PAPAI FEZ CEM ANOS

Meu pai sempre disse que faria 100 anos. E eu assim como todos na minha família nunca duvidamos que isso acontenceria. A dúvida era que se nós, oito filhos, dezesseis netos, sete bisnetos ainda estariamos aqui. Papai lutou contra três infartos e sobreviveu. Sofreu de artrites que quase o imobilizaram, seu organismo foi cruelmente debilitado pela diabetes. Sem falar na hipertensao e no impiedoso câncer nos ossos. Passando por tudo isso ele chegou finalmente aos 100. E chegou lá desta forma, feliz, alegre, divertido. Alguém poderia dizer que era um maníaco tomado pela euforia ilusória. Mas como chegar a essa idade sem uma dose de distorção da realidade? Ele era assim totalmente brancaleone, falastrão e piadista. No dia da festa qundo terminamos os parabéns e começaram os hurras, ele não lembrava de nada. Não sabia mais quem ele era. Não sabia onde estava, não sabia seu nome, nem o nosso. Eramos olhos familiares tomados de espanto frente o olhar daquele homem assustado com o mundo que se descortinava frente aos seus 100 anos. Papai centenário começava a vida como um desconhecido habitando um corpo combalido pelo tempo e mais solitário do nunca. Quando falei com ele, preocupado, tive a sensação que ele não sabia quem eu era. Não tive coragem de responder que era seu filho quando ele me perguntou. Aquele duro silêncio que só entre familias é possivel existir e pesado como o esquecimento, se abateu sobre a sala enquanto a vela do bolo teimava em não ser assoprada. Ele olhava para mim com uma curiosidade inédita. Seu interesse me deixou com um gosto de molho agridoce no fundo da língua. Ele seguiu perguntando e eu permiti assim o fizesse. Pela primeira vez na minha vida, meu pai demostrava interesse em saber quem eu era.

Comentários

Pimenta disse…
Bah. É verdade isso?
Parece o conto Feliz aniversário, da Clarice Lispector.
Abração!
Helena Mello disse…
Meu pai nem chegou perto. Faltava um mês para os 80 ano passado, quando ele pediu um suco de laranja e "dormiu". Tinha sobrevivido a um enfarte em Paris no final dos anos 80, três pontes de safena, diabetes, câncer na próstata. Saí de férias em fevereiro sem saber que os exames tinham mostrado um câncer no fígado. Coisas de minha mãe. Lúcido até o fim, chegou a escrever um livro sobre um projeto educacional criado por ele (os Jogos Boole) "aproveitando" a dificuldade de se movimentar. Nossas conversas não passavam de 5 minutos sem virar discussões terríveis. Costumava dizer que era uma questão astrológica. Eu, libriana. Ele, ariano. Agora que ele se foi ainda escuto a voz dele. Assim que me tornei mestra, imaginei ele perguntando: "E serve prá quê?". Antes, me irritava. Agora, me move.
JULIO CONTE disse…
Helena,
é comovente o teu relato. Vale a pena viver estas multiplas realidades que envolvem a nossa alma.
Lu Bendati disse…
Julio, lindo o texto.
Que lindo olhar.
AAh, me comovi...
beijo
Anônimo disse…
...uma videira ferida pelo frio invernal, mas que rebrota a cada primavera, para frutificar no verão...eis a noção de familia, na qual somos elementos diversos sem conseguir sair da unidade trágica, que ele o clã familiar sempre produz...vc é nosso vate, o principal, o que chegou na raiz, Julio Conte. Vaticine, ao menos para os ouvidos não moucos, que são tão poucos...

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