ONDE AS IMAGENS PERMANECEM
Fui a dois eventos em dois dias seguidos. Terça compareci a Escola José Loureiro da Silva no coração da Vila Tronco e quarta no Leopoldina Juvenil para o lançamento do livro sobre Porto Alegre de Leonid Streliaev.
Na terça foi comovente. Um homem de sessenta anos lendo em publico pela primeira vez. Ele lê o texto inicial de Bailei na Curva: “O Brasil pode explodir a qualquer momento em qualquer direção...” Dá uma entonação de Reporter Esso. Ele cria referencia, se relaciona com o texto, lê em voz alta. Depois a cena do Aborto. Conceição, uma mulher que trás no rosto as marcas do seu trabalho, entra nervosa, com texto na mão, quase chorando de emoção dá as falas do personagem Rodrigo. (Na primeira montagem fui eu que interpretei.) Depois, Ruth é interpretado por uma menina, Luciana, parece mais segura do texto, controla a situação de dentro da cena. Ajuda as atrizes. Solidariedade. Jacaré é interpretado por outra aluna. Quando cheguei na escola perguntei que personagem ele iria interpretar. Ela respondeu: “Jacaré”. Pensei, puxa, uma menina. No entanto, quando ela entra em cena eu não a reconheço. Quem eu vejo em cena é o Jacaré. Não a atriz. Depois começa a cena da Reunião Dançante. A pesquisa musical é excelente, dá o clima. Os atores desta vez são mais jovens, há um dinamismo, tudo tem um frescor de juventude, é uma cena viva. Depois, todo o colégio canta Horizontes. Eu fico comovido, me controlo. Quase me controlo. Penso que ler é a atividade que separa os homens dos animais. Pois ler implica em captar a experiência emocional do texto, do outro e de si mesmo. É falar com a alteridade, com a diferença. Não há medo da diferença. Há curiosidade. O professor Paulo fez a parte do teatro. Conta que deixou os alunos na sala de ensaio e disse: “Vire-se”. Eles mergulham no texto, buscam as referencias, vão atrás da história e encontram as suas. Um homem fala comigo, foi da P.E., polícia do exército, conta que apontou arma para pessoas legais que eram chamadas de subversivos. Confessa que não sabia. Acredito. Muita gente não sabia o que acontecia no Brasil. Vejo dignidade nele. Noutro momento um professor comanda a cantoria. Pergunto se ele é da professor de música. Ele responde que dá aulas de inglês. Outra toca violão, pensei que era professora de arte, mas ela me diz que não. É uma metida, responde ela. E assim a noite foi, embalada pela disponibilidade, pela entrega. No projeto Adote um Escritor, descubro muita gente adotando o outro, carregando pela mão, embalando um sonho. A arte embala a vida. Bailei na Curva foi a ferramenta da alfabetização, de jovens e adultos. Nunca pensei que a peça fosse tão longe, quando começamos nos reunir num apartamento da Getúlio Vargas. O alcance da arte não tem fim. Transcendo e inventa o humano. Foi o que vi no Loureiro da Silva, no meio da Vila Tronco. Temo estar sendo injusto, esquecendo de alguém, algum fato, foram muitas informações em pouco tempo. Surpresas.
Foi tão importante ver o Bailei na Curva no coração e mentes de uma turma que quase perdeu o trem da vida. Agora aprendendo a ler e escrever com a peça reinventar a si mesmo. Isso é arte.
Na noite seguinte, estive no Leopoldina Juvenil. Outro público, políticos, artistas, jornalista, formadores de opinião. Gente que aprendeu a ler há muito tempo. O lançamento de um livro sobre Porto Alegre, fotos maravilhosas. Muita comida, muita bebida. Claudinho Pereira brinca: “Que rico lugar para gente pobre”. Conversas agradáveis. Um belo evento. Na manhã seguinte vi que no livro de imagens sobre Porto Alegre não constava nenhuma do Bailei na Curva. Bailei se confunde com Porto Alegre, criou a ideia de um teatro profissional, personagens que se reconhecem e mesmo sem cenário sabem que tudo acontece aqui. O roteiro do livro é bom e talvez tenha razão. Talvez ali não haja lugar para o Bailei. Pensando melhor, não faz falta para o livro de fotos. Bailei é Porto Alegre, não em foto, imagem ou palavras. Bailei é Porto Alegre na leitura do coração do povo. O mesmo que não estava no lançamento do livro. Nem fez falta. Para o livro. Mas para mim sim. Sei por onde as imagens se eternizam.
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