O TEATRO EM FORQUETA

Laudelino era contador e chegou em Forqueta recém saído do curso técnico de contabilidade. Com seus dezessete anos completos em abril daquele ano, 1936, vislumbrava o século como um porvir repleto de esperanças. Contratado para trabalhar na Cooperativa Vinícola, primeira do gênero na América do Sul, trouxe em sua bagagem além de um suntuoso terno branco de linho, um chapéu panamá e sapatos de duas cores, uma grande dose de confiança. Moço bonito, rapaz elegante com seus cabelos ondulados sempre rigorosamente comprimidos sob a pressão de grossas camadas de Glostora, sua virtude era uma boca sempre despejando palavras divertidas e galanteadoras. Desde cedo despertara para o poder da oratória com exercícios e leituras de Cícero que conhecera através do Frei Lino, helenista perdido no interior da serra gaúcha, incansável na revelação do conhecimento grego que aprendera em longas madrugadas no colégio dos padres. Ombros largos completavam um dorso bem construído. As mãos, resultando dos exercícios diários, eram como batutas que desenham imagens desenvoltas no ar, uma espécie de dança misteriosa cujo objetivo era hipnotizar, subjugando o olhar a um encanto além das palavras. A musicalidade dos gestos se devia a estudos de violino com uma jovem concertista, virtuosa em todos os sentidos, que passara por Coronel Pilar oferecendo lições, dando aulas e distribuindo acordes e partindo corações. Laudelino quando aprendiz musical ainda morava com seus pais e já demonstrava seus pendores artísticos, sofisticação estética, afinação e um apurado ouvido musical que o acompanhou até seus últimos dias de vida e que impressionara a concertista. Quando ela foi embora, ganhando o mundo, deixando no ar da única rua de Coronel Pilar uma nuvem de poeira, desejo e ambição. Logo após a formatura, o convite e a mudança. Laudelino era considerado, desde o primeiro instante em que desceu do ônibus vindo de Coronel Pilar, como um bom partido, mas com uma pequena ressalva. As largas calças escondiam um salto no sapato do pé esquerdo que revelava um perna mais curta do que a outra. Era o que na época se dizia, um “descontado”. Se falava nos corredores que tinha tantas virtudes que era uma lástima condensar todas em um aleijado. A perna mais curta era resultado, não da poliomielite como se pensara. Tal doença caracterizava tal deformação semelhante, num tempo pretérito de precárias condições de higiene e quando a vacina Sabin avançavam pelo estado a passos lento como a se fossem transportadas ainda por carros de bois. Esta doença cujo lento processo construiu para uma geração de meninos depois homens com problemas para caminhar, atrofias, encefalite e flacidez e todo tipo de restrição que o poliovírus difundira não era a causa da deformação de Laudelino. Embora o resultado fosse semelhante os processos totalmente diversos. Fora, de fato, uma infecção adquirida numa queda quando ainda menino desceu os morros das serra em intrépidos carrinhos de lomba com rodas de madeira que rompiam a relva e, desviando dos formigueiros, chegava até a margem do riacho de sua primeira infância. Uma queda, uma lesão, o medo da mãe e a demora na ajuda impediram as atitudes profiláticas e a osteomielite tomara conta. Quando se viu estava com uma grave infeção na articulação do fêmur, cujo processo crônico produziu uma necrose destruindo o acetábulo e deslizando a ossatura até uma consolidação posterior cuja consequência foi a imobilidade articular e a atrofia da perna. A ideia de descontado no entanto nunca ganhou residência na mente de Laudelino. Mesmo quando seu pai, mulherengo e bruto, não queria que frequentasse a escola para não ser visto como o filho doente, e nos anos seguintes, o proibiria de dançar nos bailes, ou jogar futebol, ou participar do time de basquete ou mesmo cantar com sua voz de barítono no coral da igreja, recomendações e proibições que Laudelino fez questão de desacatar. Frente a tudo isso, Laudelino em sua fé cega no futuro, quase uma certeza alucinada, nunca se deixou abater e nunca cedeu a tentação da auto piedade. Seu contraveneno era o enfrentamento. Para isso sempre contou com o delicado estímulo materno, Veneranda, mulher da vigor, visão e determinação, que por estas e por outras ocupou espaço central em sua vida, venerada do começo ao fim, mais especialmente em seus últimos anos quando a realidade e a fantasia andavam de mãos dadas na direção da morte construindo uma ponte mágica desta para a outra vida. Por isso, quando aquele audacioso contador chegado a Forqueta foi recebido de braços aberto e abriu seu coração pelo município. Determinado e carismático, Laudelino entrou na sociedade forquetense pela porta da frente, logo foi convidado, e se convidando, para todos os eventos sociais. Não se fazia de rogado. Ocupou ao longo dos anos que se seguiram todos os cargos sociais importante chegando no final dos anos 50 ao cargo de Prefeito. Nos bailes abria e fechava o circuito das danças e era admirado pela resistência. Sua audácia e superação eram de tal forma contundente que quase nem se percebia a tal deficiência. Foi nestes bailes, poucos meses depois de sua chegada, que conhecera Virgínia, uma moça alta, de pernas longa e desengonçadas, quadril estreito cujo conjunto da obra determinou o apelido de “saracura”. A resistência da mãe de Virginia foi grande. Uma quantidade imensa de argumentações, desde estrangeiro, o gosto pelo pôquer, o jeito de se vestir, a vaidade, passando pelo desconhecimento da família, até mesmo pelo salário inicial foi usado para convencer Virginia e impedir a relação dos dois. Claro que o fator implícito e essencial do defeito. nunca era revelado. Simplesmente não se aceitaria que casasse com um aleijado. Mas a dramaturgia da vida é escrita pelo acaso e no baile seguinte, os olhares se cruzaram e Laudelino imediatamente desistiu da quantidade e abrindo mão da fama de varrer o salão, para investir na qualidade, e se concentrou em Virginia, dançando miúdo no canto pouco iluminado da festa. Porém, parecia que nada evoluiria na história dos dois, pois além da restrição já conhecida da deficiência física, somava-se se o fato de Laudelino ser de Coronel Pilar, outro território, um estrangeiro. Tudo parecia perdido em novo rastro de poeira ganhando a estrada quando o vigário, no sétimo dia da semana, depois da missa das dez e antes do galeto com polenta, vinho e radite, teve a luminosa inspiração de aproveitar o espaço ocioso do salão paroquial para fazer uma peça de teatro. A comunidade andava carente de cultura e o teatro contribuiria para a iluminação geral da vila além, é claro, de enaltecer a Deus sobre todas as coisas e aumentar o grossa contribuição do dízimo. Para isso, escolhera um melodrama religioso, em cinco atos, chamado Flores Para Nossa Senhora. Fazia parte de um acervo doutrinário do catolicismo que reciclava personagens clássicos como o Quasimodo, Vitor Hugo ou Cyrano de Berjerac, de Edmond Rostand, mas acima de tudo a proposta incendiou Forqueta pois oferecia a oportunidade para que os rapazes conversassem com as moças sem a vigia canina das mães e pais. As vezes, o clero consegue ser tão completamente revolucionário quando apenas pretende um pálido lucro que faz as gente desconfiar da trama explicita das intenções e voltar nossa atenção para os hiatos que as silenciosas narrativas nos oferecem, os misteriosos personagens da alma se inscrevem sobre nós. E foi sob o signo da ambiguidade puritana que começaram os ensaios da peça de teatro em Forqueta sem levar em contato o poder do Dioniso com sua capacidade de subversão, despedaçamento e recriação. A convocação do vigário os interessados se apresentaram para a novidade. Última peça que passara por Forqueta fora um circo cuja dupla de comediantes veio a ser Pinginho e Walter Broda depois celebrizada em programa de rádio Na Banca Do Sapateiro. Assim, estimulados pela perspectiva artística, mas também pelo sabor do desejo, entraram no palco do salão paroquial numa tarde de sábado. O vigário distribuiu os papeis e funções. Laudelino, pelo pendor artístico, pela inciativa, desenvoltura e também físico, foi escolhido para viver o Carapicho acumulando a função de diretor e encenador, nos momentos em que o vigário sesteava por conta de repetidos copos de vinho com o nobre e óbvio objetivo de ajudar a digestão. Capitão nocauteado e os ratos tomavam conta do navio. Era a hora em que os ensaios se enchiam de libido, conversar picantes e intimidades reveladas. Parecia que, de repente, o formalismo do mundo, a sociedade de castas, dava lugar ao humano e ao desejo. Homens e mulheres conversando pela primeira vez, sem fiscalização, sem nada, todos ali, expostos as emoções, sonhos, projetos e outras descobertas do si mesmo. E em meio a este turbulento encontro de mentes e corpos, ainda sobrava tempo para ensaiar. A personagem central, Carapicho, cujo amor e paixão contrapunha ao status social, a virtude e o vício, essência do melodrama, contrastando o conflito de classes dentro de um meio aristocrático. Carapicho sofria por não ter dinheiro nem mesmo para comprar rosas para sua amada. E sem rosas nunca atrairia atenção da amada Sua única alternativa passa a ser roubar as flores da igreja. O conflito entre o vicio e a virtude se estabelece neste momento e Carapicho, depois de um longo monologo e cheio de culpa, termina por levar as flores da Nossa Senhora. Quando na porta, acossado pela culpa, escuta uma voz, a voz da própria virgem que diz:

- Leva estas flores, elas te pertencem, leva para tua amada. Elas tem mais sentido na tua vida do que morrendo aqui no altar.

Não se tem noticias do resultado da montagem que chegou até os dias de hoje recortada pela transmissão oral e consequentes distorções que o tempo, a memória e o desejo produzem. O que sabe é que neste grupo de teatro, nos anos trinta em Forqueta, seguindo a tradição dionisíaca legada pelos gregos, foi germe de muitos casamentos. Entre eles o de Laudelino, nome fictício daquele que veio a casar com Virginia e se tornou meu pai no ano de 1955, vinte sete anos antes de Bailei na Curva. E trinta e cinco anos antes de nascer Catharina Cecato Conte, que se divide, e múltipla, sua vida entre o teatro e o cinema.

Comentários

Unknown disse…
Bela lembrança e memória dos nossos bons tempos de criança... E após a Banca do Sapateiro (Entra prréguinho descrassado!...), na Radio Farroupilha, vinha a Pausa que Refresca, "num oferecimento de Coca-Cola, o refrigerante que refresca o seu almoço" (ou algo assim). A assinatura (fundo) musical era Holiday for Strings com Strings Unlimited (?...). Após uns cinco minutos se ouvindo uma linda música orquestrada, às 13 horas era anunciado o "seu Reporter Esso" com as últimas e mais importantes notícias do Brasil e do mundo... Éramos felizes e não sabíamos...

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