Crítica da peça Vendetta Corsa por Antônio Hohlfeldt
Inquisição sobre a violência contemporânea
A temporada teatral de Porto Alegre tem sido bastante diferenciada neste ano. No apagar das luzes, fomos presenteados pelo belíssimo e inesquecível Théâtre du Soleil; agora, assistimos a mais um Porto Verão Alegre. Mas antes do Natal tivemos ainda uma última surpresa: o dramaturgo e diretor Júlio Conte estreou e fez uma pequena temporada de seu novo texto, Vendetta Corsa, Porque a minha ferida é mortal, com um grupo de jovens atores, na Sala Carlos Carvalho da Casa de Cultura Mario Quintana.
Final de ano, imaginamos uma plateia escassa, mas que nada: o público praticamente lotava a sala, o que é muito bom para o ritmo do trabalho, sobretudo no caso de jovens intérpretes.
Júlio Conte parte certamente, de sua experiência de psicanalista para a constituição deste novo texto. Com ele, o dramaturgo dá seguimento às pesquisas que vem realizando em torno da violência na sociedade contemporânea. Neste caso, ele monta um espetáculo de pouco menos de uma hora de duração, com histórias paralelas e fragmentadas, cujos segmentos são apresentados alternada e sucessivamente, cabendo ao público acompanhar a cena para completar os enredos e entender seus desenvolvimentos. De modo geral, são histórias de paixões - com o que Conte volta àquela matéria-prima que desde os gregos tem animado a arte: as desmedidas e desequilíbrios dos seres humanos em situações limites.
O espetáculo é bastante simples em sua cenografia, com alguns baldes distribuídos no espaço cênico. A reiterada menção à água evidencia que o trabalho é pensado enquanto uma espécie de purgação, segundo a lição antiga de Aristóteles. Os figurinos também são simples: camisetas brancas, manchadas de vermelho-sangue, com os atores caracterizados pela marca de Caim em suas mãos. Cada um cometeu algum crime e as revelações em torno do contexto de cada situação constituem o espetáculo propriamente dito, desenvolvido em flash backs.
O elenco é jovem, como se disse, e isso logo aparece, na medida em que eles, querendo enfatizar a dramaticidade das situações, gritam, ao invés de trabalharem as entonações. Contudo, com o desenvolvimento do trabalho, a naturalidade vai sendo alcançada e o espetáculo se encerra num bom nível, com rendimento equilibrado e, sobretudo, uma consciência de trabalho coletivista, que é muito importante.
É importante o trabalho que Conte vem desenvolvendo com esses jovens intérpretes, revelando artistas e vocações e, ao mesmo tempo, aprofundando a discussão em torno de temas que o interessam diretamente. É provável que, a exemplo dos espetáculos anteriores a que já assistimos, o diretor e dramaturgo retorne à cena ao longo da próxima temporada, ou mesmo agora, durante o período de verão, permitindo amadurecimento de seu conjunto.
A morte - sob o aspecto do assassinato - externa uma perspectiva de violência e de inaceitabilidade da realidade, característica da sociedade contemporânea. O subtítulo - porque a minha ferida é mortal - é ambíguo, mas bem traduz o contexto contemporâneo: essa mortalidade tanto se refere a quem sofre a violência, vítima, enfim; como quem a realiza, pois a ferida mortal da expressão de violência também é destruidora em relação a quem a exercita e, na verdade, não se limita a situações individuais, como se revela uma característica da contemporaneidade: por isso, ao nível do enredo, Conte inscreve como personagem narrador um delegado de polícia que tenta ligar os diferentes assassinatos entre si, já que eles são cometidos em diferentes situações e regiões da cidade. Por trás da inquisição policial, na verdade, Júlio Conte apresenta ao espectador uma indagação filosófica sobre o sentido dessa violência dos dias de hoje.
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