MAMÃE FEZ NOVENTA ANOS

Quando minha mãe fez noventa anos, papai já tinha noventa e três. E foi justamente no aniversário dela, quando movida pela curiosidade e pelo ciúmes das noites clandestinas em que papai sumia em viagens inesperadas. De quando vagava sonâmbula pela casa a esfregar o fogão, remover manchas, arear as panelas e a passar um insistente pano no chão da cozinha a espera do amanhecer de longas madrugadas de solidão. Foram noites de pensamentos sufocados pela alegria matinal, pela chegada festiva de papai, pelos presentes e pelos relatos das viagens e aventuras. Enquanto julgávamos, nós, os filhos, que tratava-se de viagens mágicas por países desconhecidos, mamãe ruminava o ciúmes que nunca confessara. Por isso, foi uma surpresa quando mamãe, no dia do seu aniversário de noventa anos convidou papai para jantar fora. Dispensava assim toda possibilidade de festa de família, de reunião de filhos e neto e bisnetos. Seria um jantar a dois. Ela tecia silenciosa seu plano enquanto papai dirigia o carro com sua carteira vencida há vários anos e estacionaram frente a um restaurante japonês. Papai sempre foi audacioso nas opções de comidas. Carnes cruas, animais exóticos, animais de caça e de viveiro, rãs, até mesmo cobras e escorpiões já fizeram parte de sua dieta. Sempre em busca de novidades e ampliação do universo alimentar e esticando o que podia em direção a novos paladares. Mamãe ao contrário era adepta da comida caseira, feijão e arroz todos os dias. Ovos, massas e temperos convencionais. Talvez por isso, a comida japonesa hoje tão difundida na cultura ocidental era para mamãe uma travessia ousada por mares nunca dantes navegados com seus sushis e sashimis e molhos de soja. Ela se fartou comendo salmão ao vasabi usando desajeitados hashis. Ou comer de pauzinho como ela ironicamente insistiu em chamar. Uma dose de sakê levantou os ânimos e criou a coragem que faltava.
- Quero ir para um motel, ela falou ao entrar no carro.
Papai, surpreso olhou o relógio. Precisou que mamãe lhe lembrasse que estava aposentado e pediu que ele a levasse para um motel. Um motel qualquer, não muito barato, mas também não precisava ser caro demais que, como boa gringa, não conseguiria saborear a novidade. Tinha bem claro que nunca teve oportunidade de freqüentar um e que aos noventa seria sua experiência derradeira. Sabia da existência de motéis com suas opções e estilos pelos filhos, pelas filhas e pelos netos que encontravam nela uma confidente discreta e silenciosa. Papai ainda tentou dizer que não conhecia nenhum, mas mamãe com um simples balanço de cabeça para o lado deu a entender que sempre soubera de tudo. Que depois de uma vida partilhada não havia mais espaço para mentiras. Não restou opção senão dirigir o carro para a zona sul. Papai escolheu o Motel Vison porque não era tão bom, mas compensava por ser relativamente perto. O porteiro ainda olhou para mamãe para verificar se era menor de idade e teve que conter a surpresa. Papai passou na portaria e apanhou a chave da Suite Majestic, a maior e mais cara.
A porta se abriu e mamãe teve uma visão de um paraíso. Luzes discretas criavam um clima intimo. No centro da suíte, pode ver pela primeira vez a cama de água redonda com iluminação indireta. Ao lado uma piscina translucida, azulada como se estivesse no mar. A sauna com bancos de madeira e o banheiro duplo ao lado da hidromassagem. Papai colocou uma música. E tentou ligar a TV ao que mamãe não suportou a grosseria dos filmes pornô. Ela tomou um banho de chuveiro, demorado, e a seguir nadou na piscina. Duas braçadas. Caminhou molhada até a cama de águas e os dois deitaram-se na cama redonda e mirando-se no espelho do teto. Viraram-se um para o outro e com um abraço procuraram romper a barreira da fraternidade que os unia, desde sempre e com os anos cada vez mais. Demoram um tempo para romper aquele afeto e mergulhar na carne de um corpo sexual quase adormecido. Encontram-se num beijo longo onde as línguas brincaram entre si atiçando o corpo no veneno do desejo. Então, transaram com carinho. Um tempo curto, mas o suficiente para que mamãe lembrasse que tinha um corpo e não tão longo que sobrecarregasse o combalido coração de papai. A cumplicidade de um amor maduro. Afastaram-se um instante, deitados, olhando para o espelho. Uma imagem que não seria capa de nenhuma revista, mas por um momento, refletia a paixão de dois corpos que não aceitavam o envelhecimento. Súbito, mamãe mais leve e desenvolta, desfilou pelo quarto com uma nudez simples. Apanhou uma tolha, enrolou-a na cintura foi até a sauna. Deixou seu seios a mostra em despudor. O que surpreendeu papai, que rápido, vestiu as cuecas e sentou no sofá. Ela pediu espumante e papai a serviu. Beberam e ela dançou sutilmente enquanto secava o cabelo. Papai de longe, olhar enviesado, observava uma mulher que nunca conhecera. Então ela olhou para o relógio e disse que já estava na hora. Que a família já devia ter cansada de esperar pela festa surpresa planejada nos corredores e atrás das portas, mas que ela sabia, sempre soubera, se armava em casa. Ele ajudou a vestir a saia e ajoelhou na hora de colocar o sapato de mamãe. Caminharam para a porta. Antes de sair mamãe olhou para o primeiro quarto do motel de toda a sua vida. Respirou fundo, deu sorriso e falou:
- Coitada da funcionária, deve ser um trabalhão limpar isso aqui toda hora!

Comentários

Postagens mais visitadas