TRÊS PSICANALISTAS PROPONDO NOVOS PENSAMENTOS

Artigo publicado em ZH por Fabio Pricladninski e Carlos André Moreira entrevistando Abrão Slavutzky, Edson Sousa & Júlio Conte
1. A INCERTEZA
Em um mundo em perpétuo movimento, parece haver uma saudade brutal da época em que as utopias prometiam a chegada a um estado final de imobilidade, perfeição e mudanças. E essa saudade vira uma exigência desesperada por respostas, definições, certezas. É essa a linha de reflexão que o dramaturgo e psicanalista Júlio Conte vai apresentar aos participantes do curso. É Júlio o primeiro a discordar do próprio título do evento, que fala em “propostas para não se acomodar à vida como ela é”. Conte não fará propostas, fará “antipropostas”, propostas negativas. Ou seja, em vez de respostas, fará perguntas:– Na minha concepção, a vida como ela é hoje está empobrecida, enclausurada, fechada em conceitos congelados, em conceitos políticos emburrecedores. A ideia seria como desmontar o nosso sistema atual, que o tempo todo pede certezas e afirmações. Na pergunta tem uma proposta. Não é a nossa ideia oferecer uma nova verdade, é questionar os preceitos que fazem a vida ser como ela está, é apresentar uma nova pergunta.Conte promete puxar o fio da provocação: é preciso realmente buscar as respostas de forma tão desenfreada a ponto de esquecer o valor de fazer as perguntas.– Os modelos modernos de 1968 tinham uma ideia de que alguma coisa tinha solução, que havia uma resposta a ser dada para alguma coisa com a ideologia. Mas hoje já se descobriu que até equações para um problema lógico, científico, podem ter mais de uma resposta. Ou seja, a incerteza faz parte da realidade, e resta à gente aceitar isso em vez de ficar substituindo sempre uma verdade por outra.Tal entendimento se espalha até mesmo para o campo de atuação de Conte e de seus colegas. Ele defendeu recentemente em um trabalho que hoje, na psicanálise, é necessário desconstruir seus conceitos originais em um momento em que muitas de suas proposições se espalharam, oferecendo a ideia ilusória de entendimento.– Os pensamentos psicanalíticos se inseriram de tal forma na cultura que viraram clichês, ninguém acredita mais em Complexo de Édipo da maneira original. Tem de ter uma nova noção sobre esses pensamentos, é preciso refletir para chegar ao que não é o entendimento comum. Por isso as propostas do nosso curso trabalham com o “não”. Vamos negativar alguma coisa para desmontar o pensamento estabelecido e criar algo novo. É preciso se livrar das certezas.
2. O INVISÍVEL
Na noite de 5 de janeiro de 1953, o dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906 – 1989) provocou o público parisiense com a estreia de uma peça sem enredo. Dois sujeitos simplesmente passavam o tempo aguardando um terceiro que, no final, para decepção da plateia, não aparecia. É sintomático que Esperando Godot tenha se tornado um texto-chave do imaginário moderno justamente ao colocar no centro da história um protagonista que ninguém jamais viu. Muitas interpretações foram sugeridas para o significado do misterioso personagem, nenhuma definitiva.Não por acaso, cerca de 50 anos antes, Freud elaborava os princípios da psicanálise, que se sustentam sobre algo que, assim como Godot, é invisível: o inconsciente. Engenhoso, Freud deixou como legado uma insistente pulga atrás da orelha: não somos constituídos apenas de razão, como sugeria Descartes, mas também de uma dimensão oculta à qual ninguém tem fácil acesso e que está relacionada aos sonhos e aos lapsos (nomes trocados, esquecimentos e assim por diante).– É como falar sobre o amor – compara Abrão Slavutzky, que vai abordar no curso o tema da invisibilidade. – O amor também é invisível, e o exemplo disso é que em nossas relações estamos sempre dando e cobrando provas de amor. É a energia que nos estimula criativamente.Slavutzky defende a importância do jogo e da brincadeira para tornar a vida menos “prosa” e mais “poesia”. Nesse sentido, a arte e outras manifestações criativas têm papel fundamental. Podem mudar o mundo – ou pelo menos a forma como o encaramos.– Por meio do jogo, as crianças trabalham a dimensão traumática da realidade. A vida é difícil de ser digerida. Como se enfrenta isso? Alguns vão para as drogas, que é um caminho negativo. Outros vão para a arte, por exemplo – diz Slavutzky.O invisível remete também, ou talvez antes de tudo, à explicação mais recorrente para o sentido da vida, o da divindade. Embora haja uma farta tradição iconográfica grega e cristã, o Deus judaico (Jeová) e o Deus muçulmano (Alá) não são representados em imagens. A religiosidade tem sido motivo de debates fervorosos, estimulados, nos últimos anos, pela explosão de publicações sobre ateísmo, que por sua vez motivaram outros títulos em defesa da religião – ou da espiritualidade, sua forma laica. Algumas décadas antes, Freud já havia se debruçado sobre o tema. Filho de um judeu religioso, foi em contrapartida um cético de carteirinha, mas o último trabalho que enviou para um congresso psicanalítico, como ressalta Slavutzky, tinha um título que surpreendeu os demais: Os Progressos da Espiritualidade.
3. O INOMINÁVEL
Embora venha a falar no curso ministrado no sábado sobre a tênue categoria do “Inominável”, o psicanalista Edson Sousa explica que suas reflexões partem sim de um nome: Utopia, o livro de Sir Thomas More sobre a sociedade inexistente que, por extensão, acabou por dar nome a todos os sonhos de feição impossível. E é justamente essa impossibilidade que faz o valor das utopias: o impossível servindo como ferramenta de crítica ao possível.– As utopias hoje estão em baixa. Hoje se usa a palavra utopia quase como um adjetivo de desqualificação. Dizer “isso é uma utopia” tem esse sentido de apontar um delírio. O que é interessante de ver é que toda a história das utopias, e isso desde a República de Platão ou do surgimento da palavra com Thomas More, as utopias parecem tentativas de fazer ficções para injetar fantasias na vida. São utopias que não têm um programa, uma resposta. Na verdade são ficções que imaginam que é possível ter um mundo diferente.O mundo diferente remete ao mundo como ele é, o tema do seminário. Para Sousa, o mundo e a vida hoje vivem um momento de automatismo, de congelamento dos sentidos, uma vida que remete à descrita pelo sociólogo Zygmunt Bauman em seu recente Vida para Consumo.– Vivemos em um momento de uma sociedade código de barra, onde tudo tem a ver com os valores do capital que orientam a vida de muita gente, a produtividade, a relação obsessiva ou escravizante com o trabalho.Sairia daí o valor da noção de utopia, de sua recuperação. Mas para evitar confusões com as passadas experiências de construção prática de utopias de direita e de esquerda que levaram a milhões de mortos e oprimidos, Sousa faz questão de diferenciar sua noção de utopia daquela aceita pelo senso comum – afinal, afastar-se do senso comum é a proposta central dos três psicanalistas:– É preciso diferenciar as utopias da arte das utopias projetivas, aquelas populares no século 20 segundo as quais uma grande narrativa humana traria uma resposta ao final. Essas utopias levaram ao totalitarismo. Sempre penso as utopias em sentido iconoclasta, aquelas que descreveram um mundo tão absurdo que criticam até mesmo essas grandes narrativas. Utopias impossíveis de fato, aquelas que postulam um lugar ou um modelo para o qual não é possível encontrar uma palavra, um nome. O inominável.

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