Crítica de Antonio Holfeldt sobre a peça Beckett-Bion: Gêmeo Imaginário

Fonte: Jornal do Comércio



Desnudando Beckett
Tenho tido a oportunidade de acompanhar praticamente toda a carreira de dramaturgo e de direção teatral de Julio Conte, um de nossos mais produtivos, persistentes e provocadores escritores de teatro, sempre disposto a experimentar, sem medo de errar e, sobretudo, disposto ao novo.

O exemplo mais recente dessa sua admirável disponibilidade é Beckett & Bion, gêmeo imaginário, atualmente em cartaz no Teatro de Arena. Espetáculo intimista, sua criação certamente é um misto de pesquisa acurada, pacienciosa e obstinada e também síntese de boa parte de uma outra faceta de sua vida profissional, a de psicanalista. O resultado não poderia ser melhor. Em cerca de hora e meia de encenação, assistimos a uma recriação crítica dos encontros ocorridos entre o dramaturgo e o psicanalista, ambos problemáticos, mas ambos, sobretudo, extremamente humanos.

Julio Conte dramaturgo explorou todas as nuances e alternativas do texto, que é fragmentário, remetendo a um sem-número de personagens que, por isso mesmo, precisam ser identificados, num pequeno folder que é entregue à plateia, a fim de que se possa acompanhar e compreender a ação cênica. Assistido lado a lado comVermelho, que comentei na semana passada, transforma-se em um belo espetáculo de reflexão a respeito de como a dramaturgia pode (bem) explorar biografias e aspectos muitas vezes aparentemente sem maior significado na vida de um personagem, mas que, quando bem explorado, transforma-se em admirável matéria-prima de um drama. Não interessa que Beckett, de fato, tenha tido sessões de análise com o médico. Mas a possibilidade de tais encontros serve para deflagrar inúmeras outras ações que, combinadas, aleatoriamente, constituem uma tensão que vai se desdobrando ao longo de todo o espetáculo. Assim, o dramaturgo consegue narrar tanto o indivíduo quanto o contexto histórico e, mesmo que sem entrar em detalhes, apresenta, em grandes traços, aqueles elementos que nos ajudam a compreender aquele personagem, a acompanhá-lo, a experimentar por ele empatia que nos leva a certa identificação.

Já o Julio Conte encenador aproveitou-se das deixas do dramaturgo e tratou de fazer pequenos jogos de cena e brincadeiras que quebram a dureza do texto e a complexidade do tema, como a “tradução” em “portoalegrês” de algumas situações. O espetáculo é ágil, cenicamente: os atores são levados a exercícios posturais variados, que de certo modo comenta, e distanciam o espectador daquilo que está sendo dito. Pingo Alabarce, como Beckett, e Thiago Tavares, como Dr. Bion, vivem a contradição dramática que comanda o espetáculo. Mas Martha Brito, que interpreta alternadamente Melanie Klein, Lucia Joyce e Suzanne - a esposa do dramaturgo - tem desempenhos respeitáveis, já que cada figura lhe exige comportamentos diversos, o que ela bem realiza. Catharina Conte interpreta Peggy Guggenheim - que em certo momento teve uma relação com o dramaturgo - e a personagem de Dumas Filho, a Dama das Camélias. Catharina mostra força e controle sobre o personagem, alcançando neste trabalho, possivelmente, seu melhor momento de tudo o que dela vi até o momento. Cristiano Godinho, como o artista plástico revolucionário Marcel Duchamp, e Gabriel Ditellles, como James Joyce, completam o elenco dessas figuras notáveis das primeiras décadas do século XX, que mudaram completamente nosso modo de ver e registrar o mundo.

O cuidado técnico é também destacável: os figurinos de Mirelle Rittel, a cenografia de Ana Lorenzon, bem resolvida no pequeno espaço; a iluminação de Marga Ferreira e Alexandre Lopes Fagundes, ajudando a marcar dramaticamente a cena; a fundamental preparação corporal de Thais Petzold e vocal de Ligia Motta, mais a inteligente e sensível trilha sonora de Celau Moreyra, com a produção de Patsy Cecato. Sem desmerecer outros trabalhos de Conte, minha impressão é de que este é uma realização maior, tanto do dramaturgo - na medida, sem excessos, sem perda do foco - quanto na direção – com ritmo perfeito e domínio de cena, personagens e atores.

Último fim de semana
Teatro de Arena
Sexta e sábado: 21 horas
Domingo: 20 horas




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