Diagnóstico
ASMA
Bia, brincava de circo em cima do muro,
braços abertos mantinha o suspense em cada passo.Um tarol imaginário repicava
mantendo o clima. Jorge observava curioso. Pergunta pelo Juanin e ela explica
para ele que Juanin era uma forma diminutiva de Giovani.
- Sobe
também - ela desafiou.
Ele
escalou o muro e seguiu com passos trêmulos e oscilantes. A prima alcançou o
portão e pulou. Do chão continou falando do parentesco que os unia. O menino
tomado de medo estancou, se equilibrava olhando a sua sombra que crescia
conforme o horário do sol. Abriu os braços deixando que se alongassem como o
homem de borracha, a cabeça ovalda e um tronco cambaleante sobre a terra
batida, regada de cascalho fino e recém posto. A menina procurou o olhar de
Jorge. Deu um passo e deixou a sombra do primo pousar sobre seu corpo. Sorriu
com malícia. As sombras pararam o jogo de se sobreporem quando Vô Joanuin
apareceu na esquina.
Ainda era
um homem forte apesar da idade e dos anos de trabalho intenso. Para onde ia e
em qualquer situação exibia um sorriso doce e sua era voz suave. Usava um par
de óculos de aro de tartaruga, redondos, caminhava com os pés para dentro, o
que lhe comferia uma andar trôpego que lhe obrigava a se apoiava numa bengala
de jacarandá. Avistou as crianças e concedeu um discreto aceno como se pedisse
paciência para uma rápida entrada no bar. Logo se ouviu uma sonora gargalhada,
retrucos de uma provocação amistosa e depois de novo os passos miúdos descendo
a rua, arrastando os pés sobre o cascalho. Ele seguia cumprimentando a
vizinhança, tirando o chapéu de feltro puído e enfiando o polegar dentro do
cinturão grosso sobre a calça, um gesto característico, que será imitado anos
depois por Jorge. Acendia um Hudson sem filtro e suas baforavas tingiam de azul
seu rastro. Bia e Jorge entravam em casa agarrados no Avô. Exigiam histórias,
músicas, provocações e piadas. Ajudavam o velho a tirar as botinas. Ele apoiava
um pé sobre um banquinho e permitia que sua perna fosse cavalgada ora por
Jorge, ora por Bia, até que com a outra empurrava as crianças que saltavam
longe agarrados na botina. Aí contava histórias enquanto os netos disputavam
quem teria o privilégio de pendurar a bengala no chapeleiro.
Quando
moço, teve uma loja de comércio e a todos dava crédito. Vó Martina, mulher
altiva, temperamento oposto, era quem
tinha que cobrar, aos gritos, os devedores. Estes buscavam Joanin pois
sabiam que ali era certo encontrar compreensão e prazos prorrogados. Na
revolução de vinte e três ele fez um papél ridículo quando teve que se esconder
no sotão para não lutar. Vö Martina deu provas de firmeza, abrindo a porta para
os revolucionários, lhes dando comida e bebida, e, por fim expulsando os
recrutadores com um facão quando o vinho começou a aguçar o desejo e estimular a
audácia. Vovô espiou tudo isso por uma fenda no teto e adormeceu sobre as sacas
de arroz.
Pouco
depois da passagem do trem, tarde da noite, meu pai chega de viagem, senta a
mesa, come, fala de política e vai para o quarto. Mamãe entra logo após e tranca
a porta. No meu quarto brinco com um album de figurinhas. Ouço uma respiração
ofegante, ritmada. Rolo na cama, espio o corredor. A empregada entra no
banheiro. Escuto o barulho do xixi, começo a cantar. A empregada aparece na
porta e faz um sinal com o indicador apoiado transverso sobre os lábios.
Sussurra uma ordem para que eu durma. Escorrego para os pés da cama, cubro o
corpo e a cabeça. O cobertor toca meu rosto, o lençol sobe e desce com um
sopro. O ar esquenta. Espero mais. Sopro com mais força. Sinto um calor úmido,
viciado, sufocante. Aguento mais um pouco. Começo a suar. As pernas se esticam,
os músculos se contraem. Um fiapo de lã desgruda do cobertor e se aloja na
minha narina. Posso retirá‑lo mas não o faço. Deixo a lã se alongar quando eu
expiro, para logo sumir narina adentro na inspiração. Faz cócegas, meu corpo
treme, o suor dá sinal em pequenos pontos luminosos sobre o dorso da mão. A lã
desaparece dentro do nariz e não volta. Meu corpo explode em silêncio. Um
espasmo e a mão direita involuntária joga as cobertas contra a parede e meus
dedos procuram o fiapo de lã. Minha mãe sai do quarto em direção ao banheiro.
Alcanço o fio de lã e consigo arrancá‑la. Uma gota de sangue vem junto. Xingo o
quadro do inútil anjo da guarda pendurado ao lado da cama, dou socos no
travesseiro, mijo na cama. A voz sonolenta de papai pergunta o que está
havendo. A mãe volta do banheiro ainda se secando enquanto o pai de cuecas me
dá um tapa. Durmo tranquilo.
O derrame
atingiu o Vô Juanin durante uma tarde de sol, depois do café e antes do jogo de
cartas com os amigos. Sentado em sua cadeira de balanço fumava com longas
tragadas. O olhar distraído sobre a figueira do pátio. Bia deslizava no balanço
e Jorge esperava a sua vez. Tio Antônio aguardava o Vô Juanin na porta da
frente para o jogo de cartas. O Avô falou alguma coisa mas nunca se soube o
quê. Essa última palavra foi motor de um extensa investigação que incluia
perguntas, suposições, premonições e um interrogatório exaustivo sobre Jorge e
Bia como se o sentido da vida tivesse sido oferecido aos homens mas ninguém
ouviu. O fato é que após o sussuro, ele contorceu o corpo todo primeiro, depois
o braço e perna direita se retesaram jogando o cigarro longe. Vó Martina correu
desajeitada falando palavras incompreesíveis. Tio Antônio correu para um lado e
outro sem fazer nada, o cachorro latiu, um copo se quebrou, os vizinhos
cercaram o velho. Bia chorou. Jorge parou de empurrá‑la.
Meses
depois, no quarto fechado, a respiração ofegante do Vô Juanin marcava o tempo
como o pêndulo de um relógio. Os primos brincando no corredor, aguardavam a
entrada de Vó Martina. O olhar curioso buscava a cama. O rosto redondo de Vô
Juanin ia definhando. Sem óculos, boca entreaberta buscava Deus pela boca,
abrigando uma ruidosa respiração. O olhar perdi-ase atravessando o teto em
direção ao infinito. A Avó carregava a bacia cheia de sangue, catarro e fezes.
Depois da porta fechada ainda sobrava um cheiro de podre.
Corro pelo
pátio, subo na árvore. Bia vem atrás. Aproveitamos a hora de sesta e roubamos
as bicicletas dos irmãos mais velhos. Pedalamos até a fábrica de garrafões, nos
fundos da casa dos avós. Ali se abrigava montanhas de vime. No nosso refúgio
Bia me conta que a mãe lhe proibiu de andar com a bicicleta de meninos, por causa
do ferro transversal que poderia quebrar um ossinho. Curioso apalpo entre entre
minha pernas. Ela complementa que só as meninas tem o tal ossinho. Coloco a
minha mão no seu ventre e ela pára de respirar. Um filhote de pomba pulsa na
palma de minha mão. Encosto meu corpo no dela. O trem apita na estação.
- Não
podemos mais brincar juntos – ela olha fundo em mim. Não digo uma palavra,
minha mão escorrega para o nada e deixo o olhar repousar desatento sobre os
colonos descascando vimes.
Chego em
casa na hora da ave‑maria. Ligo rádio e percebo que mamãe chora. Ela desliga e
carinhosa coloca as mãos nos meus cabelos. Lágrimas correm por seus olhos.
Ela me toma nos braços e conta que seu
pai morreu. Soluça. Conta que gostaria
que eu me chamasse Giovani. Seu hálito toca minha face enquanto penso em quem
vai marcar o tempo agora que Vô Juanim morreu.
Depois da
passagem do trem, tarde da noite, Jorge passa mal, respiração ofegante,
ritmada. A boca aberta suplicar pelo ar. O médico, chamado as presas, diagnostica:
asma brônquica.
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