Fábio de Souza Andrade um dos maiores especialistas e Bcekket com a palavra
A importância de Beckett para a modernidade
Desconcertante e plural, a obra de Samuel Beckett
foi decisiva para a reinvenção da arte moderna
Fábio de Souza Andrade
A certa altura de Vinicius (2005),
documentário de Miguel Faria sobre o “poetinha” carioca, um depoimento do poeta
Ferreira Gullar deriva para um ânimo filosofante um tanto ligeiro e acaba por
levar a uma classificação dos homens em dois tipos. Para o autor do “Poema
sujo”, de um lado, há os que, esperançosos, escolhem ver o copo ainda cheio
pela metade, celebrando a vida no que ela tem de realizadora e feliz, e, de
outro, os amigos do não, apocalípticos, que teimam em percebê-la como vaso
quase vazio, a caminho do fim e do nada.
No filme, essa polarização cumpre uma finalidade
retórica: a de recortar um Vinicius de Moraes hedonista, amoroso e sem arestas,
figura alegórica de um tempo brevemente feliz – o Brasil da bossa nova e dos
anos JK – e de um lugar social restrito – a classe média do Rio. Visão parcial,
que elide tanto uma melancolia latente, que mesmo a mais luminosa das canções
de Vinicius guarda como contraponto, quanto a impossibilidade de transformar o
país numa imensa Ipanema.
Empenhado, Gullar troca sua tese em miúdos: na
literatura, o arquétipo dos “chatolas” destrutivos, dos que escolhem ver a vida
em cinza e negro, seria Samuel Beckett, o irlandês nascido em Foxrock, subúrbio
abastado de Dublin, em 1906, e morto em Paris, há 20 anos. Simplista quanto
pareça, essa disjunção de base equivocada ainda resiste, pouco arranhada, às
sucessivas ondas de recepção crítica e teórica que a obra beckettiana, em suas
múltiplas faces (peças, romances, ensaios, poemas), vem suscitando.
Difíceis e desconcertantes, drama e prosa do
autor de Esperando Godot recusam a acomodação de suas tensões internas
em pares conceituais antípodas como otimismo/pessimismo ou realismo/absurdo.
São formas de expressão pensada e cifrada de impasses estruturais que vão muito
além de seus limites. Também por isso não cabem no simples comentário
explicativo, nem se esgotam na decodificação erudita de suas referências e
intertextos, mesmo que, para tanto, se multiplique, a cada ano, um exército de
especialistas.
As marcas do século 20
Do estrago causado pela leitura inaugural de
Martin Esslin – associando a novidade do texto beckettiano a autores com os
quais dividia pouco mais que um inespecífico impulso experimentalista (caso de
Arrabal ou Ionesco) – a leituras filosóficas fortes, como as de Theodor Adorno
ou Gilles Deleuze, um dos pomos da discórdia da crítica beckettiana continua a
ser a importância que se atribui a este mítico niilismo e à busca por alguma
positividade na obra do ganhador do Nobel de Literatura de 1969. Contra um
humanismo essencializado, que ouve em seus personagens apenas a eterna voz da
espécie, o remédio parece estar na radicação total de sua obra na história.
Beckett, o herdeiro da tradição europeia, o modernista tardio, o membro da
Resistência Francesa, o leitor de Dante, Joyce e Baudelaire, não pode ser
compreendido sem o contexto do século 20. Ele construiu uma obra movida pelos
impasses, em que a invenção formal, o abalo dos limites dos gêneros literários
entre si e entre a literatura e outras artes (a narrativa televisiva ou radiofônica,
o cinema e as artes visuais), o apreço pela economia de meios e o respeito pelo
silêncio traduziram-se num percurso de continuidade e adensamento exemplares.
Membro de uma elite minoritária irlandesa
protestante, Beckett driblou a carreira acadêmica de sucesso a que estava
destinado. Romanista, conhecedor de Dante e das vanguardas francesas, jovem
professor no Trinity College (por onde passaram Swift e Wilde), optou pelo
autoexílio, fixando-se na França, que vivia o final dos roaring twenties
(período de profundo dinamismo artístico-cultural da década de 1920). Junto ao
círculo literário de Joyce, sombra mais do que sedutora, opressiva, Beckett
buscou seu caminho próprio de escritor.
Do scholar que não foi, ficaram ensaios
idiossincráticos e contundentes, repletos de imagens tão precisas quanto
inesperadas: o tempo como voraz monstro janusiano, o hábito e a rotina como
coleiras que atam os sujeitos a seu vômito, o indivíduo como acúmulo de eus
mortos, superpostos como as camadas de uma cebola, sem núcleo por baixo. O
melhor exemplo é o ensaio que dedicou, no calor da hora, ao Proust de Em
Busca do Tempo Perdido, cuja edição em vários volumes acabava de ser
publicada pela Nouvelle Revue Française.
Nesses primeiros anos, a luta com a reticência
das editoras travou-se em torno de uma coletânea de contos, More Pricks than
Kicks, extraídos e salvos de um romance de formação publicado apenas
postumamente, em que Bellacqua, alter ego do autor, errava pelo meio boêmio
universitário de Dublin e encontrava no solipsismo e na ironia o refúgio para
seu ceticismo individualista precoce. Essa resistência à socialização feliz e
domesticada – recusa em jogar a comédia social e desconfiança do discurso “bem
acabado” – aparece também em Murphy, divertido romance de perseguições
amorosas e desencontros existenciais que Beckett escreveu durante uma temporada
londrina, período pessoalmente muito infeliz em que fazia sessões de análise
com Wilfred Bion.
Somados a uma coletânea de poemas intitulada Echo’s
Bones and Other Precipitates e a Whoroscope – longa meditação em
versos sobre o tempo –, More Pricks than Kicks e Murphy dão o tom
da entrada beckettiana na cena literária. Sucessos de estima mais que de
público, esses livros já lhe teriam valido o reconhecimento de um talento fora
de série, especialmente entre os escritores, inclusive o maior de todos em
atividade, James Joyce. Mas, fruto de uma cultura literária vastíssima,
investindo na paródia e expondo o esgotamento da prosa realista do século 19, a
ficção beckettiana dos primeiros anos não sugeria ainda o salto que o autor
viria a dar.
A conquista de uma voz própria
A participação direta na experiência central do
século 20 ao viver a clandestinidade na França ocupada e o fato de ter escapado
da morte por um triz dão densidade máxima à guinada estilística que marca uma
segunda fase e à conquista definitiva de uma voz inconfundível que singulariza
a obra beckettiana. Nos cinco anos que se seguiram ao fim da Segunda Guerra,
recluso em seu apartamento parisiense, Beckett apostou em uma simplificação de
meios e no aprofundamento do que viria a ser sua âncora temática mais
duradoura: ocupar-se da miséria e da solidão humanas, sem abandonar o
distanciamento que a capacidade de rir da e na tragédia (“Nada é mais engraçado
que a infelicidade”, diz Nell, em Fim de Partida) propicia aos homens.
Ao mesmo tempo em que encontra seu anti-herói
típico – um despossuído sem emprego, família ou perspectivas, capaz de revelar
pelo humor e pela marginalidade a lógica hostil e perversa do normal –, Beckett
sente a necessidade de limpar sua escrita de uma literariedade virtuosística e
alusiva bastante evidente em sua primeira produção. Passa, então, a escrever em
francês, língua em que lhe parecia mais possível evitar ao máximo os ecos da
tradição de que se sentia refém escrevendo na língua materna.
A linguagem falha e as falas iniciadas a
contragosto e difíceis de estancar passam a ser a aposta beckettiana no
pós-guerra, corroendo por dentro convenções dramáticas e materializando-se em
imagens insólitas. As motivações da ação dos personagens – agora cegos, coxos,
impotentes – perderam-se para sempre numa história opaca, sucessão de traumas
apagados na rotina. Tais aspectos estão presentes, por exemplo, no choque
inicial de Esperando Godot, reiterado em Fim de Partida e Dias
Felizes, e também nas narrativas, que reduzem o romance a ruínas na voz do
narrador em primeira pessoa da trilogia Molloy, Malone Morre e O
Inominável. Construídos sobre dejetos, restos de razão tortuosa e
totalitária, linguagem ineficaz, cotidiana, comezinha, os pares dos vagabundos
Didi e Gogo e dos reclusos Hamm e Clov, somados à “longa sonata de cadáveres”
dos narradores Molloy, Moran, Malone e o Inominável, levaram seu criador a um
novo patamar de impasse. Depois deles, o silêncio?
Não foi o que as décadas seguintes reservariam a
seus leitores. O Nobel de 1969 não o condenou a uma aposentadoria de luxo.
Beckett renovou-se em uma prosa que suspendia cada movimento, ao multiplicar o
máximo de tensão em formas cada vez mais concentradas, residuais. A sintaxe das
repetições – construída por mínimos acréscimos e infinitas correções de rumo,
que se serviu da indeterminação e das elipses – foi se impondo. Está em Como
É, que abole parágrafos e pontuação; está na trilogia tardia dos anos 1980
(Compania, Mal Visto Mal Dito e Worstward Ho); e
nos dramatículos – peças quase desprovidas de ação (Footfalls, Come
and Go, Solo) em que a palavra narrada e a imagem assumem o primeiro
plano.
Da ironia dos meios presente nos primeiros
romances em inglês, passando pela erosão intratextual dos modelos ideais do
drama e do romance modernos, Beckett alcançou uma escrita ainda mais concisa e
rigorosa. A natureza insuficiente da linguagem, a imperfeição na percepção do
mundo e sua tradução artística levaram-no a uma episteme da dúvida permanente,
um reconhecimento de limites e uma lembrança mais aguda e cristalina da
falibilidade humana que se revelam em faux départs (escrita fragmentária
de abandonos e retomadas).
A enxurrada crítica e as numerosas montagens e edições,
apropriações e desdobramentos de sua obra pelos quatro cantos do mundo têm
chegado timidamente ao Brasil, que em sua posição periférica (análoga à que a
Irlanda ocupava no contexto europeu) recoloca em novos termos os impasses
estéticos, cognitivos e linguísticos que desenham a importância de Beckett.
Apesar de ter ganhado os palcos locais em algumas montagens memoráveis, a
predominância de Godot sobre todos os demais textos dramáticos (até
muito recentemente, quase que absoluta) não se justifica senão pela morosidade
do mercado editorial brasileiro e pela timidez dos encenadores. Tomara não
fique ao sabor das efemérides nem seja fugaz marolinha a onda recente de
versões para o português de volumes essenciais de sua vasta herança. Todo
grande autor desloca a tradição e, tanto no teatro como na narrativa, Beckett
foi fundamental para nossa reinvenção moderna. Não podemos nos dar ao luxo de
ignorá-lo.
Cronologia
1906 – Em 13 de abril, nasce Samuel
Barclay Beckett, em Foxrock, subúrbio de Dublin
1920 – No colégio interno da
Portora Royal School, onde estudara Oscar Wilde, Beckett destaca-se nos estudos
e na prática de rúgbi, críquete e remo
1923 – Matricula-se no Trinity
College, em Dublin, onde se dedica ao estudo de línguas modernas (italiano e
francês)
1927 – Conclui a graduação como o
primeiro da turma
1928 – Em outubro, embarca para
Paris e permanece por dois anos como leitor de inglês na École Normale
Supérieure; aproxima-se de James Joyce
1929 – Publica “Dante… Bruno. Vico…
Joyce”, seu primeiro ensaio, que integraria a obra coletiva em torno de Finnegans
Wake, de Joyce
1932 – Instala-se em Paris, onde
traduz obras de Rimbaud, Paul Éluard e André Breton
1933 – Em junho, morre seu pai,
William; abalado, muda-se para Londres
1934 – Publica More Pricks than
Kicks, coletânea de contos
1937 – De volta a Paris, escreve
seus primeiros poemas em francês
1938 – Em Montparnasse, é
esfaqueado por um mendigo; recuperado, conhece a pianista Suzanne Descheveaux-Dumesnil,
sua companheira até a morte
1940 – Em plena Segunda Guerra,
integra-se à Resistência Francesa
1942 – Escapa da Gestapo e,
acompanhado da mulher, refugia-se no sul da França
1945 – Retorna a Paris e é
condecorado com a Cruz de Guerra; trabalha como voluntário na Cruz Vermelha
irlandesa
1947 – Dedica-se à composição da
peça Eleuthéria e dos romances Molloy e Malone Morre
1949 – Escreve o romance O
Inominável
1952-1953 – É publicada a peça Esperando
Godot, que estreia no ano seguinte, sob a direção de Roger Blin
1955 – Traduz Molloy para o
inglês e conclui a primeira versão da peça Fim de Partida
1957 – Em Londres, novamente sob a
direção de Roger Blin, estreia Fim de Partida
1958-1961 – Escreve as peças A
Última Gravação de Krapp, Dias Felizes, o romance Como É e as
peças radiofônicas Cinzas e Palavras e Música
1963 – Conclui o roteiro do
curta-metragem Filme; escreve Peça
1969 – Recebe o Nobel de Literaura
e não comparece à cerimônia de premiação
1972-1974 – Escreve as peças Eu
Não e That Time
1975 – Dirige Esperando Godot
em Berlim; escreve as peças Footfals e Pour Finir Encore, além de
Ghost Trio (peça televisiva)
1977-1981 – Escreve sua segunda
trilogia de romances, composta de Companhia, Mal Visto Mal Dito e
Pioravante Marche (Worstward Ho), e as peças Rockaby e
Improviso de Ohio
1982 – Escreve as peças Catastrophe
e Nacht und Träume
1989 – Em julho, morre Suzanne, sua
esposa; cinco meses depois, em 22 de dezembro, morre Samuel Beckett
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