A BOA VELHINHA


Quero relatar um episódio que aconteceu com um casal de amigos que é, de certa forma, emblemático. Um quadro real e cruel do como se se vive os dias de hoje.

Este casal mora num edifício de alto nível, em Porto Alegre, numa zona valorizada. Todos os vizinhos se conhecem, vivem bem e em harmonia, cada um respeitando as regras sociais de tolerância, educação e cordialidade. Em suma, um lugar que se pode morar depois de atingir uma estabilidade econômica, profissional e, na maioria dos casos, também uma estabilidade emocional.

Um domingo, a vizinha residente no apartamento, uma senhora caridosa e religiosa, que poderia muito bem ser caracterizada como uma Boa Velhinha, foi a missa. Para chegara igreja, duas quadras abaixo, usa um táxi. Fato que costuma acontecer todos os domingos. Na volta, ela é abordada por assaltantes que entram com ela pela garagem do prédio. Os assaltantes rendem o porteiro e obrigam a Boa Velhinha a leva-los ao apartamento para consumar o roubo.

A Boa Velhinha revela que mora com uma filha. Podemos imaginar o que passa na mente de uma senhora idosa frente à ameaça dos assaltantes. Ela deve ter se imaginado sozinha com os facínoras e, dentro do elevador toma um decisão. Resolve levar os assaltantes para o apartamento... da vizinha que mora no apartamento em frente ao seu! Chama a vizinha com uma intimidade de mãe e filha. Através do olho mágico, a vizinha da frente vê a Boa Velhinha acompanhada de um rapaz, acha estranho, mas supõe que a Boa Velhinha esteja passando mal, e prestativa decide.

Abre a porta.

De imediato, é dada a voz de assalto. Roubam tudo do apartamento da vizinha. O clima é de pavor. Todos nervosos. A Velha Senhora ao se incitada a rezar pela vizinha, num momento de pavor e suplica, responde, num surto materialista, que não adianta mesmo rezar.

Até aqui, até que a situação é plausível e possui, por certo, um humanismo no limite da ética, mas ainda assim compreensível. Afinal um senhora assaltada, com medo, acuada e sem poder pensar, pode muito bem levar os assaltantes para a casa de outro.

Após o episódio, o filho da Boa Velhinha é chamado e, sob o choque do acontecido, se prontifica imediatamente a pagar todos os danos financeiros, computador, jóias, dinheiro, eletrodomésticos, enfim todo o resultado de uma vida de trabalho.

Neste momento, ao ser perguntada pelo marido da porque levou os assaltantes para a residência da vizinha, a senhora, com uma sinceridade mórbida reponde que em sua casa haviam muitos dólares guardados.

A situação ganha uma complexidade quando, duas semanas depois, passado o susto, o Bom Filho volta atrás e comunica que não ira ressarcir a vizinha de sua mãe.

Este ato sim está a merecer uma consideração especial. Será que ao negar assumir a responsabilidade o filho não está tornando sua mãe cúmplice? Até que ponto a atitude o Bom Filho não é um laudo acusatório contra a própria mãe? O que difere do tipo de banalização popular do tipo “morreu, morreu antes ele do que eu”? Que mundo é esse onde passado o impacto dos acontecimentos, eles se tornam banais, corriqueiros e sem repercussão e devolve cada um a um melancólico salve-se quem puder? Que vida é essa que estamos vivendo?

Comentários

Nei Duclós disse…
História impressionante, de grande intensidade dramática. Não há estabilidade, mas conflito. Toda situação humana é a soma de situações que jamais encontram estabilidade. Podemos imaginar a carga de frustrações e ressentimentos num prédio onde as pessoas alcançaram "um nível de equilíbio social, emocional, econômico". Num país em ruinas e endividado, ninguém tem fundos, mesmo aqueles que parecem ter. A velhinha guardava dólares, pois não? Era sua poupança, o dinheiro embaixo do colchão, como nos tempos pré-capitalistas. Guardar dólares é expediente de tempos de crise. A boa vizinhança, esse mito de uma clásse média que evaporou, serviu para terceirizar a tragédia: a moradia em frente substituiu o alvo. Notamos também as rotinas sendo mapeadas pelos facínoras, sinal evidente de falta de equilíbrio social. Amargura na imobilidade. No mínimo, Gorki e seus Pequenos Burgueses. Rúsia tzarista. Ou coisa pior. Magnífico post, Julio.
FERNANDO VIERI disse…
Oi Julio,
Tudo bem?
Gostaria muito de ler alguns textos seus! Sou ator e estudante de jornalismo! Tem como me passar por e-mail ou vamos nos falando! Queria ler "A Coisa certa"

Att,
Fernando Vieri
www.fernandovieri.blogspot.com
Marcelo Ádams disse…
Júlio, é inacreditável essa história! Fiquei embasbacado com o que as pessoas são capazes de fazer, e só posso concluir que não existem boas velhinhas, como uma categoria fechada, mas sim Boas Velhinhas Dependendo da Ocasião. Fazer mal ao outro, propositalmente, me parece tão absurdo, que prefiro acreditar que essa seja uma exceção, e que a regra é a ética e a consciência do bem. Utópico, sim, mas a única maneira de suportar o mundo.

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