BAU DOS SEGREDOS
Este é um conto original de Julio Conte, qualquer semelhança com a vida real ou de pessoas reais é mera coincidência.
A pressão alta, o diabetes e os infartos sucessivos, deixaram papai quase invalido, dificuldade de se locomover, suplicio engolir alimentos sólidos e se engasgando com os líquidos. Além das dores no corpo, artrites que enrijeceram suas articulações e foi então que a morte passou a ser uma habitante frequente de seu quarto, companheira a contar as horas e os minutos da existência, uma sombra sobre as nuances dos moveis que se acumulavam desorganizadamente no quarto do velho pai como seu tique taque irreversível. Por isso, quando ele finalmente chegou aos 102 anos a família toda esperava o desfecho para qualquer instante. A ansiedade e a preocupação passaram a frequentar da mentes dos filhos e netos, chegando, em determinados dias, entre a urgência e o desejo. Uma cena tragicômica se passou depois de uma grave infecção no qual papai debilitando restava sobre músculos flácidos e memória desaparecida. Encontrava-se inerte no leito. O padre foi chamado as pressas, e extrema-unção foi ministrada. Minha mãe, abalada frente funesta possibilidade, depois de sessenta anos a partilhar o dia a dia com ele, sentou-se exausta no sofá ao lado da cama e mergulhou num silencio tão absoluto que seus corpo parecia de ter desistido da alma. Minhas irmãs, em torno de papai começaram as despedidas, agradecimento, mensagens e arrependimentos:
- Adeus, paizinho, vai em paz.
E ele ria feliz como se estivesse em cima de um carro alegórico da Festa da Uva. As vezes em seu sorriso mostrava as gengivas que os anos de uso de próteses dentaria deformaram de modo a, ao ser retirado, o rosto todo tomava uma forma de um homem desconhecido, nada parecido com aquele senhor forte que na juventude e vida adulta conquistara um lugar de destaque na sociedade. O mesmo homem que, isso não se falava dentro da família, fazia muito sucesso juntos as mulheres. Sempre de forma recatada e clandestina. E foram muitas e tantas a ponto de sua reputação atravessar as ruas e os quarteirões da cidade, mas, por habilidade, sorte ou destino, nunca entraram em casa. Santuário preservado. Ali sempre um homem comedido, religioso, o pai de família e abnegado. Foi então que, frente e avalanche emocional proporcionada pelas despedidas ele, supondo que este seria seu papel na tragicomédia, começou a abanar. Agradecendo a todos o apoio, o carinho, o amor. Por um momento era de novo um politico em carro aberto fazendo campanha eleitoral quando a politica tomara de assalto seus projetos e o afã de reconhecimento popular, a fama e o prestigio, parecia ter na vida pública o caminho mais curto entre dois pontos.
Quando o médico, semblante fechado, sem muitas palavras, verificou que a pressão estava normal, a frequência cardíaca em ritmo regular e firme e a respiração suave e tranquila. Surpreendeu-se com o estado clínico debelando a precoce despedida.
Seis meses depois que papai se esquecera de tudo, os níveis de glicemia normalizaram. A velha diabetes que atacara insistente suas artérias durante anos, entupindo e prejudicando a circulação dos vasos do coração, cérebro e rins ao longo de sua longa vida parecia ter sumido. Agora o sangue fluía fácil e a glicose em doses normais circulava como se todo o passado de doenças crônicas nunca tivesse existido naquele corpo centenário. Seis meses depois a pressão arterial, outro martírio, que oscilava entre 180x100, chegando a 240x110, sempre no precipício do infarto, estabilizou num excelente 120X60. Fatos que deixaram os médicos abismados. Parecia que quanto mais ele esquecia quem era, mais o corpo adquiria vida própria, buscava uma espécie de sobrevivência, declarando-se republica autônoma, decretava o exilio da mente, na ditadura de se manter vivo. Como se a célula, autônoma, em sua plenipotência decidisse viver por conta própria.
Foi nesta época que papai começou a rir e a brincar como uma criança, enquanto que a família em torno da cama, esperava pela sua morte, e foi também quando o dinheiro começou a escassear. As economias se esvaziaram em atendimentos médicos, planos de saúdes cada vez mais aviltantes, fisioterapia. Mas o vilão maior foi a aposentadoria progressivamente menor, indiferente aos anos de pagamentos em taxas máximas, menos ainda nos trinta salários prometidos nos anos 20 e que hoje não passava de um salário mínimo e meio que mal pagava o plano de saúde compulsório embutido e voraz e surrupiado mês a mês por novas leis que o governo insistia a decretar a revelia do direito constituído. O conflito familiar se estabeleceu ao se discutir modos de prover os velhos pais. Surgiram as falências pessoais, as incompetências administrativas, a inveja dos filhos, o mesquinho das horas, os fracassos, tudo o mais que até então ficara encoberto pelas ações profiláticas do velho pai e que sob o do narcisismo familiar permanecia guardado no velho baú dos segredos, reduto das luxurias e das perversões depositadas e inconfessas.
Numa tarde de sábado, três da tarde, o sol da primavera disputava com o vento a primazia da folhas, quando ele se encontrou ali, deitado e brincando com as mãos. Era outra vez um menino alegre, um bebê a rir sozinho na penumbra de suas descobertas e nas revelações da vida. A família em torno, chorava ansiosa, enquanto para ele, a morte não existia mais. Não era mais uma possiblidade, uma expectativa. Ele estava no paraíso. Para a família era uma espera desgastante e intolerável e um desejo abjeto de que aquilo tudo chegasse ao fim de uma vez. Para papai aquilo era apenas uma brincadeira com as mãos. Como um bebê que descobre o polegar e com a boca se delicia com seus sabores e formas. De repente, olhou para a lâmpada como uma criança que enxerga a luz pela primeira vez. E ali se quedou, entre a cegueira e a iluminação. Para ele, o horizonte da morte não existia mais. Mas para nós sim.
O ciclo da vida, como uma ferradura, dobrava se sobre si mesmo como em busca de um inalcançável ponto zero, origem e fim de tudo
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