O CHAPÉU DA PALHA
A depressão das festas de Natal já se anunciava com a saúde de Papai em boletins médicos cada vez mais preocupantes. Os relatos eram contundentes. Papai perdia gradativamente as faculdades mentais e minha mãe se deprimia na mesma proporção. O fantasma do “último natal entre nós” ameaçava o conforto emocional da família há mais de vinte anos. Desde que papai cruzara perigosamente a curva dos oitenta tendo sua saúde nocauteada pelo coração cheio de fibroses e da pressão artéria que insistia em subir as alturas. Esta clínica silenciosa se contrapunha com dores musculares e articulares que sempre abateram o corpo de papai resultado de uma grave assimetria de suas pernas. Sob pressão dos anos a coluna vertebral dera sinal que sentia as conseqüências da compensação e trazia no corpo sinuoso o desenho do tempo. Mais ainda agora quando a centenária existência obrigara Papai e usar cadeira de rodas. Imprescindível para viabilizar os passeios que permitiam o velho corpo tomar sol, usufruir os dias de verões que marcavam o final de ano, e transitar pelas ruas de Petrópolis. Sob os cinamomos resistentes a anos de podas mal feitas, o rosto de Papai se iluminava. Ria ao descobrir sobrados restantes e detalhava as marcas do tempo em suas paredes infiltradas entre os novos donos da rua, os grandes edifícios erguidos à custa de memórias derrubadas pelas marretas da especulação. Era outro depois da cadeira de rodas, pois qualquer caminhada, mesmo com apoio das muletas e do fiel enfermeiro, era uma travessia árida e desgastante. O saldo quase não valia o esforço. Por essas e por outras que medo da morte nesta Natal tornara-se uma ameaça concreta. A debilidade física era notória. As faculdades mentais se esfacelavam como tijolos arrebentados, as memórias era uma caliça disforme, onde raramente podia-se perceber sua outrora função. Era um amontoado de sentimentos que apenas se salvavam por um espírito que sempre permeou a personalidade do patriarca. Algo nele sempre insistiu que viver valia à pena. Desta premissa certa vez ele construiu uma frase: “quero chegar aos 100 anos para provar”. Provar o quê, era a inevitável pergunta, ao qual ele respondeu:
- Que eu fui até o fim.
Ele era assim, obstinado, mas a mente de Papai neste momento era um burburinho de recordações. Tempos diversos conviviam em lapsos que podiam durar horas ou segundos. Acordava no meio da noite para uma viajem de negócios que fizera há cinqüenta anos. Planejava uma viajem para a Itália para encontrar os parentes que nunca conhecera. Arrumava a mala para passar o verão na Praia Azul. Momentos em que ele falava de sua mãe, morta há mais de setenta anos como se ela estivesse no quarto do lado. A presença imaginária de sua mãe, completava o insistente corpo em sua tensão constante com a mente, entre o passado e o futuro, entre o vivido e o sonhado. E assim, numa cerimônia de encontros mágicos, ele silenciosamente, se preparava para a hora final. E nós, os filhos, netos e bisnetos, ao redor observávamos impotentes as marcas do tempo avançando sobre ele como locomotiva desgovernada e fora dos trilhos sabendo que o nosso momento estava se projetando ali, em papai, como a nos avisar daquilo que viveremos um dia. Se tivessemos sorte.
Foi então, que neste Natal, para amenizar o sol sobre a sua cabeça, resolvi comprar um chapéu Panamá. No interior onde fomos criados, seria um chapéu de palha, sem o glamour, mais do que tudo um indício das origens de colonos filhos e netos de imigrantes, com um passado de falta e penúria que geração após geração tenta dela se evadir. O chapéu de palha faria ressonância com uma cantiga infantil repetida ao longo das gerações que brincava com meu avô e seu chapéu de palha e seguia num processo transgeracional que chegava aos dias de hoje, em Porto Alegre, nos cem anos de Natais de Papai. Na cadeira de rodas, o chapéu de palha serviria para passear ao sol sem precisar sofrer as evidências dos buracos da camada de ozônio. Quando entreguei o presente para Papai, o chapéu panamá, ele abriu um sorriso como se fosse uma criança. Ria sem parar, seus movimentos recuperaram a agilidade. Os músculos agora retomavam as forças. Ele falou:
- Mas desde os seis anos de idade sonhava com um chapéu assim! Agora sim, eu posso ir para a rua. Só que tem um problema. Que as mulheres vão querer me beijar!
Foi neste momento que Mamãe entrou na sala. Imediatamente Papai emendou, essa é a mulher que vai querer me beijar. E seguiu afirmando que ninguém iria mexer no panamá, a não ser ele. E parou para examinar encontrando um pequeno ponto escuro na palha, reclamou, que alguém já tinha sujado. Depois colocou o chapéu para uma foto. E lépido e faceiro levantou-se quase sem uso das muletas e foi até a o presépio com um sorriso de menino no rosto. Como um ressuscitado. Como a alma revigorada. Depois cantou canções em italiano e fez todo mundo chorar de alegria.
Foi o melhor presente da minha vida, ele repetia. Na hora do discurso falou que sentia uma alegria tão grande dentro dele que não encontrava palavras para expressa-la. E voltou a cantar.
Foi o Natal do chapéu de palha.
- Que eu fui até o fim.
Ele era assim, obstinado, mas a mente de Papai neste momento era um burburinho de recordações. Tempos diversos conviviam em lapsos que podiam durar horas ou segundos. Acordava no meio da noite para uma viajem de negócios que fizera há cinqüenta anos. Planejava uma viajem para a Itália para encontrar os parentes que nunca conhecera. Arrumava a mala para passar o verão na Praia Azul. Momentos em que ele falava de sua mãe, morta há mais de setenta anos como se ela estivesse no quarto do lado. A presença imaginária de sua mãe, completava o insistente corpo em sua tensão constante com a mente, entre o passado e o futuro, entre o vivido e o sonhado. E assim, numa cerimônia de encontros mágicos, ele silenciosamente, se preparava para a hora final. E nós, os filhos, netos e bisnetos, ao redor observávamos impotentes as marcas do tempo avançando sobre ele como locomotiva desgovernada e fora dos trilhos sabendo que o nosso momento estava se projetando ali, em papai, como a nos avisar daquilo que viveremos um dia. Se tivessemos sorte.
Foi então, que neste Natal, para amenizar o sol sobre a sua cabeça, resolvi comprar um chapéu Panamá. No interior onde fomos criados, seria um chapéu de palha, sem o glamour, mais do que tudo um indício das origens de colonos filhos e netos de imigrantes, com um passado de falta e penúria que geração após geração tenta dela se evadir. O chapéu de palha faria ressonância com uma cantiga infantil repetida ao longo das gerações que brincava com meu avô e seu chapéu de palha e seguia num processo transgeracional que chegava aos dias de hoje, em Porto Alegre, nos cem anos de Natais de Papai. Na cadeira de rodas, o chapéu de palha serviria para passear ao sol sem precisar sofrer as evidências dos buracos da camada de ozônio. Quando entreguei o presente para Papai, o chapéu panamá, ele abriu um sorriso como se fosse uma criança. Ria sem parar, seus movimentos recuperaram a agilidade. Os músculos agora retomavam as forças. Ele falou:
- Mas desde os seis anos de idade sonhava com um chapéu assim! Agora sim, eu posso ir para a rua. Só que tem um problema. Que as mulheres vão querer me beijar!
Foi neste momento que Mamãe entrou na sala. Imediatamente Papai emendou, essa é a mulher que vai querer me beijar. E seguiu afirmando que ninguém iria mexer no panamá, a não ser ele. E parou para examinar encontrando um pequeno ponto escuro na palha, reclamou, que alguém já tinha sujado. Depois colocou o chapéu para uma foto. E lépido e faceiro levantou-se quase sem uso das muletas e foi até a o presépio com um sorriso de menino no rosto. Como um ressuscitado. Como a alma revigorada. Depois cantou canções em italiano e fez todo mundo chorar de alegria.
Foi o melhor presente da minha vida, ele repetia. Na hora do discurso falou que sentia uma alegria tão grande dentro dele que não encontrava palavras para expressa-la. E voltou a cantar.
Foi o Natal do chapéu de palha.
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Parabéns!
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