FELICIDADE - PARTE 2

A desmedida aparece nos relatos míticos de Prometeu, Sísifo e Tântalo. Prometeu roubou dos deuses o fogo e a luz do saber técnico, depois os entregou aos homens. Como punição da ousadia é acorrentado nos rochedos e tem o fígados devorado por abutres todas as manhãs. O Rei Tântalo convidado pelos deuses, rouba o néctar e ambrosia da festa divina para partilhar com os homens. Condenado a suplicio eterno de padecer de sede e fome tendo sempre a frente, mas não ao alcance toda a água e a comida que desejava e não podia ter. Já Sísifo conseguiu manejar a natureza dos rios com um estratagema de revelar um segredo de Zeus para divindade que gerenciava os rios. Foi condenado a mais inútil das ações. Levar uma pedra até o topo da montanha e vê-la rolar pelo lado oposto eternamente.
E assim pelo viés Freudiano e pelo conhecimento mítico vemos, no mesmo espaço e no mesmo tempo, o homem natural e o homem artificial, o civilizado e o primitivo, o sonho e sonhador. Só que enquanto o civilizado entra na fila, o animal selvagem narrado por Nietzsche, animal trancafiado nos sótãos da cultura urra e espuma de rancor. O civilizado olha para o lado e faz que não com ele. Se vacilar, canta Noel Rosa de camisa listrada.
Bion chama este animal trancafiado de mente primitiva. Ela que convive com o civilizado, as vezes empurra para umas doses a mais, as vezes ele dá em cima da mulher do próximo, mas o civilizado pede ajuda para Apolo e tenta domesticar o selvagem e o selvagem chama Dioniso e resiste. O Médico e o Monstro de Stevenson, cujo pêndulo oscila ora para um lado, ora para outro. Esta mente primitiva, animal selvagem enjaulado repousa dentro de nós, confere parâmetro de felicidade passageira e nos surpreende todas as noites em nossos sonhos.
Uma luta titânica. E frente a ambigüidade, na pressa e na ânsia de dar um destino melhor para o conflito entre a satisfação e a autodestruição o homem moderno, na busca da felicidade, fez uma opção pela segurança. E assim restringiu a felicidade e a capacidade de ser feliz em nome da segurança. O preço que o homem moderno resolveu pagar. Pagou com a expectativa de um prazer substitutivo. Pagou para tentar usufruir da sublimação. Pagou para se preservar. Pagou para evitar o gozo absoluto e a morte. Pagou para evitar risco de extermínio. Pagou para criar o futuro. E pagou para acreditar no futuro. Pagou para não se incomodar. E ficou incomodado com isso.
Concebido deste modo o homem moderno buscou padrões para o progresso. Encontrou estes parâmetros na beleza, na ordem e na limpeza. O homem civilizado e seus perfumes. O progresso baseado na beleza, ordem e limpeza demandou um grande esforço e um grande trabalho de renuncia. Beleza é atributo da atração sexual que ganha ares da sublimação. A beleza é verdade e a verdade é bela, já dizia o poeta. Beleza como uma depuração do sexual que se apresenta em cada detalhe da vida humana, que se realiza na arte sob as mais variadas formas de transformações. A ordem se opõe as poderosas forças caóticas da natureza estruturada ao acaso e sob o signo da turbulência. O vazio infinito sem forma que Milton revelou. A teoria do Caos e os atratores estranhos subvertendo o sistema com lógicas não lineares. E a limpeza, o lixo, o dejeto antiecológico jogado para baixo do tapete, o primitivo nosso de cada dia. Sob esta tríade o homem moderno construiu seu império. Preceitos idealizados pelo iluminismo do século 18. A crença que o progresso gera felicidade foi empurrada pela tríplice revolução: a científica, industrial e francesa e estabeleceu como parâmetro a perfectibilidade humana. Esqueceram que dizer que a felicidade não é um bem supremo nem um fim último ao qual se subordinam todas as normas e princípios morais. Esqueceram de avisar que a felicidade é transitória e apoiada em contrastes. O que se observou foi a falência das concepções iluministas. A equação progresso igual felicidade não se realizou mas deixou uma grande cicatriz que terá conseqüências nos séculos seguintes pois criou ideais inalcançáveis, expectativas falsas e uma fé cega no sistema. De um lado a fantasia da igualdade social, um belo sonho sonhado, ruiu com o Muro de Berlim, o militarismo e a corrupção do Império Soviético. Noutro extremo o capitalismo e a livre iniciativa não conseguem aumentar o nível de felicidade gerando mais ansiedade nas diversas camadas sociais pela comparação constante, pelo exibicionismo e pela ostentação. Pesquisas americanas baseadas níveis de consciência aprazíveis, fatores pessoais, sociais e culturais, parâmetros de saúde, e ainda na capacidade de experiências emocionais, mostram que há um acréscimo de felicidade quando a renda per capita consegue chegar a 20 mil dólares ano e depois disso se estabiliza, voltando a fazer diferença quando a renda ultrapassa os 80 mil ano. Neste meio, temos níveis estáveis de felicidade. O mesmo acontece com ganhadores de grandes prêmios lotéricos que, depois de um período de euforia, tendem a entrar num platô e com freqüência perdem o que ganharam retomando a realidade emocional anterior a premiação. Não é por nada que Freud sustentava que o dinheiro não trazia felicidade na medida que não era um desejo infantil. Estas observações do platô de felicidade falam a favor de um estado de felicidade intrínseca regulado pela capacidade de satisfação e capacidade de tolerar a frustração. Função alfa. O sujeito teria um quantum de felicidade disponível que faria uso antes de saturar a concepção.
Uma nova reviravolta ocorre com o homem pós-moderno. O mundo globalizado, o livre comércio, o universo virtual e a integração do planeta pela web alimentado por satélites diminuíram o tamanho da Terra. O sistema de permutas se fragilizou num mundo volátil de ações que despeçam e torres que desabam. A promessa foi maior do que o produto e não temos nenhum PROCON ao qual recorrer. O impasse humano é fugir da insatisfação produzida pela realidade ou transformá-la em algo plausível. O que temos para o momento é aumento dos substitutos, uma parafernália tecnológica de informações que não dão conta da demanda. Pelo contrário, o crescimento do mundo técnico, científico e cultural só fez crescer a insatisfação e as igrejas evangélicas. O anterior sonho de progresso e felicidade tornou se em pesadelo da desigualdade social. A virtualidade aumenta a solidão, a oferta pareia com mais oferta e a procura só encontra mais procura. Assim numa espiral de trapezistas malucos nossa sociedade migrou do sonho social para o sonho individual. O que era na sociedade moderna o prazer coletivo ao prazer solitário. Do sonho do casal criativo e da família continente vemos o salto mortal para o orgasmo solitário em frente ao computador. No lugar da intimidade, youtube, no lugar do corpo, o fantasma. A felicidade virou prazer puro e o prazer foi gradativamente se auto-erotizando. O sonho masturbatório se por um lado evita a auto-destruição no isolamento fóbico do sujeito, por outro deteriora os vínculos, vitimando-os através do exercício do domínio sádico sobre o objeto do desejo.
A resultante da inversão proposta pelo pós-moderno é a depressão, mal do século. Esta perda se apresenta na sociedade atual nas mais variadas formas. Se na Viena de Freud a histeria era o top de linha, hoje, as depressões tomaram conta. Uma sociedade que mergulha no sexo sem obter satisfação, que faz uso crescente de drogas para alterar estados de consciência insiste em banha-se nas águas turvas da depressão, da superficialidade e do sem sentido. A gangorra do narcisismo pende sobre o social-ismo desprezando sensibilidades. O individualismo entra em campo com toda a força. O individualismo forma núcleos, tribos, classes, em busca solitária pela felicidade. A família é substituída por estas tribo, simulacros funcionais narcísicos se impondo ao social-ismo. A configuração se aproxima de uma espécie de encastelamento de certezas para não ter chance de nenhuma dúvida. Deste modo o homem palavra pós-moderno que anteriormente havia trocado quinhão de felicidade pela segurança, se arrepnede e tenta desfezer este negócio. Manda a segurança as favas e volta correndo para os braços do prazer. Raves de vários dias, drogas que aumentam a força física e o poder sexual, drogas que aumentam os músculos e a capacidade de atenção. Medicações que redimem a virilidade e outras que espantam o sofrimento, analgésicos hormônios do crescimento, e uma química mirabolante marcam o homem pós-moderno. É um homem que confunde superação como vitória, desejo com compulsão, amor com sexo, compaixão com sentimentalismo, pornografia com erotismo. A prevenção para a fragilidade do corpo, a defesa contra terror de mundo indômito e a proteção contra a vizinhança agressiva deu lugar a um corpo bombado, siliconado, quimicamente fortalecido. A metáfora é o uso do GH, hormônio do crescimento com o intuito de criar uma nova-velha informação de que o corpo está em anabolismo. Tenta enganar o envelhecimento natural. O mundo indômito torna-se um mundo globalizado e de fácil acesso, real e virtual. Todos juntos, pertos e acessíveis. E os vizinhos agressivos tornados objetos de admiração e folclore com o turismo ecológico e exótico.
Assim, o sonho que tive e do qual despertei, me remeteu a um grande vazio sob meus pés, e eles, um tanto inchados de tanto percorrer este caminho em busca da felicidade.

Comentários

Unknown disse…
Júlio!
Presenciei sua fala no CEP. Parabéns pelo BAITA texto. Foi, realmente, um momento mágico.
Para continuar a reflexão, vale Fernando Pessoa:
"A felicidade está fora da felicidade".
Abraços,
Viviane Herchmann

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