O DIA QUE ME TORNEI BRASILEIRO


No 20 de setembro acontece toda sorte de manifestação sobre os gaúchos. No entanto, nunca me foi familiar estas comemorações. Tenho uma foto comemorativa de um 20 de setembro pilchado e tomando mate por condução e obra da minha filha como vocês podem ver ali em cima. Isso só aconteceu porque ela estava as tradições gaúchas no colégio. Não era coisa de casa. E eu agradeço ao colégio, porque,por exemplo, a minha primeira bombacha só foi adquirida depois dos 18 anos. Admiro quem defende com veemência a alteridade, o orgulho e a história do Rio Grande do Sul. Concordo que é linda. Emociona o Hino Riograndense principalmente quando é cantado nos estádios. Já fiz filme encarnando gaúchos e, numa produção italiana, interpretei Bento Gonçalves. No setting de filmagem senti na pele o que é andar de cavalo num Pampa aberto, trezentos e sessenta graus de horizonte, como um céu ao revés. Mas tem uma coisa dentro de mim que não harmoniza com todo este orgulho. Acho que por causa do colono que eu fui e que, não sei se algum dia deixarei de ser, me impede de ser mais gaúcho. Na minha casa de infância se falava dos italianos, que era os descentes como eu, e dos “brasiliani” que era o modo pejorativo de lidar com todos os outros. Acho que isso se estabeleceu na minha alma como um estigma. Estava pensando nisso quando me veio a mente o exato momento que me tornei brasileiro. Eu tinha quatorze para quinze na Copa de 70 e estávamos assistindo ao jogo final, Brasil contra a Itália. A televisão era em preto e branco e aquela foi a primeira Copa do Mundo transmitida ao vivo. Eu assistira a Copa de 62, ainda em Forqueta, em vídeo-tapes que chegavam dois a três dias depois dos jogos. Assistia obrigado é verdade, com o intuito de fazer sala ao Padre Vicente que se auto-convidava para assistir os jogos em nossa casa que tinha um dos quatro aparelhos de televisão de Forqueta. Pioneer era marca da TV. Mas em 1970 era outra coisa, era magia pura. A invenção do “Ao Vivo” assistir o que acontece no momento em que acontece. Parece banal para um cultura que tem este tipo de comunicação a rodo, mas na época era novidade. Até replay, o popular “repeteco” permitindo rever os lances era novidade. Brasil era outro. Não se sabia das torturas, nem da repressão, nem da censura. Então no meio do jogo, Brasil e Itália meu pai gritou:
- Italiano filho da puta.

Foi um silêncio na sala. Todos viramos para meu pai que acusou o golpe desferido pela própria boca, porque fixou o olhar na tela. E levei um susto. Nunca imaginei que ele pudesse falar uma coisa destas, renegar desta forma o sangue. Mas, logo a bola rolou e eu senti um alívio. Naquele instante a uma coisa se rachou dentro de mim. E paradoxalmente pude assumir a minha identidade. A partir dali virei brasileiro assumido, juramentado e convicto e sem culpas.

O sentimento de brasilidade se solidificou dois anos depois quando morei por seis meses nos Estados Unidos em San Jose na Califórnia. Não havia melhor lugar no mundo para morar do que a Califórnia dos anos 70. Foi ali que escutei sobre a tortura no Brasil, campeão mundial do futebol e da tortura é o título dos panfletos. Morava há quarenta minutos do fórum que julgava Ângela Davis. A bela pantera negra, ativista em luta contra o racismo. O fato de morar no exterior associado a frase de meu pai, selou e configurou o meu nascimento como brasileiro. Por isso, admiro a alteridade e a bela história, mas não tenho a menor vocação para não ser brasileiro, embora adore um chimarrão que aprendi a fazer e tomar tardiamente, aos vinte e dois anos.

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