que alberga
esta condição parece entreter uma fantasia em relação a um objeto
autocontraditório, que o obriga a existir minimamente com o intuito de poder
sentir que não existe. A progressão desta situação conduz a um cenário descrito
psiquiatricamente como estupor catatônico,10 no
qual a psique fica aniquilada das noções de espaço e tempo e imersa num estado
de não-emoção.
Um destaque especial deve ser dado à condição
clínica de certas personalidades descritas por Bion (1959) como albergando um
objeto interno que ataca qualquer tipo de vínculo entre objetos, ameaçando o
narcisismo primário ao conferir realidade a objetos não-self. Nesses
casos, as interpretações do analista podem ser tão minusculamente fragmentadas
que o paciente teme adormecer e, durante esse período de inconsciência, sofrer
uma drenagem da própria mente, mergulhando num estado de mindlessness.11 Tudo
se passa como se o self ameaçado de eclipsar-se pela presença de um não-self
poderoso resolvesse evadir-se deste terror
sem nome (Bion, 1962, p. 116) através
de um processo de auto-aniquilamento: ataca-se a percepção da angústia, não a
sua origem.
Em Transformations (1965, p. 151), Bion
associa a presença ou ausência de um objeto, sua existência ou não-existência,
ao desenho que
se possa obter dele, através da utilização geométrica de pontos e linhas: à
não-existência do objeto, reage-se com depressão. Por outro lado, o estado do
objeto, se ele está íntegro ou fragmentado, se é objeto total ou parcial,
depende de sua condição aritmética, se ele constitui uma unidade ou frações da
unidade: no caso do fracionamento, o sujeito reage pela mobilização de
ansiedades persecutórias.
In Terra beckttensis,por
sua vez, os recém-nascidos são prontamente vacinados contra a potência, o êxito
e a esperança. Em 1956 Beckett, numa entrevista ao New York Times,
declarou: Eu lido com a impotência, a
ignorância. Parece haver um tipo de axioma estético de que a expressão é
realização. Acho que hoje em dia aquele que presta a mínima atenção na sua
própria experiência descobre a experiência de um não-conhecedor, um
não-pode-dor [uncanner], aquele que não tem como, não pode. O outro tipo
de artista, o apolíneo, me é completamente estranho12
(cit. in Souza Andrade, 2001, p. 186-187). Um pouco antes, ele dissera: O
herói kafkiano está perdido, mas não é espiritualmente precário, meu povo, no
entanto, está caindo aos pedaços. Ao fim da minha obra, não há nada a não ser o
pó, o nomeável. Em meu último livro, Linnomable, há
uma desintegração completa. Nada de eu, nada
de ter,
nada de ser.
Nada de nominativo, nada de acusativo, nada de verbo. Não há meio de ir
adiante.13 A
última das coisas que escrevi– Textes pour rien– foi uma tentativa de
escapar da atitude de desintegração, mas falhou.
(cit. in Souza Andrade, 2001, p. 186).
Em Dream of fair to middling women
(Disjecta, 1983), o personagem Belacqua, tomado emprestado de Dante, passa
longas horas na cama curvado, sozinho no escuro, pensando no melhor método de
anular sua existência ou imaginando o livro que escreveria, no qual iria
expressar silêncios com mais competência do que jamais homem algum teria feito
reluzir as borboletas da vertigem.
A descrição da zona
escura da mente de Murphy pode ser
tomada como ilustrativa do espaço interior caótico no qual os personagens de
Beckett vão mergulhando de modo inexorável:
Um fluxo de formas, uma perpétua junção e
disjunção de formas
nada além de formas porvindo
e se desintegrando em fragmentos de um novo porvir, sem amor ou ódio ou
qualquer princípio de mudança inteligível. Aqui nada existia além de comoção e
formas puras de comoção. Aqui ele não era livre, mas um grão de pó no escuro da
liberdade absoluta. Ele não se movia, não passava de um ponto na geração
incessante e incondicionada, bem como na extinção, da linha (Murphy, p. 65-66;
tradução livre do autor).
Stevens (2005, p. 18), ao comparar a noção de nada em
Bion e em Murphy, comenta que, como
os vínculos com outros seres humanos são vividos como impregnados de crueldade
e pavor, ele é levado a uma idealização de um estado de não-sentimentos,
não-ligações, não-pensamentos, e a uma necessidade de encontrar um continente
inanimado (a cadeira de balanço) e um espelho que não enxerga e não sente (Mr.
Endon), ou seja, o protagonista de Film
repete literalmente vários dos conflitos de Murphy.
5. Epílogo
Em resumo, a obra de Bion qualifica-o como o
expoente maior da capacidade negativa no campo psicanalítico, enquanto a
obra de Beckett o credencia como o grande rapsodo da incapacidade positiva.
Um aspecto fundamental a ser assinalado é que,
numa leitura superficial, ambas as obras parecem ter ignorado a sexualidade,
mas, a meu ver, esta é uma interpretação equivocada. Talvez fosse mais
verdadeiro imaginarmos que, cônscios da esterilidade dos esforços humanos para
combater a morte, a suprema ausência (de vida), eles pintam a fertilidade com
tons sóbrios, remetendo-a à sua mera condição coadjuvante.
Anzieu (1992, p. 29), a partir da leitura de um
curto texto de Beckett escrito em francês em 1969 e denominado Sans (sem),
faz uma aguda observação de que este termo é homófono de sens (sentido) e de
sang (sangue),
palavra praticamente ausente da obra beckttiana. É verdade que suas escassas
referências à sexualidade ressaltam ou a degradação da mulher, presente já em
sua poesia inaugural, cujo título, na tradução de Paulo Leminski, ficou Prostitutoscópio
(1930) ou sua desvitalização mecânica como exposta em Malone Morre
(2004, p. 109), em que Macmann se
esforça para fazer seu sexo entrar no da parceira como quem tenta enfiar um
travesseiro numa fronha, dobrando-o em dois e empurrando-o com os dedos–
levando-o a concluir com desalento que dois
é companhia.14
No período epistemológico da obra de Bion, a
sexualidade fica condensada de modo abstrato em torno da configuração
continente-contido (), mas, na trilogia, ela
sofre ondas sucessivas de encarnação nos fatos da vida real como, por exemplo,
no latejar sanguíneo de Alice ao excitar-se através do contato carnal com
Rosemary.
Film nos permite acompanhar a
progressiva restrição da visão (visão binocularvisão monoculargrau zero de visão) e, paralelamente,
uma escalada de negativização da condição social, da sexualidade, da memória,
da identidade, das funções corporais e mentais. Na medida em que o self
vai deixando de ser percebido e de perceber-se, ele vai extinguindo-se e sua
sobrevivência vai sendo acompanhada pela checagem do próprio pulso: o sangue
fica reduzido assim a um mero sinal vital.
Tanto Bion como Beckett potencializam suas visões
de mundo a partir de indagações existenciais essenciais: Como
pensar o impensável, como nomear o inominável, como conhecer o incognoscível (O
nada ou
0)? Suas formulações argutas nos ensinam que o
existir é indissociável do inexistir, que a coisa implica na não-coisa, que a
positividade emerge da negatividade.
Beckett, como Schopenhauer, persegue o paraíso
perdido da não-existência e proclama, com orgulho, que
sua obra, ao contrário do work in progress de Joyce, contenta-se em ser
um simples work in regress.
Bion, como Milton, busca a potência da forma no infinito
vazio e informe.
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of Melanie Klein and Object Relations, 15(2): 243-64.
Endereço para correspondência
Luiz Carlos Uchôa
Junqueira Filho
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
Rua
Helena, 170/123
04552-050– São Paulo SP – Brasil
Tel.: +55 11 3842-3060
E-mail: mr.junqueira@uol.com.br
1 Trabalho apresentado na Jornada Psicanálise
– Bion: Transformações e Desdobramentos, em
15 de março de 2008, na sede da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São
Paulo.
2
Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São
Paulo SBPSP.
3
Décadas depois, Bion iria se referir à angústia do psicótico, que só consegue
sonhar na presença do analista.
4 Tapa-olho, em
inglês, é designado por film, sugerindo assim um interessante jogo de palavras
com Film, como se a parte e o todo se sobrepusessem.
5 Há uma lógica
intrínseca neste ataque mortífero à capacidade procriadora das mulheres, na
medida em que, para Beckett, nascer é passar a habitar um vale de lágrimas.
Para um pós-kleiniano como Bion, a capacidade de elaborar a frustração habilita
o indivíduo a construir uma mente no agora Vale
de construção da mente (Keats, carta de fev./maio
de 1819 a George Keats).
6 Na era informática em que vivemos, é
significativo reconhecer que se trata, essencialmente, de uma configuração
binária, sem esquecermos a importante ressalva de que binário é zero e um e não
um e dois.
7 Bair
(1978, p. 372) sugere que nenhum personagem de Beckett condensa melhor que Molloy
suas preocupações com as precariedades humanas: alienação, isolamento, exílio e
separação mente-corpo.
8 Beckett afirmava ter tido o insight
de sua vida durante uma conferência de
Jung na Tavistock a que ele assistira por insistência de Bion e onde equacionou
sua catástrofe pessoal à circunstância de só poder ter nascido parcialmente. e
Bion, e onde ele equacionou a sua cattock que ele apruerendo nxpressar, nenhum
poder para expressar, nenhum desejo a expressa
9 Referência a Demócrito de Abdera, que
usava um termo aritmético para representar a nulidade, mas que admitia ser
combinado com algo mais para gerar alguma
coisa (something): daí a conclusão de que Naught
is more real than nothing. Sheehan (2000, p. 11) refere-se
a essa passagem como O longo gargalhar silencioso
do cognoscente não-existente.
10
Beckett sugere que, de tanto se identificar com um paciente em estado de
estupor catatônico no hospital psiquiátrico, Murphy ficou igual a ele.
11 Até
hoje não encontrei uma tradução adequada para esse termo, que sugere um estado
de liquefação mental
muito parecido com algumas descrições de Beckett, como veremos a seguir.
12 Essa
vivência coincide totalmente com o conceito de capacidade
negativa proposto por Bion (1970, p.
125).
13
Lancei-me desavisadamente à leitura de O inominável (1999) e me percebi
sofregamente engolindo trechos assim (p. 7-8): Não,
estive sempre sentado, neste mesmo lugar, com as mãos nos joelhos, olhando para
a frente como um grão-duque num viveiro de pássaros. As lágrimas deslizam pelas
minhas faces sem que eu sinta necessidade de piscar os olhos. O que me faz
chorar assim? De quando em quando, não há nada aqui que me possa entristecer.
Talvez seja o cérebro liquidificado. A felicidade passada, em todo caso, me
fugiu totalmente da memória, se é que ali esteve alguma vez. [
]
Nada muda aqui desde que estou aqui, mas não me atrevo a concluir que não venha
a mudar nunca. [
] Estou desde que estou, aqui
minhas aparições alhures foram feitas por terceiros. [
]
Não, não é que seu sentido me escape, pois o meu também me escapa igualmente.
Tudo aqui, não, não o direi, não podendo. Não devo minha existência a ninguém,
essas luzes não são as que clareiam ou queimam.
Após cerca de vinte minutos dessa leitura, senti-me tonto e nauseado, sendo
obrigado a interrompê-la e permanecer em repouso. O que se teria passado? Nos
dias subseqüentes, gradualmente, fui percebendo que a experiência da leitura me
induzira a um estado de mindlessness, no qual eu me sentira totalmente
impotente. Fiquei aliviado alguns dias depois, ao descobrir um comentário
crítico sugerindo que, nesse texto, instaura-se
como princípio de ordenamento do discurso o desequilíbrio, uma espécie de
labirintite verbal, vertigem que contamina tanto o leitor, como o mundo
representado (R. Champigny, Adventures
of the first person. In M. Friedman (org.), Samuel
Beckett Now, Chicago/Londres: University of Chicago Press, 1975, p.
119-128. Cit. in Souza Andrade, 2001, p. 151).
14 O narrador de O inominável não tinha
nariz nem sexo, pois Por que deveria ter um sexo
se sequer tenho nariz? Essa é uma observação sábia,
pois, sem o faro adequado quanto a seu objeto, a sexualidade sofre uma série de
descarrilamentos e, de fonte de vida, transforma-se em fonte de desastres.
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[1] Dado
que o sentido literal de um oximoro (por exemplo, um instante eterno) é
absurdo, força-se o leitor a procurar um sentido metafórico (neste caso: um
instante que, pela intensidade do vivido durante o mesmo, faz perder o sentido
do tempo). O recurso a esta figura retórica é muito frequente na poesia mística
e na poesia amorosa, por considerar-se que a experiência religiosa ou do amor
transcende todas as antinomias mundanas.
[3] Retórica Figura que
consiste em emendar, por arrependimento fingido, a palavra ou frase já
proferida, para dar mais força à expressão.f.
Correcção ou emenda de palavra ou frase por fingido
arrependimento, para se empregar outra mais expressiva.
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