O SONHO E A PÉROLA

Num trem noturno perdi meu Diário de Final de Análise.

Pela janela do trem parado, vi iluminada de um azul noir a placa onde estava escrito em letras brancas sobre um fundo marinho: Marselha. Já estava no trem há algumas horas. Partira de Barcelona no final do dia, trocara de trem em Cerbeille e mergulhara noite adentro pelo litoral sul da França sob o balanço delicado e veloz de um trem de segunda classe. Os passeios em Lisboa, Madrid e Barcelona, as caminhadas visitando museus e espaços culturais, mas, sobretudo a algazarra de estudantes milaneses voltando de férias me deitara prostrado. Eram cinco horas da manhã. O que me despertou foi a ausência de movimento. Patsy dormia no banco em minha frente quando fui para o banheiro. Na volta, sombras no meio da noite, e comecei a dormir de imediato, embalado pelos braços delicados do ritmo ferroviário. Comecei a sonhar. Imagens disformes, contornos indefinidos e no meio de tudo se destacava um perfume. Por um momento relaxei naquele mundo desconexo das vastas emoções e me deixei levar pelos sentidos sem forma. Mas o perfume voltou. Forte, insistente e invasivo. Por um momento, pensei que Patsy usava um perfume diferente. De chofre, percebi que aquele não era o perfume que ela costumava usar. Acordei com um marroquino e um francês dentro da cabine, prontos para examinar as nossas malas. Gritei, discutimos, Patsy acordou. Acabamos brigando com os larápios e, num corpo a corpo, os expulsamos da cabine. Nunca havia brigado com um ladrão e fazia isso pela primeira vez na Europa. Ficamos, Patsy e eu, em estado de choque. Ela balançou a cabeça como se fosse desmaiar, mas levantou-se e foi fumar no corredor. Eu manifestei o firme propósito de não dormir. Escondi a bolsa contendo a máquina de fotografia e outros pertences pessoais e me sentei. Um mal estar generalizado. Não sabia o que estava acontecendo e ansiava para que amanhecesse logo. O perfume fincava meu cérebro e com ele adormeci, apesar dos esforço para que isso não ocorresse. Acordei em Nice, sob os gritos do condutor avisando que o trem partiria em poucos minutos. Agarrei as malas e comecei a sair do trem quase correndo. Sonado e desorientado alcancei a saída. Alguém ainda falou alguma coisa mas eu não quis ouvir. Só pensava em sair dali. Descemos uma escada em direção a um túnel que passava por baixo dos trilhos. Parei de repente: a máquina de fotografia! Voltei a gare a tempo de ver o último vagão partindo em direção a Milão e Roma.

Na bolsa, junto com a máquina de fotografia ficou meu Diário de Final de Análise.

Havia começado a escrevê-lo alguns meses após o término dos encontros analíticos. Como o final da análise, a alta, a despedida do analista, a despedida do analisando, e toda gravidade que envolve esta situação, vivera um momento de euforia. Fora tomado de uma sensação agradável que, em momentos, beirava a soberba, por ter chegado ao fim de um processo de mais de dez anos. Um imenso esforço emocional, financeiro e intelectual. Adiciona-se aí o fato de coincidir o final da analise com a compra da casa nova. Este evento ocupou boa parte das primeiras páginas do diário. E uma casa nova representa uma passagem, cesura e por isso mesmo uma turbulência emocional.

Foi um período relativamente curto e, tenho que reconhecer, que passada esta fase inicial do que se poderia chamar “Ilusão de Final de Análise” começou de forma insidiosa a, digamos assim, acumular papéis sobre a escrivaninha. Cesura e turbulência andam de mãos dadas. Estes ‘papéis acumulados’ eram a evidência que a vida continuava e que embora a relação com o analista havia de fato chegado ao máximo que poderia ter chegado levando em consideração um e outro, ela, a análise, de fato não termina. Há mais continuidade entre a análise e o final de análise do que a impressionante cesura da alta analítica nos faz crer. Comecei a ser tomado por um certo desconforto de ter que lidar com alguns sentimentos de me encontrar só, com uma realidade angustiante. Adiciona-se à angustia, a raiva inerente de ter que reconhecer que havia precisado tanto tempo de alguém e mais ainda, o quanto havia sido ajudado e, por fim uma constatação esperada mas ainda assim triste: a relação analítica havia chegado ao fim mas as demandas da vida não.

Há várias formas de ajuda que podem ocorrem dentro de uma análise. Reformas de base se colocam lado a lado de pequenos reparos. Refiro-me a um modo especial de ajuda, não apenas aquela originada das interpretações, mas a fato de ter tido alguém nos escutando, alguém que com uma palavra, um gesto, um ritmo de respiração já nos tranqüiliza. Alguém que o simples cheiro característico do consultório, o trajeto até lá, a idéia matinal de uma sessão no final da tarde já produz um efeito de recuperar a capacidade de pensar. Uma simples menção ao dito pelo analista já amplia o universo emocional e o campo do pensamento. A análise, como um exercício de solidariedade, é um amortecedor dos impactos diários. Tecendo com os fios do amor, pequenas redes invisíveis, retículos de sustentação para nossos saltos mortais. Toda esta demanda de “papéis” me obrigava a fazer alguma coisa mais. A constatação desta turbulência me levou a uma tentativa de substituir o “amortecedor” através do Diário.

Para escrevê-lo havia optado por uma escrita livre, sem compromisso, sem horários, sem obrigações. Escolhera um caderno de capa dura, construído de forma artesanal por um velho livreiro de Viena e que me fora presenteado pelo escritor Luis Antônio de Assis Brasil. Uma peça rara e única de um artesanato em extinção. Como toda a análise que se preza.

Ali, naquelas folhas em branco, sem pauta, daquele caderno-livro comecei a escrever o que desejava que fosse o registro de uma elaboração pós análise. Registrei no diário vários fatos importantes: aniversário de minha filha, compra da casa, a Copa do Mundo de 94, a final lá em casa, as conversas íntimas, momentos importantes e assim foi até que o Diário submergiu entre os trilhos de um trem europeu num destino incerto.

A perda do Diário me fez entender o que é análise. A perda providencial foi uma forma de terminar a análise e começar outra. Diverso do que havia pensado quando iniciei a escrita do diário seria, perdê-lo é que marcou o seu final. Tudo o contrário do previsto. Escrevê-lo foi a última tentativa de manter o analista real vivo em mim.

Na verdade as coisas melhores da análise eu me esqueci por que o lugar delas é o lugar dos sonhos. Em noites de luar meus sonhos se analisam pelos sonhos e eu acordo mais feliz. Num gesto, alguma coisa quase apagada me dá uma sensação que já pensei nisso em algum lugar. Algum divã onírico me sonha em algum espaço misterioso. Essa é a melhor parte da minha análise. É como se eu tivesse ido a uma festa maravilhosa e o melhor eu esqueci e esquecer é guardar para sempre. Esse é o sonho da análise.

As falhas do analista, por outro lado, são as pérolas. Todo o mundo sabe o que é uma pérola. É um grão de areia no lugar errado. Incomoda a ostra e ela se obriga a retocar cada saliência disforme do grão de areia para criar um deslizar harmônico, já que não pode expeli-lo.

Mas o que é “falha” do analista? É um “erro”? Como se sabe, o analista interpreta com seu processo secundário, mas também com seu processo primário. Isto quer dizer que ele, seguindo uma terminologia de Bion, o analista interpreta com o que ele consegue transformar em K, quer dizer com o repertório de teorias e técnicas que ele tomou conhecimento e fez sentido em sua aplicação clínica. Mas também ele, inevitável, acaba interpretando com o que ele conseguiu transformar em O, ou seja, com o que ele se tornou. Em outras palavras ele interpreta com o que ele sabe e com o que ele é pois no conteúdo da interpretação reside, também a resistência do analista. Esta afirmação leva a crer que o analista, então, de fato interpreta com o que ele sabe a respeitos das teorias, mais com o que ele é, como resultado de sua própria análise, mas, interpreta ainda, com o que ele não sabe de si, com seu próprio resistido. Seus pontos cegos. Em resumo, o trabalho analítico se faz sobre o que o analista sabe, sobre o que ele é, e sobre o que ele é e não sabe.

Este último é a areia depositada na mente do analisando e sobre o qual este terá a incumbência de decifrar. Sobre este ponto cego há de advir à luz o brilho da pérola. Pois sobre este descerramento está em jogo o resultado da análise. A pérola ou o tumor.

O processo analítico se desenvolve pelos acertos, pela ampliação da capacidade simbólica, pelo aumento da capacidade de pensar, pela função alfa, em uma palavra, pelo sonho. E final da análise, a gênese da alta e, a conseqüente resolução da relação analítica, se dá a partir de “erros” do analista.

Talvez estas origens possam ser encontradas já na análise original de Freud com Fliess. Pareceria que até o episódio Ema Eckstein, a relação Freud-Fliess vivia o apogeu da transferência amorosa e idealizada. Numa carta deste momento Freud utiliza a expressão como “Demônio porque não me escreves”, claramente amorosa, como uma epígrafe da correspondência endereçada a Wilian Fliess. A história é conhecida. Ema, paciente de Freud, é encaminhada para Fliess em Berlin a fim de se submeter a uma cirurgia de ablação de corneto nasal. Durante o procedimento Fliess esquece um pedaço de gaze de quase um metro dentro do nariz da paciente. Os passos seguintes também são familiares aos que gostam e estudam psicanálise. Ema sofre de dores intensas e começa a emanar um cheiro fétido de seu rosto. Novo procedimento é realizada e Freud desmaia ao ver retirada a gaze. Ema padece de uma tremenda hemorragia, entra e choque e por pouco não morre. Freud passa mal, só se recuperando após o uso de uma bebida forte. Freud ainda submetido a um amor transferência marcado por uma idealização produz uma tremenda reação negativa, denegando o equívoco de Fliess o que marca a sua submissão exemplar daquele momento ao perdoar o analista, mesmo quando se evidencia um erro incrível. Mas estes fatos encobertam pela submissão trabalha no interior de Freud e a partir daí, ele sonha em Bellevuee, um hotel na proximidade de Viena, o famoso sonho de 24 de julho de 1856 que passou a ser conhecido pela história da psicanálise como o Sonho da Injeção da Irma. Sonho modelo para análise, pois além de trazer a solução do enigma da sexualidade, a coragem de ver a garganta, olhar na dentro da genitalidade feminina, ver a própria morte e mergulhar no universo das diferenças produz um conhecimento original. E, com este movimento elaborativo do erro de Fliess, deixa o até então um cavalo bem treinado correndo sempre na frente, para trás. O erro de Fliess cria condições para o que vinha subterrâneo se abra e com isso um novo espaço para pensar dentro de Freud vai, finalmente, desencadear na resolução da transferência com Fliess e o fim da submissão; Emocional e psíquica.

Outro exemplo que poderia destacar é uma passagem na obra de Wilfrid Bion em que ele, a partir da sua experiência analítica com Melanie Klein, responde a um questionamento da forma dela interpretar:

“...penso que ela dava um fluxo contínuo de interpretações. Depois acabei pensando que estas interpretações eram excessivamente coloridas por um desejo de defender a acurácia de suas teorias de tal modo que ela perdeu de vista o fato de que aquilo que se supunha que ela fizesse seria interpretar os fenômenos que se lhe eram apresentados.”

Podemos ver que Bion já se criou sua pérola e encontra-se livre da submissão transferencial de Klein. Pode criticá-la e mais que isso, pode conceber uma evolução teórica original a partir dos erros de sua analista. Esta implícito que as “interpretações excessivamente coloridas de desejo de defender a acurácia”, encontra-se os conceitos desenvolvidos por ele a respeito da memória, do desejo e da necessidade de compreensão.

A turbulência gerada por estes “erros” do analista seria reaproveitada pelo analisando como um pedaço de futuro, uma cesura iminente. Ela pode ser elaborada de tal modo que passa a constituir uma série de hipóteses sobre o qual o analisando vai elaborar novas teorias e criar uma forma de ser absolutamente pessoal e intransferível. Ao mesmo tempo originado e desligado do processo analítico, sendo mais que tudo um percurso solitário que tanto pode evoluir para uma originalidade criativa quanto a um promotor da submissão pós-análise. Esta elaboração vai produzir o equivalente a uma hiância geracional.

Algo no analista esbarra, como se ele se defronta-se com seu limite, porém ele não o percebe. Nem mesmo o analisando consegue pensá-lo, mas este tem a vantagem de percebê-lo. E aqui fica marcado com um excesso de realidade do analista, uma falha, uma invasão, um traço narcísico. Dito de outra forma ali onde se dá a resistência do analista ou sua parte psicótica da personalidade. Estes aspectos, carentes de simbolismo, ficam depositados no analisando como um grão de areia impossibilitado de ser expelido, vomitado ou defecado, uma vez que seria da própria situação analítica que se esperaria uma ampliação simbólica. Esse grão, posta restante, espera por um ato futuro. Resolução esta que só poderá ser efetivada fora da análise. Ë sobre ela que se estrutura a alta e sobre a alta se estrutura a elaboração.

No futuro deste resto solitário se joga o passado da análise e o sucesso da mesma. De um lado a areia se torna pérola e se processa um ganho simbólico com ampliação do mundo interno, se produz um universo em expansão, ou, por outro lado, temos um tumor, uma gangrena simbólica, em outras palavras, o fracasso do processo analítico e o nascimento do filho bastado da análise mais conhecido e menos falado, a saber, a submissão.

Manter a mente aberta significa possuir algo espaço não saturado, é o espaço para o desconhecido, para o mistério.

Emilio Rodrigué amplia o sentido da metáfora que estou tratando de dar conta com idéia de que a areia seria, de fato, uma forma de fecundação. O grão de areia no corpo da ostra pode tanto gerar um filho quanto um aborto. A transformação em pérola é um ato de independência e autonomia, perdão e reparação. Pois só poderá se aperceber da falha se tiver conquistado, no processo analítico, um espaço simbólico suficiente para suportar a independência e a solidão. Sobre essa falha e sobre a capacidade ampliada do seu pensar, se constrói a mudança, isto é, o fim da análise. Pois este grão de areia dentro da ostra não permite que se cuspa, nem vomite ou o transforme em dejeto de qualquer espécie. É o enigma da morte depositado na forma do não simbolizado.

O conhecimento mútuo do analista e analisando é o fenômeno resultante do encontro analítico. As visões próprias de si - analista - se revelam nas interpretações conferidas ao analisando, é um evidente espelho do ânimo daquele. Na medida que o analista interpreta, seu Édipo se revela e, a configuração edípica e seus múltiplos significantes são reconhecidos pelo analisando. Assim como o analisando se submete a ser analisado pelo analista, todo analista é submetido por uma análise pelo seu analisando. Não é, no entanto, uma análise mútua embora em parte o seja. Pois nos detalhes do “entre-dois”, o analisável e o inanalisável se mesclam formando um caldo primordial da transferência e contratransferência. Esse algo não pensado que se passa entre analista e analisando não passa pelas palavras nem pela interpretação. Trata-se de algo mortal, invariante, pulsão de morte, ódio, algo indizível e desconhecido para ambos, e por isso, paradoxalmente, da ordem da solidariedade. Algo que se diria como resignação ou desilusão. O limite da análise, do analista e do analisando. Sem dúvida é algo mais que a desidealização do analista. É o mistério, elemento beta, le bête, bate na nossa onipotência como se o objeto da psicanálise fosse um animal doméstico que ele não é. As metáforas de reserva ecológica, natural, animal, são extremamente vivas, mas ao mesmo tempo estão muito aquém do que acontece no território vincular. Essa coisa selvagem, mais coisa que animal, mais morta do que viva, mais inanimado do que animado, eu convenciono chamar de grão de areia. Sobre ele se dá a continuação da análise e o analista serve para nos levar até ali. Analista-Móises as portas da terra prometida. Dali pra frente é outra história. [H1]

Retornando ao trem noturno. Os dois ladrões passaram a ser designados pela polícia francesa - desprezando a evidência que um deles era branco e francês – de ‘Os Marroquinos’. Foram cassados pela polícia marselhesa que dobrou a guarda na noite seguinte conforme informações de viajantes que por ali passaram depois. O perfume do sonho e que me fez despertar era um spray para dormir e foi o que, paradoxalmente, me acordou. ‘Os Marroquinos’ fizeram a limpa no trem. Comprei uma máquina de fotografias nova em Roma.

Moro na mesma casa e vou ver a Copa na mesma sala em que vi o Brasil campeão em 94.

O Diário nunca foi encontrado

Porto Alegre 1997.


[H1] Isso nos questiona o tempo das análises, pois seus verdadeiros efeitos só podem ser percebidos após o têrmino da mesma.

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