DRAMATURGIA DA IMAGEM

palestra de Júlio Conte para mediadores da BIENAL DO MERCOSUL

Médico psicanalista, dramaturgo, diretor de teatro, membro pleno do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre, membro fundador do Instituto W.R. Bion, Professor substituto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escreveu de dirigiu Bailei na Curva, Não Pensa Muito Que Dói, Pedro e a Girafa, Um Negócio Chamado Família, A Coisa Certa, Se Meu Ponto G Falasse entre outras.

Boa tarde a todos. Estou aqui convidado pela organização da Bienal do Mercosul para falar sobre artes plásticas. Esta conversa me deixa bastante preocupado por que, em primeiro lugar, não sei nada de vocês e não sei a que público estou me dirigindo. Mesmo assim, correndo este risco de estar me encontrando com este desconhecido que são vocês, acho que podemos fazer deste momento um ato criativo nosso. Quem sabe possa ser este momento possa ser interessante para vocês me conhecerem e eu possa conhecer vocês e a gente consiga conversar algumas coisas que temos em comum e outras que não.

A idéia de eu estar aqui também me é inquietante, na medida que trabalho com psicanálise, trabalho com dramaturgia e com teatro, direção teatral, e principalmente, porque eu nada entendo de artes plásticas. Além, é claro, do interesse natural de ser uma área adjacente à arte com a qual eu trabalho, que é o teatro.

Eu queria começar esta conversa desde uma outra perspectiva que a plástica propriamente dita, porque tanto o dramaturgo quanto o psicanalista, ambos direcionam o seu interesse para um mesmo objeto, uma imagem, e é em direção à questão da imagem que eu vou tentar desenvolver algumas idéias. Essas idéias estão muito embrionárias ainda, faz pouco tempo que eu comecei a trabalhar sobre elas e elas sobre mim. E o título dessa fala, dramaturgia da imagem, desse direcionamento, cria esse norte em direção à imagem. Por este caminho a primeira questão, básica, é o que é a imagem? Como é que ela se forma dentro de nós? O que quer dizer este título eu coloquei o nome de Dramaturgia da Imagem, o que significa isso? Sem ter uma resposta imediata e pronta, vou em busca de um sentido e é dessa dramaturgia da imagem, desta imagem narrativa, este enigma que eu vou tentar conversar com vocês.

Então a se poderia começar da seguinte forma: o homem é um animal que se auto-representa. Isso todo mundo sabe, é uma coisa óbvia e essa auto-representação se produz o tempo todo, pela fala, pelo gesto, pela poesia, pela plástica, até chega ao extremo de auto-representar pelo próprio corpo. A auto-representação pelo próprio corpo ela pode aparecer de diversas maneiras. Ela aparece através do jeito de se vestir, do jeito de falar, do jeito de ser e do jeito de adoecer e, finalmente, pelo jeito de morrer. Isso quer dizer que o sujeito se auto-representa tanto que pode alterar o seu corpo com esta auto-representação. Do ponto de vista patológico inclusive e, às vezes, criativamente. E a origem destas imagens, também dentro do corpo, e que pedem passagem se devem ao fato de que o homem se representa pelo próprio corpo porque é o corpo que origina as imagens, e é partir do corpo que as imagens são produzidas. Então se tomarmos a questão da visão do ponto de vista neurológico, temos que uma criança recém-nascida, em seus primeiros minutos, enxerga alguma coisa, embora alguns achem que não e temos controvérsias sobre esta visão primeira. Sabe-se que logo ela pára de ver e volta a enxergar quase 30 dias depois do nascimento. Imagina-se que nesse primeiro momento de visão ela produza algo, ela se conecta com algumas imagens e aos poucos estas imagens vão se distorcendo de tal forma, vão se criando contrastes entre os momentos de escuridão, a suposta paz intra-uterina, uma tepidez repleta de sons corporais, um ambiente imaginariamente aconchegante, a penumbra entrarão em contraste com a excessiva iluminação do dia, do extra corpóreo, do fora do corpo da mãe. E essa iluminação vai produzir uma cegueira. No entanto algumas imagens são registradas neste momento. Interessante porque esta cegueira, esta luz que ofusca, é uma imagem bastante representada. Aparecem em vários lugares e várias situações, aparecem nas imagens de Deus, sempre com iluminações, aparece na idéia própria de iluminações, de seres iluminados, aparece na idéia de encontros extra terrestres, aparece naquelas situações que são representadas de contatos de vidas passadas, aparece em contatos com experiências de outro mundo. Então assim, eu que sou um cético, penso que por aí tem alguns elementos que se pode pensar sobre essa questão da produção da imagem a princípio relacionada com a maturidade do sistema neurológico. E como isso vai construindo dentro da mente de uma pessoa as suas imagens. Até que ponto essas percepções são gênesis deste tipo de representação que eu estou falando é uma pergunta para o qual não temos resposta.

Mais que tudo me interessa como as imagens vão se produzindo dentro da mente humana, não só os aspectos perceptivos, ou seja, não só ligados ao sentido, mas ligados aos fenômenos mentais. E aqui temos que separar bem o que é percepção do que é o registro desta percepção. O que é da ordem do neurológico e o que é da ordem do mental, do psíquico.

Sabemos que a primeira forma de pensar é por imagens. Tem se a idéia de que se os animais pensam e ocorrem dúvidas sobre este fato deles realmente pensarem, se é o que eles fazem é o mesmo daquilo que chamamos de pensamento, eles o fazem, com certeza, através de imagens. E as imagens elas se originam no aparelho perceptivo, neurológico, mas para terem permanência em nossa mente eles têm que estar associados a uma experiência emocional. Então, tem que haver uma representação e um afeto para que estas imagens possam se estabelecer. E o que vem a ser isso? Tomando assim um modelo biológico de um bebê e as suas origens, o bebê quando nasce sente necessidades, frio, fome e fatalmente se ele tiver sorte vai ser atendido por um adulto que interpreta aquelas reações vasculares de choro, de grito, reações tais como ficar com a pele vermelha e o adulto interpreta isso e lhe dá um sentido. Ele, o adulto, olha para a criança e diz: “Ah, isso aí é fome! Isso é sede! Agora ele está com frio! Agora está na hora de dormir!” Quem dá este parâmetro é o adulto que consegue interpretar aquelas reações da criança transformando em linguagem. Então, quando ele faz isso, o adulto pratica o que se chama de uma “ação específica”, ou seja, ele satisfaz uma necessidade específica do bebê e como isso liga a sensação como uma significação. Quando ele faz isso ele abre o corpo do bebê para uma nova vida, para uma vida simbólica, para uma vida totalmente nova, como se o bebê nascesse de novo. Ele abre o corpo erógeno do bebê e inaugura um processo que não vai ter mais fim. Ou seja, ele começa o processo de simbolização. E o processo de simbolização inevitavelmente vai inserir aquele sujeito na cultura, isto é, no mundo representacional. O homem perde seu lugar na natureza e adquire lugar na cultura. Como é que o bebê vai fazer isso? Aqui um parênteses. Estou usando o bebê mas não pensem só em um bebê pois trata-se somente de uma cena, como se fosse uma cena de teatro. Na verdade não é bem assim. Mas para a gente pensar cria-se esta cena para entender o que está acontecendo. Estou fazendo uma pequena dramaturgia, fecha parênteses. O bebê vai ligar então estas imagens de satisfação, o calorzinho, a voz da mãe, o leitinho quente, a canção de ninar que estiver acontecendo ele vai ligar estas imagens com a sensação de fome e com isso vai criando este sistema de representação. No próximo ritmo biológico de fome, frio, sede, cansaço, etc ... o bebê vai invocar aquela imagem daquilo que o satisfez. E essa imagem se articula como um sistema imagético, ou seja, como uma narrativa, uma narrativa via imagens. A criança cria formas de representação dos objetos que realizam desejos. Quando aparece esta imagem na mente, nessa mente primitiva, nessa mente humana em construção, vai se criar uma estrutura narrativa como se fosse uma peça de teatro, como se fosse um filme, como se fosse uma sequência em que a uma sensação cria-se uma imagem, evoca-se essa imagem no sentido de presentificar essa imagem que vai produzir a satisfação e é onde começa o bebê, é onde o bebê começa a alucinar. Alucina mas essa imagem não vai matar a fome, infelizmente. E aí ele vai tentar fazer outras coisas. Começa a fazer gestos, gestos mágicos, mexe o dedo, o braço, faz movimentos, esses pequenos movimentos de mão, os olhos, os braços, os dedos que buscam encontrar esse objeto perdido. Porém esta nova satisfação só vai ocorrer quando houver uma alteração de fato da realidade, a aproximação do leite, o calor da mãe, o aconchego, uma cantoria para dormir. Posteriormente a esta cadeia de imagens se associam os sons e a palavra. Então a primeira forma mental é a imagem. Sobre ela se constrói o sistema do pensar, o fantasiar, ou também pode-se chamar o imaginário. Esse imaginário é a fonte de produção das imagens dos homens. Desde John Milton, que é um poeta inglês que escreveu um livro bastante importante, bastante famoso, chama-se “Paraíso Perdido” onde, no canto 13, ele faz uma referência a história do início do mundo onde Satanás, que era o anjo mais querido e mais inteligente, rivaliza com Deus e, como castigo, é jogado ao caos, ao Universo e aí ele cai eternamente. E nesse cair é onde ele vai cair em si, quando ele justamente vai se reconhecer como o Diabo. O diabo é o grande personagem do paraíso perdido, ele cai em si. E durante esse verso John Milton faz uma referência a um vazio infinito e sem forma, esse caos. E desse caos esse Satanás, esse diabo, esse anjo que perde a característica de anjo, começa a cair, começa a descobrir formas que aparecem desse vazio, desse infinito sem forma. Desse caos começa a se produzir imagens, começa-se a separar coisas, começa-se a produzir diferenciações. Também São João da Cruz tem uma passagem parecida com essa, quando ele vai falar da noite escura, na noite escura onde mora o mistério e as trevas e o amorfismo surge a forma. O Mário Quintana, ele fala de outra forma essa mesma situação, ele diz que a sucata, quanto mais sucata mais pode vir a ser outra coisa. Então estou pegando essa questão, desse caos começa-se a organizar algumas imagens e essas imagens vão adquirindo um sentido de realização, de desejo, um sentido de resolução de questões que estão demandando resultado, estão pedindo mudanças e essas imagens vão se organizar como uma narrativa. Essas narrativas por imagens nós acabamos tendo contato com elas nos mitos. Eles contam a nossa história, são, de fato, a história fantasiosa da humanidade. Nosso imaginário está condensado nas histórias míticas. Por isso que também a psicanálise e outras áreas afins vão buscar representações nos mitos, porque eles falam das nossas origens e possuem algumas características que marcam o destino das leituras e oferecem várias intepretações pois os mitos sempre possuem várias versões. Cada mito, Édipo, Electra, Orestes, qualquer história mítica, tanto as originadas do mundo grego quanto os mitos dos índios da Amazônia, todos têm a mesma característica de possuir diversas versões. Sempre, numa versão ou noutra, se diz que alguém morreu um pouco antes ou um pouco depois. Estas várias versões são, na verdade, um conglomerado de fatos numa ordem absurdos, desrespeitam a lógica da física, da química ou da biologia. Nasceu um filho de uma coxa por exemplo, ou ejacular no chão e aí nascer vários monstros, são situações que a gente vê na mitologia grega, por exemplo. O que possibilita esta articulação é que trata-se de imagens e, ao se condensarem impossibilitam uma leitura única. E justamente aí, está o grande mérito, por isso elas suportam uma multiplicidade de leituras. Não se aderem a um significado único mas, pelo contrário, o caráter deslizante da imagem lhe confere uma multiplicidade de sentidos. Então os mitos são a história imaginária das nossas origens. Seria assim como os tempos bíblicos das nossas origens onde a gente se reconhece momentos perdidos da nossa humanidade. Essa história que eu contei do bebê é uma cena mítica, não acontece assim como eu falei. O bebê não sente fome, daí vem a mamãe, daí dá leite, daí ela imagina, aí a criança sente fome de novo. Ele sonha com a mãe, alucina a mãe, daí a mãe vem e ele registra e cria aquela imagem que lhe dá satisfação. Isso é uma cena mítica. Isso foi criado para dar sentido a uma cena original da qual a gente não tem como saber, uma cena original que estaria na mesma proporção que a coisa em si, Kantiana, ou seja, ela é só conhecida através dos fenômenos, através das representações. Nunca é conhecida em si mesma, ou seja, o ser humano está completamente fraturado com o real, alienado da verdade absoluta. A verdade absoluta é possível de ser vivida mas nunca falada porque na hora em que ela é representada, no momento que ela é falada, deixa de ser. Porque falar da verdade já é mentir, já é uma versão, já é um aspecto, uma distorção, já é uma representação. Então as palavras são representativas da tentativa de restituir a verdade através dessas imagens. Dentro desta estrutura narrativa o que é que vai acontecer ? Vão se produzir metáforas e metonímias. São formas do consciente se manifestar, ou seja, são marcados pelo deslocamento, o que quer dizer, uma coisa que toma o lugar de outra e assim adquire o sentido e que ao ser deslocando, passa a ter o mesmo sentido só que ela é representada por outra coisa. Ou metonímia, quando há condensação de vários elementos de uma mesma representação. Eu tive uma experiência quando eu estava, há um ano e pouco atrás, na frente da Guernica. Estava no Museu Reina Sofia, entrando pelo corredor, no caminho já se vê vários esboços, e que alguns foram reaproveitados no quadro final, outros não. E aí aquele quadro, a emoção que produz quando uma pessoa toma contato com uma obra assim como a Guernica, ao vivo, é algo do não compartilhável. Nossa cultura atual foi se acostumando e se submetendo a acreditar que ver pela televisão é o mesmo que ver ao vivo. A ilusão de que conversar pela Internet tem o mesmo efeito que conversar ao vivo. Embora a conversa num chat tenha um efeito de ser, tem um efeito interessante na medida que o diálogo se dá no “modo dramático” de conversação. Isso possibilita imaginar a pessoa da mesma forma que se imagina quando se lê uma peça de teatro. Assim se imagina, através da fala, a pessoa, o corpo, a voz. Mas, de fato, estar frente à uma obra que nem a Guernica, que é uma condensação, ou seja, toda a situação aparece em pequenos detalhes, as mulheres, a Guerra, a bomba, os corpos dilacerados, os olhos desesperados... Ela se condensa de tal forma que produz um efeito impressionante. É uma articulação de imagens que produz uma narrativa. Ela tem o mesmo efeito de uma história contada com início, meio e fim, só que não aparece nem início, nem meio, nem fim, aparece uma condensação de vários elementos que ali a gente cria na nossa mente o antes e o depois daquela situação. Então estou falando da metáfora e metonímia. A metáfora se utiliza de um conceito Kantiano de imaginação produtiva. Imaginação produtiva é um conceito chave para todas as artes e todo o pensamento criativo. Kant, talvez o pensador mais importante da nossa civilização, trás este conceito que considero um dos mais importante. A imaginação produtiva é a articulação de dois conceitos díspares, aparentemente incompatíveis e na medida que se incorporam uma o outro, se produz uma terceira coisa, uma quarta, uma quinta que oferece um sentido até então não existente. Essa idéia de imaginação produtiva é a idéia que vai dar sustentação a uma teoria da metáfora. É a possibilidade de dizer que cai a tarde e a tarde não cai. Então o conceito de imaginação produtiva é o que vai gerar toda a possibilidade metáforica, vai possibilitar ao mesmo tempo toda a possibilidade de comunicação e, paradoxalmente, de engano e ilusão. Então podemos dizer que se ao se articular dois conceitos incompatíveis para a criação de um terceiro e original estamos criando o efeito metafórico. A imaginação produtiva é a base da linguagem e do aprendizado, porém as palavras são tão imagens quanto os quadros e as telas pois elas têm um sentido metafórico e metonímico, ela descentra o emissor e cria uma estranha forma de se representar sem saber e, sem saber, se representar. Isso implica que quem diz alguma coisa, não sabe o que diz e aquele que que ouve supõe que entende o que é dito. É um jogo de ilusões. As palavras estão para o sentido, ao contrário do que a gente normalmente pensa, na mesma proporção que a música e a pintura por exemplo. Isso quer dizer o seguinte, a gente tem uma ilusão que isso que eu estou falando, alguém aí esteja entendendo, e que vocês me perguntando alguma coisa, eu vou entender a pergunta de vocês. Na verdade eu poderia estar aqui cantando, embora eu cante muito mal pois sou muito desafinado, e vocês estariam tendo o mesmo impacto, o mesmo efeito que eu falando. E eu poderia continuar falando nesse ritmo e adormecer aquele rapaz que está dormindo ali na quarta fila, por que a minha música, as minhas palavras elas não têm um sentido como aparentemente se pensa que existam.

A marca essencial das artes plásticas, no meu modo de pensar, é a inexistência num alfabeto de imagens, a recusa a verbalização e a insistência na produção de uma narrativa imagética repleta de suposições. No teatro por exemplo, a narrativa obedece a uma lógica. Início, meio e fim, obedece à estrutura da cena que é o início, desenvolvimento, clímax e o desfecho. As artes plásticas elas seguem uma estrutura de sequência sem necessariamente, representar a sequência, há movimento no teatro, no entanto assim, pegando uma outra vertente aqui, existem movimentos no teatro que há um predomínio da imagem sobre o texto. Existem várias trabalhos no teatro que trabalham a imagem mais que a palavra. “Fura del Baus”, o Gerald Thomas e vários outros em que há o predomínio da imagem.

Então é onde há um trabalho sobre os signos, os signos eles também poderiam ser divididos em três formas, três partes. O signo, ele tem uma característica tripartida. Ele pode se representar tanto um ícone, quando ele trabalha por similitude, um index quando ele trabalha por contiguidade e um símbolo quando arbitrariamente um sentido é dado a aquele signo. Percebe-se que a questão da similitude e a continuidade é a mesma questão da metáfora e a metonímia, do deslocamento e da condensação.

A narrativa clássica oferece espaços em branco para a imaginação de quem olha. Nesses buracos vazios o homem se projeta, se vê e se inventa. Ao se defrontar com o silêncio desses espaços infinitos, o homem se vê no seu medo milenar. Quando o olhar se defronta com a obra escrita, encenada ou pintada o que ele faz? O artista produz uma imagem e a transpõe para sua forma o teatro, a música e a pintura, tomando os três por enquanto, se utilizando do imaginário, o que quer dizer que ele vai se utilizar de suas imagens que serão traduzidas naquela forma de expressão, naquela forma de representação. Do seu mundo de imagens, do seu repertório de cenas o artista escolhe uma série delas, escolha esta baseada na sua experiência emocional. Então o artista vai usar um gesto que uma pessoa faz de tal modo ao invés de usar outro, com a esperança de que se produziu efeito emocional em mim, vai produzir um efeito emocional em outras pessoas. Baseado na experiência que teve de como se transformar em representação. Algumas das nossas emoções são vividas e ganham importância no momento que são produzidas e, no instante seguinte, já resta muito pouco delas em nós. E isso nos impede aprender com elas. São aquelas sensações que passam pelo sujeito e da qual não se tem como falar. Não se sabe o que aconteceu emocionalmente. E tem outras experiências que elas podem ser armazenadas e retrabalhadas, para que, em outros momentos da nossa vida, se possa usá-las. Isso só acontece quando se produz um sistema de representação e aí o homem está no mundo da metáfora e da metonímia. Então o artista se utiliza do seu mundo interno para criar uma obra que é repleta de signos e entra com isso entra em contato com o espectador. O espectador não tem noção de que ele, paradoxalmente, é, junto com o artista, o criador da obra. O espectador desconhece o mundo interno do artista da mesma forma que desconhece partes de si mesmo que são despertadas pela obra. O espectador vai interpretar aquela obra de acordo com as suas próprias imagens, as suas próprias experiências emocionais para decodificar a obra, para criar a obra, completar a obra. O contato com a obra é o trabalho da interpretação, de si e do outro, sobre a representação. Este processo de auto representação que o espectador acaba se defrontando e, de fato, culmina com a criação, conjunta com o artista, de uma obra que ele está vendo.

O aparelho mental é um aparelho que busca sentido, frente ao vazio do infinito sem forma, frente ao silêncio do infinito que amedronta e basicamente frente à morte, o homem cria, e a criação abrange ao artista e ao espectador, pois embora ambos estejam frente à mesma obra, estão de fato mergulhados em dois mundos diferentes, quase incomunicáveis, a não ser através das emoções. A obra é a frágil ponte que oferece o mais criativo encontro, aqui de novo destaco o paradoxo, em que o leitor quando lê, se torna o escritor. Pois todos nós já tivemos experiência com determinados livros nos quais começamos a imaginar as ações narradas em determinados lugares que nos são familiares. Mesmo quando há uma narração suficientemente estabelecida e cristalina para que a se possa mergulhar no mundo do escritor, aos poucos vamos percebendo que a cena que estamos lendo está acontecendo num lugar conhecido. Uma parte da minha casa, um lugar que eu já passei. Os personagens são outros, muda uma cor, se altera a arquitetura, abre-se uma porta que não existe, mas o pano de fundo está ali e são as minhas imagens. Neste paradoxo da obra de arte o espectador vira o autor, o leitor o escritor. Ele começa a pintar o que ele vê. O sentido que a arte oferece a despeito das ilusões que o discurso científico e as teorias da comunicação nos alardeiam é que é de fato a forma de comunicação mais primitiva e ainda a mais eficaz. Só é assim, na medida que se reconhece falhada. Ao contrário da linguagem técnica, que por supor um prévio conhecimento dos conceitos vinculados, estabelece o desencontro e a ilusão de se comunicar.

Nessa tentativa cada vez maior de explicar a forma, o discurso, a obra de arte, acabamos por produzir na nossa sociedade, já infiltrada pela fragmentação do pós-moderno, o desenvolvimento de uma indústria que eu chamo de indústria do efeito especial. Com ela podemos ver o que nunca antes foi visto, ou o que antes só era visto com o olho da imaginação. O olho da imaginação é uma expressão criada por uma menina de três anos. Ela conversavas com seu pai. Este pergunta a filha o que ela estava fazendo. A menina responde que estava vendo um avião. O pai procura no céu e não vê nenhum. A menina completa: não é no céu, pai, estou enxergando com o olho da minha imaginação. Então, existiam coisas que só se enxergava com o olho da imaginação e a industria do efeito especial começou a produzir e começou a nos jogar estas imagens na nossa cara. Isso é o que eu chamo de estética perversa. Isso significa que na estrutura narrativa, por imagens da forma que os textos clássicos do teatro se apresentam, por exemplo, nos oferecem nos oferecem espaço em que podemos preenche-los com a nossa imaginação. Já estética perversa preenche estes espaços por nós. Daí os monstros, as cabeças explodindo, o sangue, um coração saindo fora do peito, enfim toda a sorte de imagem que a computação gráfica nos oferece e que a arte e o jornalismo começaram a se utilizar. A indústria do efeito especial acaba por produzir uma estética perversa, onde tenta preencher esse silêncio e esse infinito. O vazio infinito se conforma saturado de efeitos especiais. E, com isso, obtura a nossa imaginação. Congela-se a produção do nosso imaginário, a nossa imaginação produtiva, a nossa possibilidade de articular conceitos incongruentes e produzir um terceiro efeito se perde criando uma formatação do sentido. Não há possibilidade de interpretar de outro modo. Então se troca a imaginação pela formatação. Perde-se a subjetividade.

Todo esforço humano é na direção da representação de si mesmo. Uma busca infindável de auto-representação e de reciprocidade. A busca de uma realidade última, de um deus imagem, de um deus emergindo do caos, donde a forma vai se originar do vazio infinito, de uma cena original, uma realidade última e uma causa primeira. Neste limite tênue se dá o encontro do homem com a imagem e com a sua semelhança, como uma imagem de Deus.

Pergunta platéia.

Resposta: A tripartição do signo se dá em a) índex; b) símbolo; c) ícone. Ícone trabalha por semelhança, por exemplo, no teatro se trabalha predominantemente com ícones, onde o ator através de seu corpo do ator, representa o corpo do personagem. Há uma semelhança ponto a ponto. O índex, por sua vez, trabalha por contiguidade, por aproximação. E o símbolo por arbitrariedade. Então eu determino o valor de um objeto arbitrariamente. Símbolos da Pátria : determino que o pano verde com o losango amarelo e a bola azul e algumas estrelinhas e uma faixinha escrito “Ordem e Progresso” representa um país. Do mesmo modo posso representar com uma luva preta levantada ao ar, movimento de libertação do negro americano. Então, posso usar uma parte representando o todo, índex, posso usar o todo, no ícone e posso usar arbitrariamente uma regra, que é o símbolo. As palavras são uma regra arbitrária.

Platéia fala.

Resposta: Depende. Por exemplo: a imagem mitológica ela pode estagnar se ela for levada ao pé da letra. Aí se ela for levada ao pé da letra. Por exemplo: uma imagem que ninguém viu é a cena em que Édipo mata o Laio. Sófocles não escreveu esta cena. O que aparece na narrativa trágica é o desvelamento do criminoso, pois mesmo sem saber, Édipo já matou Laio. Se poderia imaginar, segundo uma estética perversa, que se mostra-se a cena. Perder-se-ia o efeito de se imaginar o que aconteceu, e o efeito de imaginação é sempre maior do que a realização. Ou pelo menos toda realização guarda uma insatisfação. A impregnação de sentido da estética perversa impossibilita outras leituras. Dentro desta perspectiva, a indústria do efeito especial, mostra tudo, nada intui, não oferece espaço para se imaginar.

Platéia.

Resposta: Porque na hora em que tu mostras determinadas cenas, por exemplo, numa estrutura narrativa, na hora em que tu mostra determinadas cenas tu estás inibindo a possibilidade de conceber, de interpretar o que aconteceu. É dentro desta perspectiva, eu entendo teu ponto de vista, é saudável a fé que tu tens na capacidade de representação humana. Eu não tenho tanta fé assim. Acho que a tendência ela vem na direção de uma massificação, que está marcada pela globalização e pelo neo-liberalismo, este não é o tema da nossa conversa.

Platéia.

Resposta: Talvez eu não tenha entendido a tua dúvida. A gente poderia assim fazer um parâmetro, uma diferenciação por exemplo, entre o erótico e o pornográfico. Talvez ficasse mais claro assim. E de pensar na questão do erotismo, do desenvolvimento das possibilidades do corpo inteiro, de meia luz e de penumbras versus closes ginecológicas e penetrações constantes. Essa é uma estética perversa, não tem o que imaginar, não tem onde fazer uma produção nesse sentido. Eu acho importante o que tu falaste sobre Zeus, sobre Cronos, acho que tu tem razão nesse sentido, a imagem que tu trouxeste pode ser uma imagem renovadora. Ela teria talvez o efeito de examinar uma cena originária, isso pode estancar mas tem mais coisa para se falar.

Mediadora: Eu estou aqui na mesa mas como participante ouvinte. Uma idéia que me passa é que na ... me parece que a arte contemporânea, e aí falo da questão plástica que é a que me é mais próxima, há algumas maneiras, sim, principalmente na geração 90 de se trabalhar encima desta estética perversa. E me parece aliás que a arte é uma das áreas do conhecimento humano que justamente trabalha em função disso, de tentar driblar esta estética perversa. Então se me ocorre assim como imagem, assim como a colega citou esta imagem mitológica, se me ocorre uma imagem bem presente que é aquela dos jornais sensacionalistas, especificamente na revista Trans, número 2, que é uma revista de artes visuais. Um artista se utiliza destas imagens do jornal e ele faz uma fotomontagem na qual usa corpos estendidos sobre um cano, corpos mortos numa favela lá do Rio e trabalha com este reaproveitamento da imagem. Acontece isso em séries, outros trabalhos, apropriações, outros tipos de trabalhos também dessa arte contemporânea, na qual há uma tentativa de resgatar - aí eu acredito valores ou questões estéticas especificamente que poderiam vir a brigar com esta estética cretina, mais do que perversa me parece cretina, do uso da imagem como um endeusamento.

Conte: Enquanto te escutava me ocorreu um pensamento que pode ser importante e serve também para me contradizer um pouco. Que eu acho que por definição toda arte é perversa, ou seja, toda arte ela é transgressora, não é possível nenhuma produção artística servir para manter o establishment. Ou seja, qualquer produção criativa ou criadora que gera ela tem que ter um efeito, uma proposta transgressora, ninguém está aí para fazer coisas para tudo continuar igual. Todo ato criativo implica na ruptura do sistema que o concebeu.

Tem umas perguntas aqui : se é céptico, com relação a luz do início biológico dos indivíduos, como lida com a arte, o teatro ou trabalha com psicodrama, que está ligado tanto com o emocional de cada pessoa ?

Eu só céptico, graças a Deus. Mas não pode confundir céptico, eu sou céptico, sou místico e não sou religioso.

Pergunta.

Resposta: Não, não é questão de palavra e essência, eu acho que o místico é diferente do religioso, o religioso é o que se vincula a uma religião, e com essa religião funciona da mesma maneira que eu estou fazendo essa crítica, obturando uma porta para o desconhecido. Eu sou um místico por que eu acho que a ciência não respondeu as questões essenciais do homem, e segue não respondendo. E quanto mais responde, mais falta responder, então eu sou místico porque eu acredito que tem um mistério o tempo todo, em cada relação, em cada momento, em cada situação. Tem gente que pode chamar isso de deus, eu digo que é um mistério, eu sou um místico mas não sou religioso.

Pergunta.

Resposta: A religião obtura tanto quanto a estética perversa. Funciona do mesmo modo. Dá uma resposta fechadas e obtura o conhecimento, congelando as possibilidades de conhecer. Enquanto que as questões abertas, elas estão abertas para serem pensadas, para serem repensadas, para ser discutidas sem preconceitos que produzem a cegueira mental. A religião funciona como a luz quando a gente nasce, ou seja, ela nos cega. Enquanto que na penumbra, eu gosto mais da penumbra, porque na penumbra a gente descobre formas que não se vê normalmente. Quanto ao psicodrama só posso dizer que trabalha com ele.

Em qual a linha da psicanálise trabalha? Seus pacientes, as suas histórias servem de inspiração para criar alguma peça de teatro? Ou utiliza-se de uma história já escrita e faz uma reformulação?

Eu trabalho com a linha psicanalítica, e a linha psicanalítica engloba principalmente Freud, Lacan, Klein, Ferenczi e, principalmente, Bion. São os autores que eu trabalho, meus pacientes são uma história mesmo, uma história a parte, uma história subjetiva, uma história da minha relação com eles, com cada um deles. Não tenho certeza se eu já usei alguma história de algum paciente em alguma peça, eu acho que não, mas eu também não posso garantir que não tenha usado. Porque em qualquer coisa que eu faço, eu trato de fazer inteiro, mas de qualquer forma se alguma coisa passou, ninguém veio reclamar.

Pergunta.

Sim, foi colocado aqui. A questão da endeusação da imagem, essa busca desenfreada pelo material imagético, inédito, chocante, violento...

Pergunta.

É, isso ai. Tu também vai entrar no mesmo assunto?

Resposta: A qualidade, e eu acho que ele colocou bem isso aí, e não está em contradição com o que tu estás falando, ele está ampliando essa questão, essa imagem que nos congela e nos deixa sem possibilidades de pensar, ela está ligada também a coisas agradáveis. Então tem muitas imagens que nos seduzem, nos estancam. Essa é a questão. Não acho que a imagem seja isso, esse é o uso espúrio da imagem. A imagem aparece nas palavras, aparece em várias representações e a organização dessas imagens formam a narrativa. Nem sempre a narrativa ela tem que ser feita de suprimir o pensamento de que observa. Alguns momentos, e eu acho em função dessa indústria de efeitos especiais às vezes se produz isso, mas não é a imagem por si só. Para os judeus, Jeová não pode ser representado, não pode nem ser dito o nome, por que foram suprimidas as vogais. Se cria uma palavra que não pode ser pronunciada para designar o nome de Deus. E a imagem de Deus, ela não é representável. Aparece em várias situações, na religião católica, a imagem é cultuada e essas diferenças são representativas de toda a diferença no processo de pensamento dos católicos e dos judeus. Isso aparece efetivamente na vida prática das pessoas.

Pergunta.

Resposta: Isso ai que tu falou, produziu uma ressonância. No exemplo no mesmo Museu que tive contato com a Guernica, vi obras fantásticas pintores diferentes, não tão conhecidos. Eram pintores da mesma época, da mesma escola e que todos produziram mais ou menos as mesmas coisas, porém, tem alguma coisa que aconteceu, um mistério, que se sente, frente a uma obra e outra, completamente diferente. Com a nossa observação, com o raciocínio lógico, não se enxerga diferença de tonalidade, cor, temática. Agora, num outro nível, a obra te toca de outra forma. É isso que eu quis destacar com esse trabalho. Essa comunicação mais primitiva é a que mais funciona, a mais antiga, e é justamente essa, a comunicação emocional. A comunicação emocional que se produz entre as pessoas, no encontro entre objetos, entre uma obra e o espectador. E que não está na ordem da análise técnica de diferenças de efeitos nem na análise de diferença de histórias, nem no fato de se saber que esse pintor é famoso e esse outro é um desconhecido. Algumas vezes eu tive a experiência de me emocionar muito com pintores que não eram conhecidos, que eu estava conhecendo ali, pela primeira vez, ouvi falar dela primeira vez. Tem milhares de pintores espanhóis tão bons quanto os que todo mundo conhece, que são assim muito bons mas que eu nunca tinha ouvido falar deles.

Pergunta. Como você sugere uma boa interação entre público e uma obra de arte ? Como tornar atraente a exposição, nos trabalhos da Bienal ?

Resposta: Essa pergunta vai além da minha capacidade, porque justamente o que eu teria falar para vocês é dessa dificuldade de comunicação, desse ato na comunicação e da possibilidade de pensar um pouco sobre essa impossibilidade, não sei se ficou claro em determinado momento que eu falei, do leitor que escreve o livro que lê, e do espectador que vive a peça de teatro que ele está assistindo. Por que acho que esse é um ponto chave. Mas de fato, sobre o que você me perguntou, eu não tenho respostas no memento, mais do estou fazendo aqui e agora.

Mediadora: Eu peguei uma frase do Júlio que dizia, o espectador como artista cria sua própria decodificação e interpretação. Parece que aí está aberta uma possibilidade de leitura, sem dúvida, do espectador se colocando a possibilidade de uma interação do público e com a obra do artista. E o papel do monitor ou da pessoa que estiver acompanhando este trabalho, fazendo este trabalho, é um pouco este: o de mediador entre esta possibilidade do espectador se tornar um pouco artista ou pelo menos se permitir vivenciar este momento na postura como artista. Me parece que essa foi, na fala do Júlio, uma possibilidade.

Júlio: Sim, a idéia é justamente esta, de que na hora em que tu estás em contato com uma obra tu estás criando aquela obra, ou seja, eu defendo a idéia de que a obra de arte é um estímulo que vai produzir um efeito estético em alguém. E precisa que esse alguém se saiba tomar, se saiba receber e se saiba recriar aquilo que está vendo. Porque por exemplo, dentro da arte do teatro, textos que perdem o interesse em determinado momento, depois a partir de determinadas leituras passam a ter um outro sentido. Por exemplo, Plínio Marcos era um autor que ninguém mais queria montar porque era naturalista. Seus temas falam da pobreza, da morte. Agora é um autor que está sendo remontado, que está se oferecendo novas leituras sobre o trabalho dele. Isso significa que com o tempo a gente vai produzindo novas leituras. Cada pessoa que assiste uma peça ou lê o livro ela está criando uma leitura original porque não se tem noção se o que o escritor quis dizer é realmente aquilo que o leitor leu. São duas obras separadas, diferentes. A obra que o escritor escreve para um leitor imaginário e a obra que o leitor lê de um escritor imaginário. Nem sempre se encontram, a maioria das vezes não.

Pergunta.

Resposta: Não, mas é interessante. Por exemplo, na área de teatro : existe um método de interpretação que é Stanislawski. Nesse método tem alguns quesitos que vão sendo conscientemente elaborados. Só que se alguém realiza todos estes quesitos, isso não garante se vai estar interpretando efetivamente. Eles servem para que? Eles servem para andar numa zona limite e se espera que alguma coisa aconteça e que dê um salto para o outro lado e dê uma mudança de estado, mudança de qualidade. Dentro da psicanálise, o autor que eu venho trabalhando bastante, Wilfred Bion, trabalha estas duas questões que tu falastes, uma delas é a transformação em K, o que quer dizer a transformação de uma experiência sensorial em conhecimento. O que nós estamos fazendo aqui, numa certa medida, uma transformação em conhecimento. Estamos em contato uns com os outros, falando de várias coisas que vivemos, contato com histórias, contato com pessoas e tentando transformar essas impressões como a sua pergunta por exemplo, em conhecimento. Esta é uma parte da coisa. Ao transformar em conhecimento surge a possibilidade de alcançar a segunda das possibilidades, qual seja, uma transformação em O. Bion chama O o que se poderia chamar de zero ou original. Seria produzir uma origem para o que se vive. O original só é possível de ser vivido, isso significa que não é possível de ser conhecido. Quando falamos aqui estamos na ordem do que é possível ser conhecido e não do que é possível ser vivido. Na hora em que a gente transformar nossa vivência em conhecimento, transformar em K, nós estamos longe, estamos deixando de viver. Na hora em que a gente começar produzir transformações em K e este K puder fazer um link, para usar uma palavra da moda, com o O, com a nossa origem. Podemos criar um espaço de vivência. Que eu penso, se eu não estou equivocado, que tem a ver com o que tu falaste, ou seja, se faz tudo o que é possível, por exemplo um espetáculo, para que a platéia se emocione, mas esse salto é um salto que não se tem, até o momento, um controle absoluto. Então é a possibilidade de que tu tem que fazer tudo certo e esperar que alguma coisa mágica, misteriosa, aconteça. Algo enigmático que transforme o conhecimento numa vivência, numa experiência original. Quando estudamos a vida do artista, por exemplo, recebemos informações sabemos de fatos, estamos fazendo transformações em K, produzindo conhecimento. Com isso há chance de viver este conhecimento.

A platéia pergunta.

Resposta: O que tu falaste é uma forma de louvor, aquele louvor que tu estás tentando desmistificar, e até de denunciar, também é um louvor. Vamos transformar a arte, uma obra de arte, num monumento de louvor, de energia, temos que sentir tal coisa... Não necessariamente! Às vezes, com uma mulher bonita e as coisas não acontecem tão bem como a outra mulher nem tão bela. O exemplo é chulo, mas válido.

A plateia se manifesta.

Resposta: É essa a questão! Aí vamos voltar para esta história da transformação em K, transformação em O, porque o ‘nada’, quando tu falas o ‘nada’, tu já estás falando de algo que é mais que o nada. Já estás fazendo transformações em K, pois já estás dando um sentido mental para algo. O que eu acho que está sendo falado é no sentido de produzir uma vivência e a vivência do nada é diferente de tu dizer que eu não estou sentindo nada. Tu até podes localizar o nada mas quando tu localiza o nada o nada já é - eu não posso dizer que o nada é tudo - mas já é um sentido, já temos uma representação que é o tema de hoje. Agora quando tu tens uma vivência do nada é outra coisa. O nada falado é uma coisa, o nada sentido é outra. E também é difícil a gente ter esta dimensão porque a gente se acostuma e a nossa cultura nos impõe e o que eu estou falando são palavras. Então nós estamos discutindo com palavras coisas que não são da ordem da palavra. Então nós estamos usando um meio ineficaz para expressar o que a gente está querendo expressar.

Platéia.

Resposta: O Chico Anísio é um comediante que poderia ser até discutido, não está entre os meus preferidos, mas essa expressão “ou não” no final de uma afirmação pegou. É o melhor jeito borrar um diferença. Afirmar se comprometer. A qualquer proposição pode se agregar “ou não”. Mantém um certo equilíbrio em cima da muro. Agora perguntaram, se as palavras são ineficientes como expressão por que então eu falo? Porque se as palavras servem de lado para se equivocar, por outro, às vezes servem para se comunicar. Ou seja, elas são o meio, e como o meio de transmissão possuem falhas. A comunicação se serve do meio - como a água conduzindo eletricidade - mas não tem controle sobre o seu destino. Tanto pode chegar rápido quanto se perder na imensidão ou no vazio.

Claro mas é que nós estamos falando, além das interpretações, nós estamos falando de uma outra questão assim : nós estamos falando de um momento que eu acho que todo mundo vivenciou em alguma situação da sua vida o silêncio. E essa vivência nos reconfortou, nos colocou em contato com algo íntimo nosso, com nossa história, com nossa vida. Falar sobre isso é piegas porque esse momento ele está ligado a um sistema protomental onde o psíquico e o físico eram um só. Quando o indivíduo se dividiu - por um sistema de conhecimento - em corpo e mente, em linguagem e soma. Isso nos condenou a falar do corpo com a mente. A tua representação do vazio, se utilizando de palavras deriva de uma transformação de O em K. No entanto esse vazio não tem como ser representado de forma completa, alguma coisa sempre alguma coisa escapa. Esse escape é o que suscita o desejo de seguir representando. A criatividade de Van Gogh, a quantidade de quadros que ele produziu, não pode ser interpretada apenas através de sua história pessoal. A sua imensa produção, criando tanto em tão poucos anos, uma obra incrível, seria fatalmente reconhecida em seu tempo se não tivesse se matado. Naquela época, sem mídias eletrônicas, nem e-mail, nem meios de comunicação que hoje temos, fazia com que a sua produção demorasse para ser reconhecida. Ele trabalhou num período de quase 15 anos e esse período de tempo com as comunicações que haviam na época é muito curto. Hoje em dia, em horas se divulga uma coisa para o mundo todo. Talvez se ele tivesse mais tempo de vida ele seria reconhecido. É uma suposição. Mas o que eu acho que essa produção febril dele, incessante, é que não se conformava com o que ele conseguia desenhar, com o que ele conseguia pintar. Tudo que pintava era pouco para ele. Não tocava na essência que estava buscando. E cada vez ele foi buscando mais, incessantemente, até encontrar a própria morte.

Fala a plateia.

Resposta: Claro, ele não conseguia se conformar. É isso. Muito bom, obrigado. O que eu estou falando é justamente da impossibilidade de se representar totalmente e a recusa de imaginar o que se diz é o que foi dito mesmo. É esse o ponto. Há um hiato na representação que não tem como ser preenchido. E justamente nesta falha representacional que o homem vai se mobilizar. Frente à morte o homem cria. Houve uma montagem de “Esperando Godot” em Sarajevo, entre os escombros montaram se deu uma representação da peça de Beckett. Uma coisa fantástica, inacreditável. Então essa impossibilidade de representar faz a gente estar sempre representando. Então não podemos cair na ilusão que estamos representando, que estamos chegando, porque se estiver chegado já tinha terminado e isso e pronto. E ia chegar numa verdade última enquanto que não, está sempre buscando uma forma de se representar, de se repensar, de se rever, de re-imaginar.

Mediadora: Eu queria agradecer a presença do Júlio, acho que foi ótimo para todos.

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