ENQUANTO AGONIZO - PARTE IV


Mais dois monólogos do 

ENQUANTO AGONIZO.

SALA CARLOS CARVALHO
CASA DE CULTURA MARIO QUINTANA
QUINTA & SEXTA
21 HORAS


DESDÊMONA
Já não sei quando morri. Achei que tinha morrido antes, quando meu corpo me deu sinal disso. Ali naquela cama gelada, marcada pelo peso do  corpo sem vida, meu corpo também sucumbiu sentindo a noite que eu tanto gostava de admirar, a lua e as estrelas pesando sobre mim, pilares inabaláveis.  O meu irmão perdido em seus pensamentos, minha mãe, ela, e o outro, todos ali, divididos. A gente é metade. Todo mundo sempre é metade de alguém que a gente não conhece. E quando conhece, preferiria não ter conhecido. O si mesmo é insuportável quando encontra o eu, aqui, agora. Sempre agora, morto agora. Meu corpo agora. Filha sempre, assassina agora. Assassina sempre. Morri não sei quando. Quando nasci. Quando.


CLEIDE
Ele me tirou e me deu dinheiro. Eu sabia para que o dinheiro deveria servir. Deveria servir para me tirar do mesmo lugar. Do mesmo ponto, da mesma vida. E o mesmo deveria servir para a bolsa, para os sapatos. Ele me dizia que quando estivesse muito usado eu deveria consertar. Mas nunca deu tempo de usar até o fim, até ponto de não ter mais nada, de jogar fora. E o dinheiro servia para colocar outro no lugar. Ou andar descalço, caso quisesse continuar. E mesmo serviu para o paletó e as calças que serviram no morto. Terno cinza com risca de giz, um Armani que fiz questão de colocar. Por respeito, gratidão e admiração. Era grande a indignação pelo desperdício. Mas o fiz como minha mãe me ensinara que meu pai faria se eu o tivesse conhecido. Conhecido o pai que não conheci, que imaginava de terno na missa de domingo e nas noites de serestas nos bares com cadeiras na calçada. Meu pai boêmio, ser noturno e nunca conhecido. Um dia deitou com minha mãe e foi embora no amanhecer. Uma mancha no lençol foi a marca do meu nascimento. Um mancha que foi suprida, desenhada e rescrita com o casamento, Dinis, José Dinis, pai, como a restituição da família,  da dignidade que nunca tive. Vesti o morto com o melhor terno que pude comprar. E fui descalça ao velório. Pés no chão. Resgando a carne por dentro. Rasgando tudo. Rasgando o dinheiro que ele me proporcionou. Rasgando.


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