PAPAI FEZ CEM ANOS
Meu pai sempre disse que faria 100 anos. E eu assim como todos na minha família nunca duvidamos que isso acontenceria. A dúvida era que se nós, oito filhos, dezesseis netos, sete bisnetos ainda estariamos aqui. Papai lutou contra três infartos e sobreviveu. Sofreu de artrites que quase o imobilizaram, seu organismo foi cruelmente debilitado pela diabetes. Sem falar na hipertensao e no impiedoso câncer nos ossos. Passando por tudo isso ele chegou finalmente aos 100. E chegou lá desta forma, feliz, alegre, divertido. Alguém poderia dizer que era um maníaco tomado pela euforia ilusória. Mas como chegar a essa idade sem uma dose de distorção da realidade? Ele era assim totalmente brancaleone, falastrão e piadista. No dia da festa qundo terminamos os parabéns e começaram os hurras, ele não lembrava de nada. Não sabia mais quem ele era. Não sabia onde estava, não sabia seu nome, nem o nosso. Eramos olhos familiares tomados de espanto frente o olhar daquele homem assustado com o mundo que se descortinava frente aos seus 100 anos. Papai centenário começava a vida como um desconhecido habitando um corpo combalido pelo tempo e mais solitário do nunca. Quando falei com ele, preocupado, tive a sensação que ele não sabia quem eu era. Não tive coragem de responder que era seu filho quando ele me perguntou. Aquele duro silêncio que só entre familias é possivel existir e pesado como o esquecimento, se abateu sobre a sala enquanto a vela do bolo teimava em não ser assoprada. Ele olhava para mim com uma curiosidade inédita. Seu interesse me deixou com um gosto de molho agridoce no fundo da língua. Ele seguiu perguntando e eu permiti assim o fizesse. Pela primeira vez na minha vida, meu pai demostrava interesse em saber quem eu era.
Comentários
Parece o conto Feliz aniversário, da Clarice Lispector.
Abração!
é comovente o teu relato. Vale a pena viver estas multiplas realidades que envolvem a nossa alma.
Que lindo olhar.
AAh, me comovi...
beijo