Gêmeo Imaginário: Beckett-Bion - diário de bordo

Ontem foi o primeiro ensaio do Gêmeo Imaginário: Beckett-Bion, no Teatro de Arena. Espaço novo e com grande carga emocional. Sempre que entro no Teatro de Arena me sinto em casa e me sinto estranho em mim. São vários Julios misturados num tempo mágicos que se entrelaçam e me encontram ali. Pois foi neste teatro que iniciei o gosto pela arte cênica. Ali assisti minhas primeiras peças de teatro. Corpo a Corpo de Oduvaldo Vianna Filho, direção do Aderbal Freire Junior e no papel de Vivacua Jairo de Andrade. Marelise fazia um fantasma de todas as mulheres. Experiência impar de subversão. Teatro desde os anos 60 já era proscrito pela ditadura e nos anos 70 quando entrei ali pela primeira vez tive uma epifania. Um curto circuito. O Arena sempre foi um reduto da resistência. Jairo de Andrade, Marlise peças de arrepiar, pois eram mais do que teatro, eram atos de vida, ações que marcavam o lugar, teimosamente. Ir ao teatro era manter  algo liberto, algo insubmisso, manter parte da vida não subjugada. Teatro reduto do pensamento. 
Depois, como ator, estreei ali na peça A Lenda do Vale da Lua, do João Siqueira. Era o trabalho final de direção do Rafael Baião no DAD e teve a supervisão de Carlos Carvalho. Carlinhos foi a primeira pessoa a fazer observações estimulantes ao meu trabalho teatral. Na primeira cena, primeira fala, tropecei e por pouco não me estalei ao chão. Se tivesse caído provavelmente ontem eu  ainda encontraria a mim mesmo deitado no chão do palco. Mas ali estatelado estava apenas uma lembrança, uma sombra de mim mesmo. 
Depois como diretor da peça infantil Palhaças, também texto do João Siqueira, com o Pedro Santos e Marco Sório no elenco, produção do Roberto Oliveira. 
Então, ontem, cheguei no teatro e o encontrei cheio de fantasmas. Sempre penso que lugar certo dos fantasmas são os teatros, com sua escuridão de luzes artificiais, suas paredes, testemunhas silenciosas, o cheiro característico de cada sala. Um mundo a parte. 
O elenco já aquecendo, depois a Marguinha, vai fazer a luz, chegou para assistir e a Gusha para preparação corporal. O grupo está muito unido. Temos 60% da peça encaminhada. Falta o miolo e o final. Como contar a história da análise de uma das personalidades mais enigmáticas e importantes da nossa cultura: Samuel Beckett. Sendo que o analista foi Wilfred Bion, um dos mais importantes e revolucionários da psicanálise mundial, como fazer. E mais ainda as relações de cada um. Beckett viveu em Paris e conviveu com James Joyce, Marcel Duchamps, Giacometti. Namorou Peggy Guggehin. Foi esfaqueado por um gigolo, participou da resistencia francesa e escreve uma das obras mais revolucionaria do teatro. Bion nasceu na India, estudou em Londres, foi analisado por Melanie Klein, lutou nas duas guerras e, no auge da fama, mudou-se para os Estados Unidos em pleno anos 60 onde analisou Steven Spielberg. É muita vida para uma peça. Tudo que colocarmos ainda será apenas um recorte. Mas esta é a essência do teatro. No palco do Arena nos atrapalhamos com o novo espaço. Mais porque ele abriu novas perspectivas do que restringiu. No final da noite, chegou o Aldo Duarte com seu entusiasmo contagiante. Para reconhecimento do espaço. Valeu a noite. Mas foi só a primeira. Ainda faltam muitos fantasmas iluminados para a peça emergir das sombras.

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