ENCONTRO INUSITADO


Eu ia para a palestra do Eugenio Barba, era cedo, parei na Casa de Cultura Mario Quintana. Falei com uns amigos que estava por ali. Tomei uma taça de espumante e fui em direção do carro. Era final da tarde, sombras tênues se adensavam sobre os as pessoas. Fumaças e cheiros sobre uma multidão portoalegrense alvorotada pelo final do dia. E ali no meio de tudo e de todos enxerguei alguém que me pareceu ser o ator Leverdógil de Freitas. Tudo igual. O formato do corpo, denso e redondo, o pescoço mergulhado no tórax e um desleixo ao se mover. Ele caminhava de um modo habitual, rebolando a barriga e com um sorriso sarcástico que lhe era bem peculiar. Ele era assim enquanto estava vivo. Depois de um minuto de silêncio e estarrecimento, apoiado na realidade de que mortos não caminham entre os vivos, me aproximei do Lever – era como todos o chamavam - certo que quando ele se virasse eu teria que pedir desculpas, que pensara que fosse outra pessoa, que ele era muito amigo de uma pessoa saudosa e que assim eu sairia aliviado do encontro metafísico. Pois quando cutuquei no ombro quem se virou e olhou para mim e falou comigo era o próprio Leverdógil de Freitas, o ator. Premiado no teatro, no cinema, homenageado no Porto Alegre Em Cena, cujo currículo tem a apresentação de um monólogo para uma espectadora e ao final da peça, a convidou para jantar. Vocês podem não acreditar, achar que alucinei, achar que estou inventando, que estou imaginando coisas e talvez todas as hipóteses acima sejam verdadeiras. O fato é que quase infartei, quase cai para trás, quase dei um grito, quase pirei, embora sobre isso ainda seja cedo para ter uma opinião definitiva. O fato é que eu estava no meio da Rua da Praia, perto da Casa de Cultura e parado na minha frente estava o Lever uns dez anos depois de ele ter morrido! Fiquei pensando, porra, o que se diz numa hora destas. E perguntei então:
- Opa, como é que vai?
Ele me desceu o queixo que mergulhava no pescoço formando um bloco único, deitou levemente a cabeça em direção ao ombro formando um complacente sorriso de escárnio falou:
- O que tu acha?
Eu ri e lembrei todos as as vezes em que ele despejou sua ironia sobre o prosaico nosso de cada dia. O Lever por aqui, puxa, o mundo ficou melhor por um instante. Deve estar acontecendo alguma coisa especial em Porto Alegre para ele aparecer assim do nada. Não me contendo a curiosidade:
- O que tu está fazendo por aqui?
- Nada. Cansei da eterna pasmaceira e resolvi dar uma fugidinha. Porto Alegre na hora do entardecer faz os fantasmas passearem anônimos para usufruir o por do sol.
- Eu estou indo ver o Barba – falei quase que me desculpando.
- Que Barba? Ele riu e começou a caminhar em direção ao Rio Guaíba. E tem gente que chama de Lago. Completou o Lever.
- Oh, meu caminha mais devagar. E a tua asma?
- Sabe a bombinha? Não uso mais.
- E o teatro, perguntei meio sem saber o que falar.
- Nem me fale senão perco a vontade de passear por aqui.
- E como é lá?
- Júlio, - ele fez uma pausa e pude ficar lado a lado com Lever - tem coisas que só morrendo para saber.
E saiu feliz iluminado pela luz transversa do inverno que se aproxima e de passear na terra sem as conseqüências de estar vivo.

Comentários

.: Elisa :. disse…
E agora? Aconteceu mesmo? Ou é fruto da tua criatividade? Se aconteceu, eu acredito!
Drika disse…
Minha última lembrança do Lever foi dele querendo dançar no meu colo, quando eu fui na festa de final de ano da Casa de Cinema, em 97... de cadeira de rodas! Não era a cara dele?
Drika disse…
Desculpe, mas as lembranças acorreram primeiro... O texto está lindo, lúdico, poético,... Obrigada!
JULIO CONTE disse…
Drika, dançar em cima de uma cadeira de rodas é a cara do Lever, concordo totalmente.
E obrigado.

Elisa,que aconteceu, aconteceu. Onde, é a questão.
E obrigado.
Catharina Conte disse…
chorei. tenho boas lembranças do lever e a velha piada da moeda.
penny disse…
oremos, pois !

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