A IRA DO PROFETA E A CAPACIDADE DE PENSAR
Ao evocar a ira do profeta associado e o gesto de decapitação, o juiz do TSE denuncia a grande falha simbólica que vive o Brasil, a paralisia do pensamento e o gigantesco buraco na capacidade de representar e nos processos de representação mental. Meu foco aqui não é o resultado da votação. Interessa mais observar as insígnias do pensamento. Há mais de 30 anos que exerço a dupla atividade da psicanálise e do teatro e, em ambas, a capacidade simbólica é essencial. A comunicação se dá através das vicissitudes da linguagem.
No teatro, lidamos com imagens que falam mais do que as palavras e. na psicanálise, com as palavras que falam mais além do que elas representam. Não somos os únicos animais que possuem linguagem. Em outras espécies, a comunicação visa lidar com eventos concretos restritos ao aqui-agora, enquanto que nossa capacidade se amplia quando falamos daquilo que não existe, mais além do imediato. Inventamos a ficção, futuro e passado, a identidade. Então quando o simbólico colapsa, o terror volta junto com o ódio e a barbárie. Perde-se a mediação entre a realidade bruta e a natureza social.
O social medido pelas regras e a comunicação humana perde a força das leis e das regras. A ira do profeta nos remete ao fundamentalismo e ao terror, inimigos pensamento. A decapitação, insigne da celebração perversa, espelha as execuções transmitidas pela rede. É uma das formas mais radicais da falência de dialogar. O gesto do juiz substitui a palavra e suprime, nos leva ao ato. A estrutura corrupta degrada e solidifica a falha simbólica. O resultado desta deterioração se revela na radicalidade dos extremos. Resta o extremismo num Brasil cindido pelo ódio à realidade, dividido em concepções que impedem o pensar. O discurso que deveria julgar se torna autoritário. Não acolhe as contradições nem ambiguidades, logo empobrece.
Um pensamento complexo deveria suportar os paradoxos fazendo as ideias evoluírem. A arbitrariedade triunfa nas horas mais escuras e, se não convocarmos o pensamento criativo, a poesia, a arte, a poesis incluindo responsabilidade social, pacto, solidariedade e ética perderemos nossa essência. Pois aquilo que se fala e não existe é o homem futuro, aquele adormecido em nossos sonhos. A psicanálise, tão contestada, e o teatro, tão maltratado, preconizam um espaço pensar quando o entorno concorre para o terror.
texto publico no Jornal Zero Hora
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