Trabalho de Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho sobre a análise Becektt com Bion


A “disputa” (prise de Bec) entre Beckett e Bion: a “experimentação” do insight no resplendor da obscuridade1

La “disputa” (“prise de Bec”) entre Beckett y Bion: el insight “experimental” en el resplendor de la obscuridad

The “squabble” (“prise de Bec”) between Beckett and Bion: the “experimental” insight in the glaringly darkness


Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho2
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo



RESUMO
Este artigo parte da premissa de que o encontro psicoterápico entre Wilfred Bion e Samuel Beckett teria gerado uma espécie de laboratório emocional rico em “insights experimentais”. Com a ajuda de Film, o único filme com roteiro de Beckett, inicia-se uma discussão a respeito da visão exterior, sensorial, e da visão interior, psíquica. O assunto é expandido com os conceitos de visão binocular e monocular, propostos por Bion, e muito bem exemplificados na obra de Beckett. Confrontando a “sintaxe da fraqueza” que sustenta esta obra, com a “capacidade negativa” do analista que, de acordo com Bion, o instrumentaliza a captar os “pensamentos selvagens“ do analisando, o artigo destaca a diferença entre a não-coisa (no-thing) e o nada (nothing), subjacentes à dialética entre existir e não-existir. Como epílogo, assinala que ambos os autores se complementam ao tentar uma formulação de indagações existenciais essenciais: “Como pensar o impensável, como nomear o inomeável, como conhecer o incognoscível?”
Palavras-chave: Insight; Visão interior; Visão exterior; Visão monocular; Visão binocular; Negativização; Capacidade negativa; “Incapacidade positiva”; Existir; In-existir.

RESUMEN
Este artículo empieza con la premisa de que el encuentro psicoterápico de Wilfred Bion con Samuel Beckett produjo un supuesto laboratório emocional rico em “insights experimentales”. Con la ayuda de Film, la única película con guión de Beckett, se empieza una discusión sobre la visión exterior, sensorial, y la vision interior, psíquica. La matéria expansionase com los conceptos de visiones bi y monocular, propuestos por Bion, y muy bien ejemplificados en la obra de Beckett. Contrastando la “sintaxis de flacura” característica de esta obra, con la “capacidad negativa” del analista que, según Bion, lo permite reconocer los “pensamientos salvajes del analisado, el artículo destaca la diferencia entre la no-cosa (no-thing) y la nada (nothing), subyacente a la dialéctica entre existir y no-existir. Como conclusión subraya que los dos autores se completan en la formulación de indagaciones existenciales básicas: “Cómo pensar lo impensable, como nombrar el innombrable, como conocer el incognoscible?”
Palabras clave: Insight; Visión interior; Visión exterior; Visión monocular; Visión binocular; Negativización; Capacidad negativa; “Incapacidad positiva”; Existir; In-existir.

ABSTRACT
This paper starts with the premiss that the psychotherapeutic encounter between Wilfred Bion and Samuel Beckett created a sort of emotional laboratory rich in “experimental insights”. With the help of Film, the only film with Beckett’ script, an argument is held concerning outer sensorial vision and inner psychical vision. The subject develops in addition to the concepts of binocular and monocular visions, suggested by Bion and well illustrated in Beckett’s work. Confronting the “weakness syntax” that supports his work with the analyst’s “negative capability” which, in Bion’s opinion makes it possible to grasp the analysand’s “wild thoughts”, the paper stresses the difference between no-thing an nothing underlying the dialectics between being and non-being, existence and non-existence. As an epilogue it suggests that both authors complement themselves in the enunciation of basic existential questions: “How to think the unthinkable, how to name the unamable, how to know the unknowable?”
Keywords: Insight, Inner vision; Outer vision; Monocular vision; Binocular vision; Negativization; Negative capability; “Positive incapability”; Being; un-being.



O que é aquilo que sempre é, sem nunca se tornar? E o que é aquilo que está sempre se tornando, e nunca é?
Platão, Timeus, parágrafo 27

1. Introdução
Dois fatos inspiraram-me a escrever este trabalho. Em primeiro lugar, o encontro ocorrido nos anos de 1934-35 na Tavistock Clinic em Londres entre Samuel Beckett e Wilfred Bion. Aos 28 anos, Beckett, um jovem egresso do Trinity College de Dublin, sentia-se “deprimido… e confuso”, estava incapacitado por uma série de distúrbios psicossomáticos como furunculose, dispnéia e taquicardia, suas noites eram insones, acordava freqüentemente com pesadelos pavorosos, chegando ao ponto de evitar dormir com temor de vir a sonhar.3 Seu médico e amigo Geoffrey Thompson, convencido de que ele estava à beira de um colapso nervoso, sugeriu que fizesse análise, encaminhando-o à Tavistock, onde foi atendido por Bion, quem, aos 39 anos, iniciava sua formação psicoterápica, depois de ter estudado história moderna e filosofia em Oxford e se graduado em medicina em 1929.
As poucas informações que temos a respeito desse encontro psicoterápico são encontráveis na biografia de Beckett escrita por Deirdre Bair em 1978 (em especial, no cap.8), tendo chamado minha atenção o fato de que ele contabilizava suas sessões dizendo, com uma ponta de ironia, ter tido 134 “disputas”– prises de bec– com Bion. Segundo Didier Anzieu (1997), essa curiosa expressão francesa usada por Beckett, além de evocar o patronímico “Becquet” de seus ancestrais huguenotes que emigraram para a Inglaterra, ainda, etimologicamente, evoca a palavra fácil maledicente ou irônica (talvez aí, a origem de nossa expressão “bom de bico”). Anzieu (1992, p. 44), em outro estudo, chega a conjeturar um pretenso comentário de Bion a respeito das artimanhas de Beckett: “Il me donne la becquée et, quand je vais pour le prende, il me flanque un coup de bec” (“Ele me oferece um bocadinho, mas, quando avanço para pegá-lo, acabo recebendo uma bicada”).
É importante notarmos que naquela época nem Beckett era o grande literato que veio a ser agraciado em 1969 com o Nobel, nem Bion o grande psicanalista que no final da vida produziu a trilogia Umamemória do futuro, espécie de ilustração onírica de toda a sua obra. No entanto, se nos fiarmos na convicção bioniana da enorme importância das vivências pré e perinatais no desenvolvimento do psiquismo adulto, é de supor que já então ambos estavam às voltas com o esforço de organizar suas ansiedades primitivas no sentido de garantir vidas maduras e criativas. Ao julgar-se pelas obras altamente originais que ambos vieram a produzir, é possível supor que na atmosfera eletrizante desses encontros tivesse surgido uma espécie de laboratório emocional, onde a transgressão e a ousadia gerassem continuamente insights “experimentais”. Entenda-se por experimental, neste contexto, a interação de duas personalidades esquizóides possuidoras de uma Gestalt modernista (Simon, 1988, p. 22), propensa a “experimentar, brincar, transgredir, ampliar limites, formular e encenar todas as implicações de suas idéias”.
O segundo fato foi a oportunidade que tive de assistir a Film, o único roteiro cinematográfico feito e filmado por Beckett e apresentado em 1965 no New York Film Festival. O eixo conceitual utilizado por ele foi extraído do filósofo idealista irlandês George Berkeley para quem “Esse est percipi” (“Existir é ser percebido”): nesse sentido, mesmo se suprimirmos toda percepção exterior (animal, humana, até divina) em busca do inexistir, continuamos à mercê da autopercepção que garante o existir. Portanto, a única forma de escaparmos de “sermos percebidos” seria apelar para a solução extrema de não-existir.
No meu entender, as questões mais interessantes que Film oferece a nós psicanalistas são: a) nos permitir contrastar a visão exterior (que poderíamos chamar de outsight) afinada para captação da realidade sensorial e a visão interior (o insight de nosso glossário técnico), burilada para apreensão da realidade psíquica; b) nos fornecer subsídios para discutir as implicações psíquicas do uso da visão binocular.
Em face do exposto, pareceu-me bastante útil elaborar um trabalho tendo como ponto central a discussão da dialética existirin-existir, a partir das contribuições convergentes, mas autônomas, das duas obras em questão. Beckett, como sabemos, é o “poeta da indigência” (Souza Andrade, 2001), da nulificação, da desqualificação, da despersonalização, da desconstrução, se preferirmos; Bion é o propositor da não-coisa (no-thing) como objeto que confronta o sujeito com a possibilidade de pensá-lo ou evacuá-lo– no caso extremo, Bion (1965, cap. 7) nos descreve o “supremo objeto não-existente”, aquele que abomina qualquer partícula de existência.

2. Outsight e insight
Film começa e termina com o close de um olho, referência explícita à famosa imagem do olho cortado por uma lâmina de Le Chien Andalou, de Bunữel e Dali, que poderia simbolizar a visão exterior passível de ser atacada sensorialmente: esta visão do “olho da cara” prevalente nos personagens de Beckett é necessariamente opinativa e por isso vulnerável às ansiedades esquizo-paranóides. O insight psicanalítico, por seu lado, refere-se à visão interior propiciada pelo olho da mente (the mind’s eye, na expressão de Shakespeare), sempre de prontidão para recolher as percepções da posição depressiva ou, nos termos de Bion, para unificar-se (be at one) com o objeto através da rêverie, enxergando-o a partir do interior do próprio sujeito.
Grotstein (2007) denominou seu último livro de A beam of intense darkness, em alusão à famosa recomendação de Freud de que o analista deveria cegar-se artificialmente para melhor captar a realidade psíquica. Segundo ele, Bion teria numa ocasião traduzido essa passagem de Freud em carta a Lou Andreas Salomé da seguinte maneira: “Ao conduzirmos uma análise, é preciso emitir um facho de intensa escuridão de modo que algo que até então tenha ficado obscurecido pelo resplendor da iluminação possa cintilar ainda mais na escuridão”.
Introduzi o oxímoro “resplendor da obscuridade” no título deste trabalho para ressaltar que tanto Bion como Beckett valeram-se desse recurso expressivo na abordagem de seus objetos de investigação. De fato, Webb e Sells (1997) fizeram um interessante estudo comparativo entre a linguagem apofática dos místicos neoplatônicos e as formulações de Lacan e Bion, que visam a uma apreensão do conhecimento psíquico através de um caminho que se movimenta do “não-saber” em direção ao “saber”. O significado nesses casos emerge em função da tensão surgida entre uma proposição afirmativa (a catáfase) e outra que a nega (a apófase). Do mesmo modo, Souza Andrade (2001, p. 69) analisa uma reflexão de Moran sobre seu encontro com Molloy que resulta num autocancelamento através do uso da epanortose, a figura de estilo que retoma um fluxo narrativo para reinterpretá-lo em sentido contrário.
“Emitir um facho de intensa escuridão” não é uma recomendação prescritiva de algo a ser obtido pela vontade, mas a sugestão de que, se adentrarmos ao “aposento dos pensamentos virgens” (Keats, carta a Reynolds, 03.05.1818) do analisando desassistido da iluminação ilusória obtida pela utilização da memória, desejo e conhecimento do analista, então estaremos aptos a desenvolver uma percepção que consiga captar os “pensamentos selvagens” do analisando, situados sempre num espectro infra ou ultra-sensorial.
Certos artistas utilizam a técnica pictórica para produzir uma ilusão sensorial chamada de tromp l’oeil: o princípio subjacente a esse procedimento é explorar áreas de auto-engano no observador, exatamente aquilo que ocorre nas instâncias de prestidigitação. Em vez de o olho ser enganado, trata-se aqui muito mais do olho deixar-se enganar. Cônscios do quanto à visão se deixa seduzir pelo óbvio, o artista e o mágico camuflam o truque desviando a atenção do espectador do sítio onde ele se concretiza.
Sabendo que o psiquismo humano está vulnerável a uma variedade inesgotável de operações de auto-engano, compete ao psicanalista instruir-se a respeito deste jogo de lusco-fusco que constitui, em última análise, a essência da metapsicologia. De fato, a metapsicologia, no meu entender, é o conjunto de operações econômicas que o psiquismo utiliza, visando a representar emoções através de “artimanhas estéticas”. Espera-se, portanto, que o psicanalista, lançando no palco da sessão analítica um facho de intensa escuridão, consiga rastrear às avessas o enredo criado pelo analisando-dramaturgo, habilitando-o a reconhecer a “ilusão mental” do principal personagem da análise, ele mesmo.
Bion (1991, p. 271) oferece-nos um diálogo entre P. A. (psicanalista) e Paul (São Paulo):
P. A.: A “penetrante flecha de escuridão” é o que eu gostaria de usar para iluminar o que Freud chama de áreas escuras da mente.
Paul: “Usai olhos encaramujados, duplamente escurecidos”, como disse Gerald M. Hopkins, “e encontrarás a luz embrionária”.

3. Visão monocular  Visão binocular
Em Film, nós espectadores somos conduzidos a reboque da câmera, ou seja, pegamos carona numa visão monocular. O personagem, designado no roteiro como O (curiosamente o mesmo signo usado por Bion emTransformações para referir-se à Verdade Última), revela-se ao final também reduzido à monocularidade.4 São várias as referências à visão binocular espalhadas pelo filme: o pincenê, os dois orifícios na cadeira de balanço, os dois botões que amarram a pasta de documentos, os olhos da gravura na parede e assim por diante. O personagem, na concepção cinematográfica, é “dividido” em objeto (que é perseguido) e em olho (que persegue): até o final do filme não fica explícito que o “perseguidor da percepção” não é um agente extrínseco, mas o próprio self. Para que isso aconteça, o personagem é sempre visto pelas costas ou, no máximo, num ângulo lateral que não exceda 45º, garantindo a ele uma “zona de imunidade” (expressão de Beckett) que o protege da angústia de ser percebido.
Em sua obra literária, Beckett está perfeitamente cônscio dessas questões, abordando-as de diversas maneiras. Vejamos, por exemplo, o reconhecimento por parte de Molloy (2007, p. 78) das limitações da monocularidade:
E tendo só um olho, de um total de dois, que funcionava mais ou menos como convém, calculava mal a distância que me separava do outro mundo, e muitas vezes estendia a mão que se encontrava claramente fora do seu alcance e muitas vezes batia contra sólidos apenas visíveis no horizonte. Mas, mesmo quando tinha meus dois olhos, era assim, me parece, mas talvez não, pois já vai longe esse período da minha vida e guardo dele uma lembrança mais que imperfeita.
A seguir (p. 81), Lousse utiliza-se da visão binocular MãeMulher para espreitar Molloy, invertendo o sentido da espreita da cena primária e justificando a descrição cáustica que Beckett faz das mães como “putas uníparas”5(ou seriam seres monopanópticos focados em vigiar os filhos/maridos incansavelmente, como sua própria mãe?):
Lousse, eu a via pouco, ela não se mostrava muito a mim, por discrição talvez, temendo me afugentar. Mas acho que ela me espiava muito, escondida atrás das moitas ou das cortinas, ou agachada no canto de um quarto do primeiro andar, com a ajuda de binóculos talvez. Pois ela não tinha dito que desejava antes de tudo me ver, tanto indo como vindo, quanto parado, em repouso? E para ver bem é preciso o buraco da fechadura, a frestinha entre as folhas, tudo o que impede de ser visto e ao mesmo tempo só deixa ver do objeto fragmentos por sua vez. Não? Sim, ela me inspecionava, pedaço por pedaço, e sem dúvida até a minha intimidade ao ir deitar, ao dormir e ao despertar, nas manhãs em que me deitava.
Um pouco mais adiante (p. 109-110), vemos exaltada a visão binocular naquilo que ela tem de mais operativo, que é a possibilidade de fundir duas imagens alternativas numa única imagem:
O que quer que seja, vejo uma mulher que, enquanto está vindo na minha direção, pára de vez em quando e se volta para as companheiras. Apertadas como ovelhas, observam-na afastar-se e fazem sinais encorajadores, rindo sem dúvida, pois creio ouvir risos, ao longe. Depois, vejo-as de costas, refazendo o caminho, e é agora que ela se volta para mim, mas sem se deter. Mas talvez esteja fundindo duas ocasiões numa só, e duas mulheres, uma que vem na minha direção, timidamente, seguida por gritos e risos das companheiras, e outra que se afasta, com o passo bem mais decidido. Pois as pessoas que vinham na minha direção, na maioria das vezes, eu as via vir de longe, é uma das vantagens das praias. Eu as via como pontos negros ao longe, podia vigiar suas manobras dizendo a mim mesmo, Está diminuindo, ou, Está aumentando. Sim, ser pego desprevenido era por assim dizer impossível, pois me virava com freqüência também para a terra. Vou lhes dizer uma coisa, enxergo melhor à beira-mar! Sim, esquadrinhando em todas as direções essa vastidão por assim dizer sem objeto, sem vertical, meu olho bom funcionava melhor, e quanto ao ruim, havia dias em que ele também tinha de se revirar. E não apenas enxergava melhor, mas era menos difícil, para mim, arrear com um nome as raras coisas que via. Estas são algumas das vantagens e das desvantagens da beira-mar.
Beckett utiliza como estrutura dramática básica a interação entre pares de personagens que, em geral, representam a interação entre funções psíquicas complementares ou antagônicas:6 é o caso de Mercier e Camier, Vladimir e Estragon, Pozzo e Lucky, Nagg e Nell, Hamm e Clov. Hamm, por exemplo, ocupa tirânico o centro de uma constelação onde, em função de sua cegueira, funciona como um astro sem luz própria, dependendo para existir do trabalho diligente de Clov que vasculha o mundo em busca de luzes que possam iluminá-lo:
Hamm: Por acaso você já viu meus olhos?
Clov: Não.
Hamm: Nunca teve a curiosidade, enquanto eu dormia, de tirar meus óculos e espiar meus olhos?
Clov: Levantando as pálpebras. [pausa] Não.
Hamm: Qualquer dia vou mostrá-los a você. [pausa] Parece que ficaram completamente brancos. [pausa] Que horas são?
Clov: A mesma de sempre.
Hamm: [gesto em direção à janela direita] Você já olhou?
Clov: Olhei.
Hamm: E então?
Clov: Zero.
Quanto mais Hamm incita Clov a perscrutar o mundo através da visão monocular de uma luneta que ele deve acessar na janela, mais o resultado final é nulo; quanto mais sua aflição vai demandando a visão das ondas do mar, das gaivotas, enfim do horizonte do mundo, Clov vai acumulando uma fieira de zeros, deixando assim claro que o desentendimento entre eles não só impedia a constituição de uma visão binocular, mas também parecia projetar no entorno a cegueira de Hamm. Como bem nos lembra Souza Andrade (2005, p. 15) em sua apresentação da tradução de Fim de partida (de onde extraí o trecho acima), a relação sado-masoquista entre Hamm (evocação de martelo em inglês) e Clov (associado a clou, prego em francês) caracterizaria uma disputa estéril entre dois pontos de vista (vértices na terminologia de Bion) que nunca se encontram.
Christopher Ricks (1990, p. 61), em sua brilhante análise sobre as “palavras moribundas de Beckett” constituintes da sua “sintaxe da fraqueza”, dá-nos um belo exemplo da constituição daquilo que eu chamaria de “palavra monocular” para descrever o mundo. Ele cita a passagem onde Hamm demanda peremptoriamente a Clov uma única palavra que possa resumir o mundo que ele vislumbra com sua luneta através da janela:
Hamm: O que é o todo?
Clov: O que vem a ser o todo? Numa palavra? É isso que você quer saber? Espere um pouco [direciona a luneta para fora, olha, abaixa a luneta, vira-se para Hamm], cadavérico [corpsed].
Rastreando a origem semântica de corpse, somos informados que como verbo transitivo ele representa o ato de matar, de produzir um defunto, mas como gíria teatral significa “desconcertar um ator durante sua apresentação através de algum erro”. Kenneth Branagh, o ator inglês, estende o termo para o riso incontrolável que pode “baixar” no artista durante sua encenação, jogando-o para fora do script original. Isso sugere um estado análogo à hamartia grega, que é usado na Ilíada (Brandão, 1986, p. 77), no sentido de errar o alvo, errar o caminho, cometer uma falta, tropeçar por irreflexão; para Beckett, portanto, a palavra monocular síntese da precariedade do mundo bem poderia ser “descarrilamento”.
Um lindo exemplo de “palavra binocular” nos é oferecido pelo próprio Beckett ao comentar os neologismos expressivos de Joyce: insatisfeito com a eficácia da palavra doubt (dúvida) para significar estados extremos de incerteza, ele substituiu-a pela expressão in twosome twinminds, que evoca, com raro poder de síntese estética, a imagem do “encontro de duas mentes gêmeas divididas”.
Vários estudiosos da obra de Beckett, inclusive o próprio Ricks (1990, p. 47-48), chamam atenção para um aspecto sui generis da sua biografia que foi a necessidade, depois de ter-se mudado para Paris, de produzir uma obra binocular, ou seja, em francês e inglês, quase que simultaneamente. O francês teria-se apossado de Beckett por ser uma língua que lhe permitia expressar com simplicidade o jorro de sentimento que lhe invadia quando sob efeito do tropismo que o impelia em direção ao sol negro da morte. Uma boa maneira de acompanhar esta “palavra binocular” de Beckett seria observar a construção poética forjada para dar conta da extinção de “isto”:
imagine si ceci– just think it all this
un jour ceci– one day all this
un beau jour– one fine day
imagine– just think
si un jour– if one day
un beau jour ceci– one fine day all this
cessait– stopped
imagine– just think
Confrontado com esse exemplo, fica claro como o francês permite uma fluidez e harmonia ausente do inglês. A fisiologia da visão binocular, segundo Bicas (2004) nos ensina que esta visão ocorre pela superposição dos campos visuais de cada olho numa estreita faixa de otimização: aquém e além dela, ocorre diplopia e confusão, sendo necessária supressão fisiológica (cortical) para eliminá-las; por outro lado, é importante assinalar as benesses da visão binocular normal que são, em resumo, a percepção simultânea, a fusão e a visão estereoscópica.
Nesse sentido, talvez pudéssemos dizer que para Beckett a versão poética em francês era produto de uma visão binocular que cooptou o pragmatismo descolorido do inglês através da estética expressiva da língua francesa, gerando assim uma binocularidade essencialmente beckttiana: afinal de contas, ceci cessait não é muito mais bonito e elegante do que all this stopped?
Bion (1962, p. 54), como sabemos, foi o introdutor do conceito de visão binocular em psicanálise ao tentar resolver as contradições implícitas na teoria da consciência como órgão sensorial da qualidade psíquica, proposta por Freud. Ao sugerir que a proliferação de elementos- produz uma barreira de contato que determina, concomitantemente, a separação de qualidades conscientes das inconscientes, Bion nos disponibilizou um acesso privilegiado à gênese de duas funções cruciais do funcionamento psíquico, a decorrelação e a de auto-observação. Por isso mesmo, no entanto, ele nos alerta que “o registro imparcial da qualidade psíquica do self fica comprometido, (já que) a visão de uma parte pela outra é, por assim dizer, ‘monocular’”.
Depois dessa formulação, Bion sentiu-se possuidor de um potente instrumento de observação do desenvolvimento emocional, levando-o a recomendar a absoluta necessidade, ao longo de uma análise, de ajudarmos o paciente a utilizar a sua visão binocular para integrar suas vivências pré e pós-natais, seu endoesqueleto com seu exoesqueleto, suas percepções infra-sensoriais com suas percepções ultra-sensoriais, em suma seu Soma e sua Psique. Aliás, a esse respeito Bion nos sugere um belo modelo para entender o duplo trânsito entre estas duas áreas, o qual ilustra como uma desintegração somato-psicótica7 cede lugar a uma integração psicossomática: usando as pinturas feitas numa tela de vidro por Picasso (1956/2003) e os dois diferentes vértices de observação, o do próprio pintor e o do cineasta que o filmava de frente, é possível acompanharmos a inversão especular da imagem e assim ecoar a inversão permanente entre o sensorial e o psíquico na visão humana do mundo.

4 . Existirin-existir
A nostalgia das “velhas palavras” nunca deixou de assombrar Beckett. Poderíamos entender esse sentimento como expressão de sua certeza de ter nascido com uma mensagem clara ao mundo, passível naquele então de ser tão-só vagida, já que impossibilitada de ser proferida. Sim, porque, ouvindo Beckett proliferar seu lamento variado sobre o tema único do nada, é difícil não acreditar que esse grito de alerta já não estivesse presente ao nascer:
A expressão de que não há nada a expressar, nada com que expressar, nada a partir do qual expressar, nenhum poder para expressar, nenhum desejo a expressar, junto com a obrigação de expressar (Disjecta, 1949).
Nada a fazer (Fala inaugural de Estragon, Esperando Godot, 1952).
Não ter sido enganado é o melhor que me terá ocorrido, o melhor que terei feito, ter sido enganado, querendo não ser, sabendo ser, e não me enganando de não ser enganado (O inominável, 1953).
Pois não saber nada, não é nada, não querer saber nada também não, mas não poder saber nada é por aí que passa a paz, na alma do pesquisador incurioso (Molloy, 1963).
É possível conjeturar-se que Beckett refira o “ter sido enganado” ao fato de ter nascido sem consulta prévia ou ao fato de ter tido um nascimento incompleto.8 Sua visão cética em relação ao nascimento fica bem expressa na construção do neologismo wombtomb, de nítida inspiração joyceana e que condensa o espanto de Vladimir emEsperando Godot, diante da trajetória inexorável que catapulta o ser do útero para o túmulo. Foi assim, que junto com Sébastien Chamfort, por quem nutria afinidades de alma-gêmea, Beckett chegou a cunhar esta máxima cortante: “Viver é uma doença que o sono suaviza a cada dezesseis horas de modo paliativo: a morte é o remédio”.
Paul Sheehan (2000, p. 12), discutindo os Texts for nothing de Beckett (1967), alerta-nos que a “vacuidade da inexistência” seria o desejo fútil e inatingível de “nunca ter existido”, tentando impor-se ao “já não existir” mais modesto da não-existência. É interessante observarmos em Beckett um padrão de “ameaça expectante”: do mesmo modo que a partida tem seu fim anunciado, mas nunca consegue terminar, que Malone descreve interminavelmente sua morte, mas “esquece” de morrer, o próprio Beckett parece execrar sua existência, mas, ao cabo e ao fim, transforma seu sofrimento na matéria-prima de sua obra e, “numa curiosa combinação de Descartes e Schopenhauer, acaba subvertendo a máxima: choro, logo existo” (Souza Andrade, 2001, p. 47).
É curioso notar que no decorrer de suas obras Beckett e Bion não fazem qualquer referência explícita às formulações do outro, talvez por discrição ou mesmo por criptomnésia, mas o fato, no entanto, é que eles exploraram os mesmos assuntos com notável semelhança. Darei um exemplo claro a esse respeito. Em diversas ocasiões, indagado sobre a chave de acesso à sua obra, Beckett respondeu que ela seria encontrada em dois enunciados: “O zero é mais real do que nada” e “Onde nada vale a pena, nada deve ser desejado”.
O primeiro enunciado é encontrado em Murphy (1938, p. 138), obra inaugural de Beckett escrita provavelmente durante o período em que estava em psicoterapia com Bion. A frase em questão dizia:
Não a paz entorpecida de sua (dos sentidos) própria suspensão, mas a paz positiva que surge quando os algos (somethings) cedem lugar, ou talvez simplesmente são adicionados, ao Nada (nothing), este Nada do qual dizia gargalhando o Abderita9 que o zero (naught) é mais real.
Bion (1965, cap. 11), em linha com Platão, Kant, Berkeley, Freud e Klein, estava convencido de que uma cortina de ilusão nos separa da realidade, a qual, portanto, é desconhecida e incognoscível. Ele utiliza o signo 0 (evocando o zero matemático) para designar a realidade última de qualquer objeto, abarcando: a) Formas platônicas e os fenômenos que as evocam; b) A “divindade”, “deus”, e “suas“ encarnações e; c) A Realidade Última ou Verdade. Seu postulado é que a realidade não se presta a ser conhecida, mas somente a ser “existindo”: anseia, portanto, pela existência de um verbo transitivo “existir (ou ser)” a ser usado somente com o termo “realidade”. Só se pode “estar em uníssono” com 0 ou “sendo” 0.
Como depreendemos dessas duas exposições, o zero é um conceito fundamental para ambos, mesmo se reconhecendo que para Bion ele era um ponto de chegada, enquanto para Beckett constituía um ponto de partida.
O segundo enunciado caro a Beckett foi extraído de um aforismo de Arnold Geulincx, um seguidor de Descartes, por quem ele se encantou em Paris, formulado em latim: Ubi nihil vales, ubi nihil velis. Ressalte-se aqui o uso estratégico da palavra nihil, que com sua aura niilista remete-nos ao universo da desvalia e da falta de significado associados à impotência e à falta de desejo ou paixão (Stevens, 2005, p. 1-2).
Nesse caso, a correlação inevitável é com a recomendação de Bion de que o analista deveria abster-se positivamente de memória e desejo, de modo a desvencilhar-se dos fios de sensorialidade que acabariam por tecer a trama da cortina de ilusão, impedindo a dupla analítica de produzir uma transformação em 0.
Contrastemos brevemente as perspectivas existenciais do homem na visão de nossos autores. In terra bionensis, os habitantes são convidados a serem competentes “administradores da dor psíquica”, levando-os a ter que enfrentar o sofrimento “se possível através da ciência, ou então, valendo-se de qualquer outro método disponível, inclusive a religião”, como Bion comentou algures. Além do mais, eles são esclarecidos de que o medo de morrer está ligado à vontade de viver: portanto, se o medo for excindido, o mesmo ocorrerá com a vitalidade, o entusiasmo e a criatividade, deixando a pessoa num estado de vazio aniquilador. Por isso, são orientados para se abrirem à multiplicidade de vértices (Bion, 1970, cap. 8) como única fórmula de agir (act) pensando o sofrimento, em vez de atuá-lo (act out).
Os personagens de Bion, apesar de não apresentarem sua perplexidade a respeito da própria existência de forma escarrada como os de Beckett, nem por isso deixam de se torturar em sua intimidade com seus dilemas, abordando-os de vários vértices:
Padre: [dirigindo-se ao Psicanalista, P. A.] Você está sendo extremamente autocontraditório ao propor que ela [a psicanálise] é uma ciência e é verdadeira. Seria preciso que ela tivesse um ponto de referência fora de si mesma. Você não pode acreditar na Verdade mais do que lhe é permitido “acreditar em Deus”. Deus é…
Roland: ou não é.
P. A.: Não. “Deus é ou não é” não passa de uma formulação humana em conformidade com princípios humanos de pensamento. Não tem nada a ver com a realidade. A única “realidade”, da qual sabemos indiretamente são as várias esperanças, sonhos, fantasias, memórias e desejos que nos habitam. A outra realidade existe, é, gostemos dela ou não. Uma criança pode querer punir uma mesa que a tenha machucado após uma contusão. Mas ela pode desejar punir-se por “sofrer” uma contusão. Ela, em última análise, pode sentir-se compelida a acreditar que, além do mais, existe uma mesa que não é nem boa nem má, que independe de ser gostada ou não, ou de ser punida ou perdoada. Nós podemos decidir punir nosso Deus ou nos punir por acreditarmos “nele” ou “nela” ou “nessa coisa”. Isto não afetará a realidade que continuará a ser real, a despeito de quão in-pesquisável, in-cognoscível ou além da capacidade humana de apreensão seja o seu existir/não-existir.
A contribuição notável de Bion em relação aos mecanismos de mudança de vértices é fruto, basicamente, de sua experiência com psicóticos que o levou a perceber que a psique possui dois recursos poderosos para lidar com a “mudança catastrófica” (Bion, 1970, cap. 12) implícita no desenvolvimento emocional: a reversão de perspectiva e a visão binocular. Mesmo quando estes recursos falham, como na maior parte dos colapsos psicóticos, a psique ainda tenta organizar-se a partir de um amplo acervo de sintomas mentais, sendo a única e importante exceção oferecida por aquilo que Bion denominou de “supremo objeto não-existente”. Esse objeto é violento, voraz, invejoso, cruel, assassino e predatório, não respeitando a verdade, as pessoas e as coisas. Seu modelo operativo seria o personagem pirandelliano que, ao encontrar o autor e nascer, revela-se uma consciência imoral turbinada por uma determinação invejosa de possuir tudo aquilo que os objetos que existem possuem, incluindo a própria existência. Clinicamente, a psique que alberga esta condição parece entreter uma fantasia em relação a um objeto autocontraditório, que o obriga a existir minimamente com o intuito de poder sentir que não existe. A progressão desta situação conduz a um cenário descrito psiquiatricamente como “estupor catatônico”,10 no qual a psique fica aniquilada das noções de espaço e tempo e imersa num estado de não-emoção.
Um destaque especial deve ser dado à condição clínica de certas personalidades descritas por Bion (1959) como albergando um objeto interno que ataca qualquer tipo de vínculo entre objetos, ameaçando o narcisismo primário ao conferir realidade a objetos não-self. Nesses casos, as interpretações do analista podem ser tão minusculamente fragmentadas que o paciente teme adormecer e, durante esse período de inconsciência, sofrer uma drenagem da própria mente, mergulhando num estado de mindlessness.11 Tudo se passa como se o selfameaçado de eclipsar-se pela presença de um não-self poderoso resolvesse evadir-se deste “terror sem nome” (Bion, 1962, p. 116) através de um processo de auto-aniquilamento: ataca-se a percepção da angústia, não a sua origem.
Em Transformations (1965, p. 151), Bion associa a presença ou ausência de um objeto, sua existência ou não-existência, ao “desenho” que se possa obter dele, através da utilização geométrica de pontos e linhas: à não-existência do objeto, reage-se com depressão. Por outro lado, o estado do objeto, se ele está íntegro ou fragmentado, se é objeto total ou parcial, depende de sua condição aritmética, se ele constitui uma unidade ou frações da unidade: no caso do fracionamento, o sujeito reage pela mobilização de ansiedades persecutórias.
In Terra beckttensis,por sua vez, os recém-nascidos são prontamente vacinados contra a potência, o êxito e a esperança. Em 1956 Beckett, numa entrevista ao New York Times, declarou: “Eu lido com a impotência, a ignorância. Parece haver um tipo de axioma estético de que a expressão é realização. Acho que hoje em dia aquele que presta a mínima atenção na sua própria experiência descobre a experiência de um não-conhecedor, um não-pode-dor [uncanner], aquele que não tem como, não pode. O outro tipo de artista, o apolíneo, me é completamente estranho”12 (cit. in Souza Andrade, 2001, p. 186-187). Um pouco antes, ele dissera: “O herói kafkiano está perdido, mas não é espiritualmente precário, meu povo, no entanto, está caindo aos pedaços. Ao fim da minha obra, não há nada a não ser o pó, o nomeável. Em meu último livro, L’innomable, há uma desintegração completa. Nada de ‘eu’, nada de ‘ter’, nada de ‘ser’. Nada de nominativo, nada de acusativo, nada de verbo. Não há meio de ir adiante.13 A última das coisas que escrevi– Textes pour rien– foi uma tentativa de escapar da atitude de desintegração, mas falhou.” (cit. in Souza Andrade, 2001, p. 186).
Em Dream of fair to middling women (Disjecta, 1983), o personagem Belacqua, tomado emprestado de Dante, passa longas horas na cama curvado, sozinho no escuro, pensando no melhor método de anular sua existência ou imaginando o livro que escreveria, no qual iria “… expressar silêncios com mais competência do que jamais homem algum teria feito reluzir as borboletas da vertigem”.
A descrição da “zona escura” da mente de Murphy pode ser tomada como ilustrativa do espaço interior caótico no qual os personagens de Beckett vão mergulhando de modo inexorável:
Um fluxo de formas, uma perpétua junção e disjunção de formas… nada além de formas porvindo e se desintegrando em fragmentos de um novo porvir, sem amor ou ódio ou qualquer princípio de mudança inteligível. Aqui nada existia além de comoção e formas puras de comoção. Aqui ele não era livre, mas um grão de pó no escuro da liberdade absoluta. Ele não se movia, não passava de um ponto na geração incessante e incondicionada, bem como na extinção, da linha (Murphy, p. 65-66; tradução livre do autor).
Stevens (2005, p. 18), ao comparar a noção de “nada” em Bion e em Murphy, comenta que, “como os vínculos com outros seres humanos são vividos como impregnados de crueldade e pavor, ele é levado a uma idealização de um estado de não-sentimentos, não-ligações, não-pensamentos, e a uma necessidade de encontrar um continente inanimado (a cadeira de balanço) e um espelho que não enxerga e não sente (Mr. Endon)”, ou seja, o protagonista de Film repete literalmente vários dos conflitos de Murphy.

5. Epílogo
Em resumo, a obra de Bion qualifica-o como o expoente maior da capacidade negativa no campo psicanalítico, enquanto a obra de Beckett o credencia como o grande rapsodo da incapacidade positiva.
Um aspecto fundamental a ser assinalado é que, numa leitura superficial, ambas as obras parecem ter ignorado a sexualidade, mas, a meu ver, esta é uma interpretação equivocada. Talvez fosse mais verdadeiro imaginarmos que, cônscios da esterilidade dos esforços humanos para combater a morte, a suprema ausência (de vida), eles pintam a fertilidade com tons sóbrios, remetendo-a à sua mera condição coadjuvante.
Anzieu (1992, p. 29), a partir da leitura de um curto texto de Beckett escrito em francês em 1969 e denominadoSans (“sem”), faz uma aguda observação de que este termo é homófono de sens (“sentido”) e de sang (“sangue”), palavra praticamente ausente da obra beckttiana. É verdade que suas escassas referências à sexualidade ressaltam ou a degradação da mulher, presente já em sua poesia inaugural, cujo título, na tradução de Paulo Leminski, ficou Prostitutoscópio (1930) ou sua desvitalização mecânica como exposta em Malone Morre (2004, p. 109), em que Macmann “se esforça para fazer seu sexo entrar no da parceira como quem tenta enfiar um travesseiro numa fronha, dobrando-o em dois e empurrando-o com os dedos”– levando-o a concluir com desalento que “dois é companhia”.14
No período epistemológico da obra de Bion, a sexualidade fica condensada de modo abstrato em torno da configuração continente-contido (), mas, na trilogia, ela sofre ondas sucessivas de encarnação nos fatos da vida real como, por exemplo, no latejar sanguíneo de Alice ao excitar-se através do contato carnal com Rosemary.
Film nos permite acompanhar a progressiva restrição da visão (visão binocularvisão monoculargrau zero de visão) e, paralelamente, uma escalada de negativização da condição social, da sexualidade, da memória, da identidade, das funções corporais e mentais. Na medida em que o self vai deixando de ser percebido e de perceber-se, ele vai extinguindo-se e sua sobrevivência vai sendo acompanhada pela checagem do próprio pulso: o sangue fica reduzido assim a um mero sinal vital.
Tanto Bion como Beckett potencializam suas visões de mundo a partir de indagações existenciais essenciais: “Como pensar o impensável, como nomear o inominável, como conhecer o incognoscível (O “nada” ou 0)? “Suas formulações argutas nos ensinam que o existir é indissociável do inexistir, que a coisa implica na não-coisa, que a positividade emerge da negatividade.
Beckett, como Schopenhauer, persegue o “paraíso perdido da não-existência” e proclama, com orgulho, que sua obra, ao contrário do work in progress de Joyce, contenta-se em ser um simples work in regress.
Bion, como Milton, busca a potência da forma no “infinito vazio e informe”.

Referências
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Endereço para correspondência
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho
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