O EQUIVOCO

Tia Lúcia Minha acordou querendo fazer plástica.

Todos estranharam não apenas pela idade, passada nos setenta, mas por sua saúde debilitada, pressão alta, diabete e uma história de choque anafilático era argumentos mais do que forte para abortar o projeto. Mas ela anunciou seu propósito no almoço mensal de domingo quando a dispersa família Guedes juntava os pedaços e cumpriam o ritual marcado há décadas. Desde o tempo que Tio Antônio com seu bigode branco e seu indefectível cachimbo embala com sua fumaça azul as tardes domingueiras do Menino Deus.

Certo que em sua juventude, Tia Lúcia não fora uma mulher bonita, pelo contrário, nariz torto, cabelos sempre em desalinhados, pernas longas e quadris estreitos, porém o tempo fizera bem a seu corpo. Os traços do tempo desenhar um rosto grave e delicado. Os quadris se alargaram as custas dos sucessivos partos. Seis ao todo que conferiram uma ancas grandiosas que combinou sobremaneira com as pernas longas. Concordamos que as bolsas embaixo e em cima dos olhos eram exageradas e pediam concerto, mas isso era efeito da genética materna, sempre de olhos tão caídos que, em menina, recebera o apelido Laica, por fazer lembrar o olhar de um vira-lata triste.

Quando ela apareceu com a novidade, os filhos e netos e parentes em geral, pensaram que ela tinha perdido o senso, que os anos de maus tratos do Tio Antônio fizera enfim seu efeito funesto. Ela que suportara com valentia as constantes traições e grosseiras, as bebedeiras e principalmente a bancarrota que a família entrara com a sua morte acompanhada de uma avalanche de credores que insistiam em bater as nossas portas e fazia campana em frente ao sobrado de Menino Deus a espera de carro, móveis ou mercadorias que pudessem ser penhoradas. Tia Lúcia não só suportara com bravura o esvaziamento da casa e a delapidação do patrimônio como ainda reuniu forças, para com um mínimo restante do espólio, criar um instituto de beleza. Este cresceu na freguesia do bairro, sempre carente de um corte de cabelo, um penteado de noiva, unhas e cutículas a serem feitas na emergência das horas que virou, pouco a pouco, uma rede. O Instituto de Beleza Lucia, ou IBLU como ficou conhecido em várias cidade do Rio Grande do Sul deu conforto para ela, a família incluído os netos e agregados que sempre aparecem nas melhores horas.

Várias versões tentavam dar conta da impulsiva decisão. Desde a hipótese de vingança contra o tio morto que tanto a fizera sofrer, quando a um tumor que estimulava um furor sexual tardio ou ainda a hipótese mais pobre, de ser simplesmente a senilidade, o fato é que a despeito das insistência para que volta-se a razão e dissuadisse da ideia, Tia Lúcia marchou obstinada, virtude reconhecida nos tempos das vacas magras, em direção ao Banco. Convenceu a gerente, amiga de anos, a liberar o dinheiro retirado de rendosas aplicações.

A cirurgia ocorreu num sábado de manhã e foi perfeita. Lifting, retiradas da bolsas, silicone nos lábios, tração na pele do pescoço e até mesmo um fino retículo de ouro foi inserido sob pele para que a gravidade cessasse seus domínios. Dez dias depois quase não se via o trauma cirúrgico. Uma recuperação perfeita que surpreendera os médicos e a própria medicina. Era um caso a ser publico tão auspicioso o resultado.

Meses depois da famigerada operação Tia Lúcia encontrou no espelho uma mulher rejuvenescida. Com o corpo que o já tinha, torna-se uma mulher bela e madura. Nem de longe se pensaria na idade que tinha.

Não se sabe se antes ou depois da cirurgia, começaram as conversas intermináveis ao telefone. Para alguns familiares, talvez o verdadeiro motivo desencadeante da cirurgia fosse um admirador secreto. Sabia-se que antes de casar tivera um noivo que a família não permitiu o casamento sabe-se lá porque. Cada vida tem seu mistérios e desvendar os enigmas nem sempre é possível. A modernidade virtual favoreceu o encontro. Pelo Facebook localizou e ex-noivo e passaram a se falar por telefone. A ironia é ela se arrumava toda para atender os telefonemas. Seguindo o ímpeto de modernidade, pediu para falar com o secreto admirador pelo Skipe. A alegria beirava o jubilo quando viu a imagem do mesmo rapaz que fora noiva. Ele parecia mais lindo do que nunca e ela sentia-se totalmente feliz. Marcaram, depois de meses, um encontro. No trajeto até o lugar marcado, encontro sua melhor amiga que não a reconheceu. Tia Lúcia, sentiu um mal estar profundo ao perceber que a amiga de longa data, sem saber das alterações da fisionomia, não a reconhecera e pior, dera um abanos burocrático e um sorriso amarelo como se tentasse em sua memoria encontrar a ficha perdida em algum canto da memoria. Apesar deste impacto não levou em conta o mal estar, pois estava ainda tomada da euforia.

Sentou na mesa do bar. Olhou em volta. Duas mesas vazias, outra ocupada por um solitário cliente. Esperou. O garçom veio e ela pediu água com gás. Quando o garçom se virou, criou coragem e pediu uma taça de espumante.

Foi quando ele apareceu vindo de não sei onde. Era ele, lindo como sempre fora, pele lisa e uma barba cerrada e preta. Ele se identificou:

- Era comigo que você fala no Skipe.

Ela disse surpresa:

- Mas você é muito jovem para ser...

- Meu pai pediu que eu passasse por ele.

- Seu pai.

- Sim. Ele está ali naquela mesa.

Foi então que levantou-se um homem, ainda forte, mas abatido pela idade. Ombros caídos, barba e cabelos brancos. Arrastava a perna direita.

- Você está linda, ele disse.

Ela nada respondeu, apenas escutou a voz arrastada, vindo de algum ponto longínquo, de um ponto ausente no tempo, um hiato daquela voz agora marcada por uma AVC que desfilou uma serie de fatos que tangenciaram suas vidas sem nunca se tocar. Enquanto o homem falava, Tia Lúcia observava o filho.

Quando chegou em casa, procurou a antiga pistola de Tio Antônio, examinou a capsula e limpou o pó. Mirando no centro do rosto desfez o equivoco da cirurgia.

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