OS MISTÉRIOS DE TIA NAIR E O PALHAÇO PIMPÃO

Tia Nair, irmã mais velha de mamãe nunca teve um marido, mas manteve uma fiel aliança que durou desde o momento de seu nascimento, no Brasil, final do século 19, até sua morte com noventa e nove anos, no ocaso do século XX. Tia Nair foi, é e sempre será casada com Deus. Amor e dedicação desenvolvidos nos anos de estudos no colégio das freiras, anos marcado por castigos vespertinos como se ajoelhar durante horas sobre grãos de milho cru antes da missa das seis e rezas continuas do terço em intermináveis novenas dedicadas ao venerado Santo Antonio, padroeiro do vilarejo, mas que, por descuido, excesso de tarefas ou distração, esqueceu de olhar para Tia Nair. De nada adiantaram as promessas, santos pendurados de cabeça para baixo, nem facas cravadas nas bananeiras. Inútil esforço do desejo, pois ela permaneceu ao longo de sua centenária existência e até mesmo depois dela, virgem. Pelo menos se dizia na família, embora, era saber corrente, que tivera um grande amor pelo artista de circo bastante conhecido nas redondezas daquele pequeno mundo mágico da infância chamado Pimpão. Era de fato, o palhaço do circo Alvorada que passara por Forqueta, aquele remoto lugarejo na serra gaúcha, de onde se originara minha família. Bisavós ali chegaram e logo se estabeleceram depois da longa viagem de navio desde o norte da Itália para a América descendo no Porto de Rio Grande e avançando por Montenegro até o pé da serra. Do navio cheio de peste e morte desembarcara um jovem casal com um bebê de quatro meses, que veio a ser minha avó. A escolha de Forqueta era resultado mais da cegueira da virtude os íngremes morros da forqueta para cultivar em suas encostas a videira do que o brilho da razão de uma decisão pensada. Era estafa, cansaço e fastio. Porém o vinho produzido ali jorrou como petróleo vivo, trouxe riqueza e alegria para ao fim embebedar metade da minha família, se contarmos obviamente que Tia Nair era a outra metade. Metade essa que frequentava a igreja, a sacristia, levava a capelinha de casa em casa e vestia-se de Jesus na sextafeira da Paixão a desfilar pelas ruas de terra batida e arrastar uma pesada cruz de eucalipto. Nunca uma gota de alcool passou perto da boca da Tia Nair e o mais parecido com vinho que suas papilas gustativas tiveram a chance de experimentar foi o vinho doce, produto prematuro da fermentação da uva, cujo paladar lembrava um suco mas com o saboroso charme das borbulhas. Era quase um espumante, se na época existesse esta palavra. Tia Nair, na infância, se deslocava entre o colégio onde era paparicada pelas freiras para que seguisse a carreira religiosa e a sacristia com intermináveis aulas de catecismo. Por isso, quando o Circo Alvorada esticou sua lona na baixada ao lado do campo do União Forquetense era certo que a última pessoa que se imaginaria colocar ali seus pés era a Tia Nair. Mas a vida e tão cheia de surpresas. Na primeira sessão do circo, que contava com uma audiência considerada grande para a população de Forqueta, cerca de vinte espectadores, Tia Nair, com seus doze anos incompletos estava na primeira fila. E foi assim durante as duas semanas que se seguiram. O interesse central era mágica aparição do palhaço Pimpão que no picadeiro, já no primeiro dia, despertou alguma coisa em Tia Nair. Uma espécie de sentimento que nunca experimentara, mas que só podia ser coisa da tentação tomou conta de Tia Nair. Não se sabe se o cabelo encaracolado, ou as tiradas rápidas, ou os tombos, ou mesmo o grande bastão cenográfico com o qual Pimpão distribuía pauladas, ou algo da ordem do imponderável sustentou uma fascinação que ninguém percebeu. O fato e que duas semanas depois de encerrada a fracassada temporada do Circo Alvorada em Forqueta, ela embarcou no caminhão e ganhou o mundo abraçada no palhaço Pimpão.
Jurava-se que nunca mais a veriam, mas exatamente dezoito dias e poucas horas depois, ela, cansada, num vestido simples e sem chinelos, desembarcou do ônibus de linha que partira de uma cidade da fronteira, passara por Farroupilha e seguia para Caxias do Sul. A escala em Forqueta deixou Tia Nair parada na frente do Armazém, em estado de choque até que alguém lhe tomou a mão e a levou para casa. Sempre num silêncio pesado e enigmático. Era então uma mulher, ou outra mulher. Parecia ter que tinha mais de vinte e cinco anos e não os doze que marcavam nas sua certidão de nascimento. Para protege-la do falatório peculiar a vila, seus pais a internaram no colégio das freiras de onde saiu meses depois, uma mulher séria, vestida de preto, amarga e carola. Apesar disso não aceitou e as insistentes propostas e não aderiu a vida religiosa. Não oficialmente pois, como já mencionei, ela casou definitivamente com Deus e este pacto era para sempre. Corria a boca pequena várias hipóteses. Desde que o palhaço não era bom de cama e que isso provocara uma imensa decepção em Tia Nair, passando pelo inverso, que era um monstro na cama e isso apavorara Tia Nair, até que ele era o demo vestido colorido e a boca vermelha era a prova disso. Os mais sensatos sustentavam que ela não suportara a vida conjugal pressionada pela imaturidade de seu próprio corpo de menina. Outros ainda juram que ela teve uma iluminação mística, como as crianças em Fátima e que teria deixado em cartas para o futuro os novos segredos do palhaço Pimpão a ser revelado cinquenta anos após a morte de todos. Mas os meninos da minha idade se perguntavam qual era a graça de saber uma fofoca quando todos já houvessem morrido? Riríamos de quem? E assim, envolta em silenciosos segredos Tia Naira mergulhou no isolamento da vida religiosa. Eram apenas versões das infinitas possibilidades que a vida nos oferece. Sabe-se, por notícias do Correio do Povo, que o palhaço Pimpão teve uma longa carreira artística pelos palco do interior gaucho e que nestas aventuras teria diversos filhos cujos descendentes se encontra o renomado ator de stand up, Eduardo Mendonça cujos cabelos encaracolados e o apelido teria herdado do célebre Pimpão.
O certo e que Tia Nair com incrível trajetória se tornou uma beata vestida de preto e rezando sem parar.
Alguns dias antes de morrer ainda tentei extrair seus segredos, as verdadeiras histórias de Tia Nair, mas ela se fechou. Frustrado, insisti e ela respondeu me convidando para rezar. Como eu sustentava com fé meu paganismo e minha descrença ela parou de falar. Foi então que uma ideia sádica, um espírito de pouca luz, talvez a sombra do finado Pimpão, pousou na minha mente como um corvo noturno e perguntei como ela se sentiria se depois de uma vida de virtudes e renuncias, depois de toda dedicação a Deus, depois de todas as novenas e rezas, ela que se poupou dos prazeres da vida mundana, evitou o sexo, nunca abusou do alcool, até mesmo da dança e da música, essas duas de forma inexplicável, se ela, após a morte descobrisse que Deus não existisse, que fosse apenas uma criação humana, uma bela ideia que não deu certo?
Ela ponderou uns instantes, respirou fundo e com um olhar complacente e gentil disse:
- Se Deus não existir, eu vou me sentir muito frustrada. Mas se ele existir, aí então tu estarás fudido!
Foi o único palavrão que disse em toda a sua vida. Tirando as duas semanas que esteve com o palhaço Pimpão, vivendo o paraíso ou o inferno. Coisa que nunca saberemos.

Comentários

Nei Duclós disse…
Mas que maravilha de história! Merece dez mil retuits. abs
Unknown disse…
Excelente! Adorei seu texto!
Palhaços, Deuses, Conventos, Tripes.... O que seria do palco da vida sem esses cenários e personagens!!!!

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