SAMUEL BECKETT NO QUARTO DA MAE MORTA
Quando Samuel Beckett entrou no quarto de sua mãe morta, sua mente mergulhou num estado de devaneio, em direção a algum lugar desconhecido ao qual ele sempre teve acesso, mas levou uma morte inteira para entrar. Foi neste momento, olhando a cama desfeita, colcha formando um rastro de movimento, os chinelos despareados e a luz da cômoda ainda acessa que Samuel Beckett teve uma revelação. Todo o caminho até então em sua vida levada na direção do conhecimento já que James Joyce dominava sua mente com sua exuberante cultura, sua habilidade com as palavras e sua impressionante capacidade de reinventar um idioma. Sam vivia solapado e fascinado pela genialidade de Joyce. Fora seu pesquisador, e não secretário, como muitas versões sustentam, e o fizera justamente na obra mais polêmica e hermética: Finnegans Wake. Obra essencial que, anos depois, veio a ter uma tradução-reinvenção exaustiva e minuciosa de Donaldo Schuller. Samuel Beckett fizera análise com Wilfred Bion, quando entrara numa grave crise depressiva após a morte do pai. Mudou-se então para Paris onde conheceu Marcel Duchamps e outros artistas jovens e também o já consagrado James Joyce que passou a ocupar o lugar do mentor, pai e de ideal de ego. Estimulou Sam a escrever e a namorar sua filha Lucia. Samuel Beckett por intuição, sabedoria ou sorte, seguiu a escrita que já trazia na alma, mas não levou adiante empreendimento amoroso. Lucia desenvolveu nos anos seguinte um processo esquizofrênico. Como todo pai, Joyce buscou recursos para ajudar a filha, estimulou a redigir seus pensamentos como uma forma de sublimação das fantasias delirantes, até que finalmente aceitou a doença e procurou um psicanalista, Gustav Jung, na época ainda aliado a psicanálise freudiana. Joyce neste encontro histórico como Jung recebeu a noticia do quão grave era a enfermidade. Ao que Joyce relutante, sustentou que Lucia ao escrever, produzia o mesmo discurso que ele, sendo que nele era genial e na filha uma doença. Ao que Jung respondeu com sabedoria:
- Nas águas onde tu navegas, tua filha se afoga.
Por isso, Beckett, examinando os resquícios da mãe morta teve uma visão de si mesmo. Tipo de movimento criativo que passou a ser a marca analítica do Bion, em sua busca de um estado emocional na escuta analítica que se aproxima do devaneio e consiste em permanecer sem expectativas determinadas pelo desejo, nem numa busca desesperada por um sentido, nem mesmo uma explicação vinda do passado. Bion iria teorizar nos anos 60 um tipo de vínculo relacionado ao conhecimento, um desejo epistemológico e seu negativo, o menos conhecimento, - K. É bem provável que tal insight de Beckett seja resultado de sua análise haja visto a proximidade conceitual. O que sabemos é que Samuel Beckett no quarto da mãe morta teve uma epifania, uma visão se seu futuro, o que Bion chamaria de Memória do Futuro. Optou a partir de então por um caminho oposto ao mestre, superando assim sua submissão a Joyce. O que Sam descobriu naquele momento foi que se Joyce ia em direção a um saber, ele deveria ir exatamente no oposto. Achou a alma de suas peças que viriam a marcar a humanidade a partir de então. O que se formulou na mente de Beckett é que o sujeito humano tem que lidar com o desespero e o desejo de sobreviver apesar da desesperança em face a própria incompreensão e incompressibilidade do mundo. A força primitiva que impulsiona o homem a continuar a falar é a mesma, em quantidade, qualidade e força que o move em direção ao silêncio e a incompreensão. O homem vive numa zona crepuscular na qual o saber e o não saber ocupam posições simétricas, análogas e de intensidade semelhante. A partir deste instante, toda a obra de Samuel Beckett avança em direção a estas premissas, e por isso mesmo, ao minimalismo, ao non sense, ao sentido que reside e resiste na falta de sentido. Frente ao desespero o homem segue apesar disso, sem nada, perdido em si, e tendo apenas a si mesmo para seguir adiante. E isso é pouco, e é muito. I can’t go on, I’ll go on.
Comentários
E que coisa boa encontrar seu blog! Não sabia que vc tinha um. E é
tão difícil encontrar tanta qualidade por aqui! Valeu! Ângela Broilo