A SENHA - BLOG ROMANCE

Capítulo 5

Entrei no elevador. Estava tendo uma folga extra no horário e resolvera almoçar com meus pais. Fiquei pensando na arquitetura da pantográfica, há mais de meio século abrindo e fechando e ainda assim se podia ver o brilho do metal articulado. O prédio de meus pais tinha ares de preciosa decadência, mas ainda guardava o sabor art nouveou nas pequenas belezas. Borda de espelhos trabalhada, detalhes de madeira esculpidos e uma decoração com óleos antigos. Não que fossem obras de arte, mas eram representativos de uma época. O que salvava era que apesar de antigo, o prédio mantinha o cheiro de um edifício novo que contrastava com toda população de antigos morados na casa dos setenta, outros com oitenta anos, beirando os noventa que eram na verdade pouco, e, é claro, o mais velho, o mais antigo, meu centenário pai que reinava no oitavo andar. Todos aqueles homens e mulheres representavam uma riqueza histórica se traduziam num passado de feitos na política, na medicina e no direito e outras atividades nobres, mas que hoje, à força do tempo, se moviam em cadeiras de roda que desciam e subiam com ajudantes, enfermeiros e acompanhantes que se dispunham a carregar aqueles poucos pró homens remanescentes ao desgaste do mecanismo humano, mas também remanesciam mulheres, muito mais numerosas, mais saudáveis, que saiam em passeios coletivos quando o cruel tempo da cidade permitia. O fato de mais mulheres sobreviveram no Edifício suscitava várias teses como a de que mulher era um ser que sofria muito e morria pouco, quanto que homens morrem mais cedo devido ao stress de um mundo competitivo, mas nenhuma das teses chegara a comprovação científica e então restava apenas a observação de que era assim mesmo, mulheres viviam, homens morriam. O meu pai era a exceção, embora como já se sabe, o corpo resiste mais do que a mente e a falta de memória fazia da vida um iniciar compulsivo.
Estava pensando nisso quando entrou minha irmã no elevador. Eu fiquei em silêncio. Não nos falávamos há vários anos. Desde que quando papai ainda portador das capacidades de sua memória, ainda desfechava críticas ao seu gerente do banco, jurando que estava sendo roubado, queria tirar o dinheiro do banco, comprar dólar, investir na bolsa, qualquer coisa menos que o maldito gerente do banco não roubasse todas as economias acumuladas em seus anos de produtividade. E não foram poucos. Papai trabalhou desde os doze anos e só parou perto dos noventa, porque não conseguiu renovar a carteira de motorista. Umas letrinhas minúsculas não podiam impedi-lo de dirigir, afinal, quem lê enquanto dirige? Este argumento foi repetido até a exaustão e era piada familiar há dez anos, assim como um repertório de idéias persecutórias que é característico da idade quando os objetos teimam em fugir das mãos, copos teimam em cair, tapetes insistem em passar rasteiras, a comida foge da boca suicidando-se sobre camisas novas e recém passadas, do mesmo modo que se constata que não se faz mais cadarços com antigamente pois hoje em dia tornou-se impossível de amarrá-los. Todo este tipo de argumentação que sempre existiu na mente de meu pai se exacerbou nos últimos anos e veio a tona uma mente paranóica que de certa maneira atingiu toda a nossa família. Foram contratados advogados e um contador para verificar onde fora parar o dinheiro que meu pai alegara ter sumido. Em que pese todo esforço jurídico, nada foi constatado. Por isso, quando minha irmã entrou no elevador, balançando a chave de um Audi zero, e junto com as chaves, imaginei, a chave de sua recente cobertura, nem quis olhar o caro casaco de grife, pensei que os advogados e o contador teria recebido alguma espécie de agrado para que fizessem um relatório imparcial. Todo esforço seria abreviado se alguém tivesse a idéia, um tanto simplória, de perguntar que quem podia mexer na conta, quem tinha a senha.
O elevador subiu os oito andares numa lentidão torturante. Nenhuma palavra. Ela ainda olhou para mim e ameaçou sorrir, mas recuou frente a minha indiferença. Imaginei se teria alguma forma de superar tal fato, de um dia reunir a família para um churrasco dominical com aqueles protagonizado pelo pai, quando ele cortava e escolhia a carne, separando a gordura e privilegiando os ossos perto da carne, que conferiam um sabor acentuado de seu excelente assado. Mas a carne andava mais dura nos dias de hoje. Ela fingiu procurar a alguma coisa na bolsa. Remexeu um talão de cheques e uma multiplicidade de cartões, lencinhos de papeis, e uma pasta com documentos. De fato, eu estava no dia errado. Não era meu costume aparecer na terça. Meus intervalos profissionais eram nas quintas e sextas e nestes dias eu freqüentava a casa. O imprevisto profissional me colocara frente ao constrangimento. Quando o elevador chegou no oitavo andar. Eu fiz a cena que tinha esquecido meu celular no carro, que era um iPhone e não podia ficar exposto. Desci, entrei no carro fui almoçar no Barranco.

Comentários

Postagens mais visitadas