RADIO NOTURNUS


- Alô amigo, aqui Oduvaldo Coutinho sua voz na madrugada. São três e meia da madruga e a cidade está enlouquecida. Aqui dentro deste estúdio dá para escutar os ruídos de freadas e sons de latas se batendo, rasgando com terror da noite contemporânea. Minha voz transita a madrugada, nas ondas da pré histórias dos transmissores da AM. Estou aqui nesta ilha analógica em plena era digital. A única coisa digital neste estúdio são meus dedos. Minhas impressões digitais onde convergem milhões de sinapses que tocam um mundo insensível. Mundo que gradativamente não tem lugar para mim. Eu que já furei o Globo, já fui enviado da Folha de São Paulo, já estive na linha de fogo em Israel. Eu que quase nem estou aqui de tantas vezes bafejado pela morte e tentado pela corrupção. Alô, tem alguém aí, no outro lado da linha?

- Alô... tem alguém na linha?

- Seu Oduvaldo, porque o senhor tem pena do senhor mesmo?

- Não tenho pena de mim não meu filho.

- Por que o senhor chama todo o mundo de meu filho?

- Porque sou pai. Porque quando tu nasceu, eu já estava aqui, e você que é tão esperto, se acha tão esperto, não faz nem idéia do que eu vive quando você usava fraldas, quando você nem tinha nascido. Além do mais, tenho uma filha linda, de quinze anos que mora com a mãe em Brasília. A mãe é poderosa e faz parte da equipe de governo. Ela sempre esteve no governo e eu sempre contra. E agora, minha filha veio passar uns dias aqui comigo. Depois de muitas lutas judiciárias finalmente abraçar a minha filha. Mas não é só por isso, não. É porque sendo pai e me tornei um ser social, um pai tem que dar valores para os filhos e valores é o que mantém o social. Então eu sou pai da minha filha e de todas as filhas, e também de todos os filhos e sou pai até mesmo de pais, porque filhos todos somos e todos temos um compromisso em cuidar que nossos filhos sobrevivam. Você ainda está aí?

Não, estão, alô, tem alguém na linha?Pode falar...

- Seu Oduvaldo, aqui é o táxi 2232 e fui assaltado. Estou aqui na Lomba do Pinheiro sem roupa. Botaram um três oitão na minha cara e levaram tudo.

- Como é o seu nome?

- Oscar da João Abbot.

- Seu Oscar, o senhor está bem? Pode ficar na linha um pouco?

- Acho que posso. Está escuro aqui.

- Não faça nada, você foi ferido?

- Não. Acho que não estou num lugar escuro. Muito escuro.

- Mas está vivo. Só um pouco, em dois minutos vamos resolver isso. (Muda o fone) Me passa a D.P..Alô, estamos no ar pela rádio Noturnus, 6200, quem é que está de Plantão, posso falar com o Delegado Moises. Alô delegado Moises, aqui Oduvaldo Coutinho, bem, melhorando sempre, quando tiver uma folga, estou no ar e na outra linha tem o Oscar é um taxista, ele sempre está comigo na voz da madrugada, e hoje ele foi assaltado. Lomba do Pinheiro. (Muda o fone) Alô Oscar, estou como Delegado Moises na outra linha. O que o senhor pode fazer para ele?

- Qual é a localização dele?

- Alo, Oscar, pode me dar o endereço?

- Posso.

- Estou anotando. Alo delegado ele está na Rua tal.

- Eu tenho uma viatura por perto. Deixa comigo.

- Alo Oscar fica tranqüilo que logo vai aí uma viatura. Conte para nós o que acontenceu.

- Eu fiz uma corrida do Cristal até a Lomba do Pinheiro. Eram três, eu estava reconhedo. Pouco antes de de Viamão pelo retrovisor que eles cochichavam. Então vi que estava perdido. Diz que ia parar no posto, mas senti o frio do 38 na nuca e uma voz dizendo: “segue”. Levaram 400,00 reais, meu relogio e meus tenis. E tiraram toda a minha roupa. Pedi para ficar de cuecas. O cara foi legal e deixou.

- Isso é o que passa um trabalhador na madrugada.

- Alô, quem fala?

- Seu Oduvaldo, meu pai está com 86 anos e não consegue caminhar. Estou precisando de uma cadeira de rodas. Será que o senhor pode dar um jeito nisso?

- Meu filho, se você quer um cadeira de rodas, liga para o Zambiazzi, aqui é a voz da madrugada. Aqui é o lugar dos desesperado, solitários, aqui é o reduto dos lobos da noite, dos animais que não se acostumaram com a luz.

- Alo. Seu Oduvaldo, é três e meia da madruga, e eu estou aqui sem conseguir dormir. Sabe que é. Eu tentei e tentei, mas tem alguma coisa que não funciona mais em mim. O senhor me entende? Coisa de homem, sabe como é. A patroa velha até que foi carinhosa, mas é brabo. Eu tento, mas o negócio não funciona.

- E a patroa velha quem é?

- A patroa? A patroa é veia.

- Mas como que tu quer levantar o pau se tu chama a tua mulher de patroa, mulher veia, o que é isso? Impossível. O que a gente fala é o que a gente é. Se tu está com uma mulher veia é porque tu é um homem veio. Vou te contar uma coisa. Todas as mulheres são belas, cada uma na sua idade, cada idade sua juventude. Anda vendo muita revista de mulher pelada?

- Mas ba! Cada mulher, heim? Agora o senhor me fale, existe mesmo aquilo tipo de mulher, com aquele peitos, aqueles braços, a bunda, o que é aquilo?

- Existe. Existe na fantasia. Aqui não é o mundo que a gente vive. A gente vive o mundo das barrigas e das celulites. Essa é a verdade, e tem mais, isso é belo. Enquanto ficar querendo aquilo que não existe não tem como fazer nada com a sua mulher. Alô tem alguém na linha?

- Alô, Seu Oduvaldo Coutinho.... (continua amanhã...)



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