O COMENTÁRIO DO LUCIANO ALABARSE SOBRE A MINHA PEÇA PÍLULA DE VATAPÁ


Conheço Júlio Conte há muitos anos. Não so­mos amigos próximos, nem tampouco solenes desconhecidos. Somos colegas de ofício e, nesta condição, acom­panho sua carreira teatral com interesse. É um profissional vitorio­so, sem dúvida - e não precisa mais provar nada para ninguém. Sua obra já fala por si.
Fui assistir a montagem de seu último texto, dirigido por ele mesmo, depois de ouvir alguns ácidos comentários sobre a mon­tagem. Graças a Deus, tenho o saudável hábito de assistir os espetáculos locais e tirar minhas pró­prias conclusões. A verdade é que adorei o resultado do trabalho. O primeiro aspecto que mere­ce destaque é a presença do pró­prio Júlio em cena, como um deus ex-macchina, dividindo o palco com jovens atores da cena gaú­cha, todos ainda com um vasto caminho pela frente, mas dando os passos atuais apoiados pela condução de um homem de tea­tro muito experiente.
A experiência de Júlio, aliás, não diminuiu sua inquietação e a busca de um caminho próprio como diretor. Esta PÍLULA DE VATAPÁ, para quem o conhece, mostra claramente algumas das
opções recorrentes em seu tea­tro: texto de forte cunho social, onde o político e o psicológico se entrelaçam em histórias de tintas fortes; temas como incesto, pedofilia e corrupção fazem da história deste texto uma ótima as­similação - não como cópia, mas como referência do universo do grande Nelson Rodrigues. O tex­to, pela força contundente de suas situações, lembra a feste­jada "Álbum de Família", uma das maiores e mais densas peças do autor carioca; a trilha sonora, abundante e divertida, trafega entre o brega mais deslavado e os últimos sucessos de uma boa pista de dança; a agilidade das marcações, que procura o movi­mento durante todo o espetáculo; cenas curtas, que se interpõem umas às outras, esclarecendo a situação cênica desen­volvida em tempos paralelos.
PÍLULA DE VATAPÁ é um espetáculo que merece atenção. A ressaltar ainda que alguns ato­res do elenco, seja pela idade, seja pelo histórico de vida, atuam ainda na superficialidade de seus personagens, resolvendo suas atuações, algumas vezes, no cliché de uma caricatura - quan­do a situação pediria mais con­tenção e complexidade. E um fato muito interessante deve ser destacado: o elenco masculino se mostra mais preparado para apresentar as contradições sombrias de seus personagens que o naipe feminino, coisa impen­sável no teatro gaúcho de alguns
anos atrás. Nesse universo, é importante destacar duas ótimas atuações: a de Lucas Sampaio, como o filho vítima de abuso pa­terno, cujo amadurecimento como ator é evidente e bemvindo, e Eduardo Mendonça, fazen­do mais de um personagem, ambos com força é propriedade. O resultado do espetáculo é fruto dessa escolha do diretor: entregar seu texto contundente para jovens atores iniciantes, al­guns ainda descobrindo os se­gredos e as sutilezas do palco. Mas isso, que alguns apontariam como o ponto fraco do trabalho é, ao mesmo tempo, seu grande trunfo, sua virtude. Júlio poderia encaminhar sua carreira para re­petir fórmulas de sucesso comprovado, trabalhar com atores veteranos, mas quer arriscar o novo - e arrisca. Tenho certeza de que os deuses do teatro sempre abençoam aqueles que, no tea­tro, arriscam.
Algumas marcações são inte­ligentes e solucionam bem a questão espacial do espetáculo. Gosto, principalmente, do uso criativo das cadeiras, quando se interpõem entre os corpos dos atores, ou quando seguem uma trilha movente que se desloca pelo palco. No meio disso tudo, o próprio autor, como um DJ corro­sivo, controla o ritmo e o anda­mento de seu trabalho, como um
maestro regendo seus músicos, atento e carismático. Generoso, esse é um dos espetáculos que mais gostei de Júlio Conte. Porque não esta preso nem acomodado a resultados fáceis, porque não demonstra ao reinventar sua própria linguagem e porque abre espaço à geração que vem chegando.


Faça como eu, e vá conferir PÍLULA DE VATAPÁ quando voltar ao cartaz. Depois a gente conversa, para ver se a minha recomendação é exagerada. Eu, da minha parte, gostei muito e desejo vida longa ao espetáculo.



Luciano Alabarse
Diretor de Teatro

AMANHÃ. DIA 19 VAMOS APRESENTAR A PEÇA NA FEEVALE AS 20 HORAS.
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