A LUCIDEZ DE YACOFF SARKOVAS

Por que insistir em um modelo insustentável?


A cultura e as artes movimentam parte significativa da economia planetária. As indústrias criativas crescem para alimentar uma demanda inesgotável por estética, símbolos, lazer e entretenimento. Porém, os recursos gerados por este vasto mercado de consumo não suprem a diversidade e complexidade da cultura, comportando outras três fontes de financiamento, distintas e complementares:

- o Estado, que tem a responsabilidade de fomentar a criação e a fruição artística e intelectual, bases do progresso humano - o investimento social privado, evolução histórica do mecenato, pelo qual cidadãos e instituições privadas tornam-se agentes do desenvolvimento da sociedade - o patrocínio, estratégia empresarial para tornar as marcas mais próximas e envolventes, com maior afetividade, credibilidade, relevância e reputação junto a seus públicos de interesse.

No Brasil, o sistema de financiamento público às artes baseado em dedução fiscal emaranhou estas fontes, subvertendo suas lógicas, pervertendo
seus agentes e, de quebra, confundindo a opinião pública. No mês de março, profissionais de teatro foram a Brasília apoiar uma legislação que também canaliza recursos para a área por dedução fiscal, um modelo econômica e socialmente insustentável. Vamos imaginar que os médicos reivindiquem poder investir, por critérios próprios, um naco do imposto na saúde pública; os educadores, para manter abertas escolas públicas; as empresas de transporte, para criar estradas exclusivas; e -por que não? -, cada cidadão reter outro tanto do imposto para montar seu
próprio esquema de segurança. Bastaria um punhado de categorias adotar esta
lógica para não haver mais imposto a recolher. Por conseqüência, poderíamos
suprimir o Estado e dispensar os governos.

Tomar posse de dinheiro público para destiná-lo por critérios individuais e privados é um ato anti-republicano. Desinformados e iludidos pela justa perspectiva de injetar recursos no seu campo de atividade, muitos artistas e produtores ajudam a propagar o câncer do incentivo fiscal, em vez de lutar por políticas e fundos de financiamento direto do Estado, regidos por critérios técnicos e públicos.

Esse modelo de dedução fiscal à cultura, único no mundo, foi criado pela Lei Sarney, em 1986 - substituída pela Lei Rouanet por Collor, em 1991-, ampliado com a Lei do Audiovisual por Itamar, em 1993, e replicado por municípios e Estados via dedução no ISS, IPTU e ICMS. Fomentadas por ignorância, no governo FHC, e mantidas por incompetência, no governo Lula, as leis de incentivo mobilizarão, neste ano, mais de R$ 1 bilhão. Recursos integralmente públicos que financiam somente a parcela da produção artística que desperta o interesse das empresas.

A dedução fiscal gera produção cultural porque distribui dinheiro, não por ser lógica ou justa. É uma forma prática de obter recursos sem enfrentar disputas no orçamento público. Nada tem a ver com patrocínio ou investimento privado de verdade. Empresas promovem ações sociais, ambientais, culturais, esportivas, de entretenimento e comportamento como estratégia eficaz, saudável e rentável de valorizar marcas e fortalecer relacionamentos. Por isso, em todo mundo, investem seus próprios recursos institucionais, de marketing e comunicação.

Em outros países, incentivo fiscal é somente lançar as contribuições à cultura como despesa na declaração de renda. Ou seja, é poder doar dinheiro do próprio bolso sem ser sobretaxado por isso. No Brasil, a Lei do Audiovisual permite dedução integral no imposto a pagar e, ainda, o abatimento como despesa, reduzindo o imposto acima do valor aplicado. O resultado é um ganho real de mais de 130% ao "investidor", sem
risco. Espectadores-cidadãos não se dão conta que as marcas que aparecem na abertura dos filmes brasileiros são de empresas que ganham dinheiro público para fingir que são investidoras culturais e decidir que aquele filme, e não outro, deva ser produzido. Em vez de exigir o fim deste escândalo, setores do teatro reivindicam "equiparação de benefícios".
É certo que o Estado brasileiro consome 50% do PIB e pouco do que devolve tem valor reconhecido pela sociedade; é compreensível que os brasileiros desconfiem que os nossos governos sejam regidos pela corrupção. Mas não corrigiremos mazelas históricas subtraindo recursos e responsabilidade públicas para distribuí-las a interesses privados.
Melhor seria lutar para reduzir a carga tributária, para benefício da sociedade civil, e ajudar a construir um Estado mais eficaz, com capacidade de formular e implementar políticas públicas, financiando diretamente as ações por princípios republicanos.

YACOFF SARKOVAS, especialista em atitudes de marca e presidente da Significa
e da Articultura.

Comentários

Anônimo disse…
Certíssimo o Sr. Sarkovas, exceto quando deduz que de uma utópica responsabilidade do Estado em fomentar a cultura se estabelece a sua competência para fazê-lo. Ledo engano. O Estado brasileiro não é a república francesa nem a sueca. É o butim de um emaranhado de partidos sem lastro social consistente. Então, esse modelo, meio republicano utópico, meio stalinista, não tem como dar certo. Nós, arte-criadores e promotores culturais, temos que achar outro caminho, sustentável e legítimo.
JULIO CONTE disse…
Que bom saber que tem tempo para ler este humilde blog de um solitário pensador.
Um grande abraço
disse…
Concordo com Sarcovas, em parte, acredito que o ideal seria um caminho auto-sustentável para a arte e a cultura. Mas, enquanto isso não acontece, antes do sistema de financiamento público se tornar insustentável, existem muitos recursos para serem captados e muita comunidades distantes dos grandes centros para serem beneficiadas, se pensarmos na necessidade latente de investir não somente na produção cultural, mas, principalmente, na distribuição equitativa dos bens culturais.
A visão de que as empresas investem os recursos fiscais somente com objetivos de valorizar a marca e manterem-se competitivas no mercado, é unilateral. Posturas como estas, características de grandes empresas é que se tornarão insustentáveis em curto espaço de tempo. Chega da prepotência de quem trata cultura com uma visão filantrópica. Existem interesses de ambos os lados que devem ser respeitados. E assim, todos ganham.
Caro Sr. Sarkovas. Eu sou testemunha de que, nos anos 80 o senhor já nos informava sobre esse descaminho da lei de incentivo a cultura (até então só existia a Lei Sarney...7.505 se não me falha a memória).

Participei de algumas palestras ministradas pelo senhor e, por uma ironia de destino, fui depoente para a organização da nova lei (Rouanet 8.313) representando do setor privado (na época eu havia trabalhado na criação da Fundação Belgo-Mineira que é mantida por recursos de dividendos de ações do grupo empresarial, hoje Acelor). Fui voto vencido quando veio a proposta em se permitir a figura do "agente cultural" que eu chamei de "corretor".
Minha argumentação pauto-se naquilo que eu havia assimilado de suas palestras onde não se faz marketing com cultura, não existe "mercado de artes" e sim associação de marcas e o verdadeiro sentido pessoas e empresas representando os mecenas que acreditam na evolução de um povo pelos seus aspectos civilizadores, a exemplo das artes.
Deu no que deu: criou-se uma nova profissão: "agentes culturais"....institutos e fundações se alimentando do imposto de renda gerado pelo seu próprio grupo empresarial.
O dinheiro publico alimentando a figura da "recompra" e propiciando um "mercado" de milhões que até navegadores patrocinaram a construção de seus "barquinhos" o Circo de Soleil e muita gente famosa com "pequeninos cachês" de até 500 mil reais...tudo com o apoio do "clientelismo federal do Ministério da Cultura.... vi até filho de gente ligado ao palácio do planalto "virando músico" com verba da Eletrobrás....
Tristes Trópicos como diria Claude Levi-Straus....eu sou a favor de que sejam extintas todas os incentivos fiscais a começar pela lei federal de incentivo a cultura que só tem gerado distorções! Daniel D'Olivier www.musyoga.com.br

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