DESEJO E CULTURA DO SAGRADO AO PROFANO

palestra apresentada no IDC segundo semestre 2010.

EM primeiro lugar para mim é uma honra estar falando de psicanálise para uma escola da filosofia. A tradição psicanalítica nunca será suficientemente grata a filosofia. Apesar disso, Freud fez questão de negar ter lido Nietzsche a o argumento era que não queria ser influenciado. Temos aí um ótimo exemplo de negativa que será um artigo nos anos 20. Em parte porque podemos considerar que a diferença entre a psicanálise e a filosofia seria análoga a existente entra matemática pura e a matemática aplicada. A psicanálise carrega esta característica de um pensamento posto em ação. Por isso não é recomendável que numa sessão de psicanálise de fale de psicanálise e sim se pratique psicanálise. A diferença reside num conceito traduzido por Wilfred Bion entre transformação em K, conhecimento, e transformação em O, ser. Ou seja, psicanálise se refere a um conhecimento que se transforma em ser. Este é o propósito central da análise, e visa produzir o momento de experiência emocional de modo a viabilizar que um conhecimento do sujeito se torne a carne do seu ser. Esta passagem precisa necessariamente atravessar a turbulenta zona de encontro entre duas mentes, no quentor da transferência, na cesura entre o sujeito e o outro. O conceito de cesura serve para pensar esta passagem, pois se refere a um transito entre o ser e ou não. Corte e cicatriz, cesura fala de ruptura e continuidade.

Todo este processo se realiza na intimidade e no isolamento da experiência emocional. A que se diferenciar também a análise da experiência pedagógica, pois não é possível fornecer análise a outro, não é uma transmissão de conhecimento, mas sim o desenvolvimento de uma capacidade de saber, capacidade de pensar e dialogar com o si mesmo. A capacidade analítica pode ser descrita como uma força poética capaz de lidar com a rudeza da vida real e produção de significado, sentido, história e paixões. Fica a ressalva de que tanto a tarefa do professor, como a do psicanalista e do político foram consideradas por Freud como profissões impossíveis pois não tem um fim predeterminado. O caminho do aprendizado verdadeiro, essencial e vital, tem a sua essência no âmbito do amor, amor a verdade, amor ao outro, amor ao saber e amor ao ser.

A psicanálise desde Freud tem supostos que foram afetados por conceitos diversos. Freud usou a idéia de pulsão para conceitualizar o inconsciente. Pulsão é um conceito limite, pois se situa entre o corpo e a mente e tem a função de produzir a própria idéia mente e a idéia de corpo. Foi um artefato criado para dar conta de uma origem. O uso de uma idéia para produzir outros pensamentos é uma das essências do pensamento e do inconsciente. O modelo freudiano tem uma raiz física e funcionaria em quatro tempos. Podemos imaginar que dentro do corpo, uma força pressiona para fora, busca uma saída, outra força reprime, um terceiro tempo, algo dessa força passa pela repressão, e num quarto tempo, uma parte do reprimido retorna. E assim Freud pensou na origem do inconsciente e como tal o teorizou. O conceito de pulsão foi classificado por Freud como a sua mitologia. Não deixa de ser interessante esta referencia, pois mitos são histórias sem fatos, e isso nos remete ao campo de imaginação e da criação. E por isso mesmo ele se referia as origens do pensamento para um lugar indecidível, incerto e indeterminado. Bion, por sua vez, usou um sistema aparentemente mais simples, porém toda simplicidade contém sua complexidade. Pensou no inconsciente em três tempos. Uma pré-concepção que busca uma realização para criar um conceito. Está aparente simplicidade contém o estranho paradoxo que sustenta a criatividade e o inesperado do humano que poderia se resumido numa fórmula matemática do tipo: 1 + 1 = 3. O mistério da criação sempre presente na dobras do pensar.

A psicanálise surge no crepúsculo, para usar uma palavra da moda, do século XIX sendo oficialmente reconhecida com o lançamento do livro A Interpretação dos Sonhos, livro editado em 1899, mas que saiu das gráficas com o ano de 1900 impresso na folha de rosto. Desta forma transforma-se não no último livro do século XIX, mas sim o primeiro do século XX, o alvorecer de novos pensamentos e novas vivências. A surpresa é que somente nos anos 60 surge uma teoria do pensar e foi preciso que Wilfred Bion a formulasse. Se o pensar freudiano se apoiou no desejo e na representação, foi aprofundado por Lacan na relação da falta. A falta produz o desejo e o desejo move o homem. Lacan fez uso da lingüística buscado aí uma ciência ideal. Para Bion o pensar se apóia no ideal de ciência que oscila entre a matemática e a biologia, mas que ao longo de seu desenvolvimento da teoria do pensar, evolui para uma poesis. Ao sustentar a idéia que o aparelho de pensar surge pela necessidade de lidar com pensamentos, mais do que uma resposta ele propõe outro enigma e a manutenção do mistério das origens. Num primeiro momento supõe a existência de pensamentos anteriores ao aparelho para pensar os pensamentos, sendo que a própria existência do aparelho para pensar dependia da existência prévia dos pensamentos. Ou seja, o aparelho para pensar surge para lidar com os pensamentos. Mais tarde ele vai problematizar esta questão colocando a indecidibidade da origem. O aparelho para pensar precisa de pensamento para funcionar e os pensamentos precisam de um aparelho para existir. A interação de conceitos, indecidibilidade – baseado no teorema de Goedel e a incerteza apoiada no princípio conceitualizado por Werner Heisenberg produziram no pensar psicanalítico uma expansão que impressiona pelas repercussões, uma vez que nos joga no infinito, incompleto de sistemas hiper complexos, caóticos, com os quais os humanos, esses macacos super inteligentes, tiveram que lidar. A idéia de inconsciente nos remete a pensar a negatividade como forma de apreender o subjetivo por outro viés. E estes princípios, incerteza, indecidibilidade, infinitude, incompletude, negatividade, subjetividade produzem uma universalidade que nos contem.

Tal complexidade confere sentido ao fato de que somente nos anos 60 se pode criar uma teoria do pensar dentro da psicanálise, pois a psicanálise depende de produções da cultura para submeter às ferramentas a fim de criar novos paradigmas. Freud usou os instrumentos que tinha na época. Melanie Klein teve sua nomenclatura psicanalítica influenciada pela corrida atômica, cisão, míssil, ataques, projéteis do mesmo modo que Jaques Lacan se apropriou da lingüística. O uso de ferramentas inespecíficas para determinado fim termina por criar novas finalidades. Temos aqui, mais uma vez a equação, 1 + 1 = 3. A junção de conceitos divergentes produz novos significados. Mecanismo análogo ao utilizado pela linguagem, a metáfora, onde uma palavra substitui a outra ou a metonímia, uma palavra contém várias outras no seu bojo conotativo. Para Freud seria o deslocamento e a condensação. Para Melanie Klein, identificação projetiva e a criação de um dentro-fora que reinventa a existência. De uma forma ou de outra estaríamos dando voltas a um mistério essencial que envolve a nossa existência.

O inconsciente para Bion é o inconsciente da pré-concepção. A idéia se apóia na suposição de que o sujeito humano desde o inicio teria uma expectativa da existência de algo com características grandiosas capazes de satisfazê-lo. O modelo da boca-seio. Supõe Bion que o indivíduo tenha uma pré-concepção inata do seio. E esta pré-concepção precisaria de uma realização para lhe dar significado. Porém, por trás deste seio, teria um casal criativo que sustenta este seio. Por trás desde casal criativo teríamos uma sociedade que sustenta este casal. E por trás desta sociedade teríamos uma mente criativa, poética e prática, capaz de sustentar o sujeito, e assim a idéia que se dobra assim sobre si mesma numa grande elipse criativa.

Este inconsciente se descola do conhecido na medida em que produz um conhecimento que se faz carne. Ou seja, a partir da pré-concepção a espera de uma realização para só então precipitar a produção do pensamento, temos um sistema indeterminado e potencial, um universo de possibilidades, fonte de um constante inventar. Na medida em que as realizações se sucedem passamos de um inconsciente indeterminista para o determinismo. Este breve espaço de potencialidade que se antecipa ao ser e passa a ser uma fonte da produção poética, justamente ali na essência, na indecidivel potencialidade que as forças caóticas se precipitam. O espaço analítico guarda esta relação de atrator estranho capaz a de precipitar a criatividade. Análise é como as áreas quentes de um céu azul para o qual as nuvens convergem para se precipitar em novas formações. E o calor da transferência marca o encontro entre as forças emocionais que conspiram para a produção do ser. O conceito de transferência repete um vinculo primordial, a história da relação conteúdo/continente do sujeito. Desta forma o sujeito se inscreve na cultura através do corpo materno que por sua vez é vetor do corpo social representado pelo pai. A mãe para exercer esta terrível tarefa de mediar o imediato, tem que carregar em sua mente o amor do pai e pelo pai, a fim de ofertar a idéia de um mais além. Bion chamou este processo por uma palavra insaturada: função alfa, abstração para representar aquilo que transforma o imediato em mediato. As impressões sensoriais em pensamento. E esta mediação é feita através do objeto psicanalítico. A pré-concepção, análoga ao conceito vazio, ao ser saturada pela experiência confere sentido, significado, sonho e história. A qualidade desta experiência determina um desvio para o narcisismo ou para o social-ismo. Temos ainda no objeto da psicanálise uma variável desconhecida que é M, more, algo mais além do previsto. Estas passagens albergam uma cesura. Algo que se transforma e algo permanecem como uma invariante.

Para Freud esta relação primitiva entre mãe e bebê foi marcada pela expressão: “sua majestade o bebê”. Dizendo de outra forma, o bebê é reverenciado. Reverência quer dizer “tornar alguém importante”. Também fala de respeito e consideração. Veneração às coisas sagradas. Temos ai, o sagrado no cerne do ser e na essência da relação.

Reverência deve ser diferenciada de temor reverencial. Quando a capacidade de pensar cessa ou falha resultado do colapso da relação mãe-bebê, todo este sistema de construir um vínculo a partir de reverência se transforma num sistema de terror, medo e catástrofe emocional. Neste estado a curiosidade genuína é substituída pela curiosidade mórbida. A capacidade de aprender pela arrogância, e o afeto substituído pela estupidez que é o mesmo que falar burrice e estreiteza mental. Quando estamos frente ao temor reverencial estamos no olho de uma catástrofe tanto maior quanto maior o temor reverencial.

Aqui então busco um ponto de convergência entre o profano e sagrado e a psicanálise. A dicotomia entre profano e sagrado remete a clássica oposição entre Dioniso & Apolo, Ciência & Arte. O sagrado corresponde a uma realidade tomada como perfeita, divina e dotada de poderes superiores aos humanos. Trata-se de uma perfeição paradoxal, pois o contato direto do homem com o sagrado o absorve, engloba e some engolfado. Suscita respeito, medo e reverência. O sagrado está também relacionado com um objeto sagrado que permite a ligação com o divino. E por isso mesmo se refere ao desconhecido essencial. Essa função de ligação remete a função alfa de Bion e ao resultado do processo de humanização que é a historicidade. A história dos objetos psicanalíticos, a história da relação continente/conteúdo, é o retrato da alma do sujeito, o caminho percorrido pelo desejo e expressão máxima de subjetividade. Se o profano no seu caminho extramuros carrega o terror e o fascínio, também resiste com resquício histórico do sagrado. A cesura une o sagrado e profano superando o hiato que longe de ser uma ruptura e uma separação, é marcado por uma descontinuidade/continua ou uma continuidade/descontinua. O histórico não relacionado aos fatos, mas a um estado emocional que vincula, que se forma como uma narrativa sem história ou como personagens sem trama e por esta via, faz a transição entre o profano e o sagrado, superando a ambos ao construir um entre. Para Freud a identificação é o elo mais primitivo que um ser humano pode ter e que o ego é a história dos nossos amores perdidos. Isso significa pensar que o resultado é um conjunto de objetos interno originado na relação primitiva com a mente materna e de objetos do self apreendidos ao longo da vida no corpo social. O conjunto de objetos se plasma no âmbito dos mitos, dos sentidos e das paixões servem como o elo que marca a transição entre o profano e o sagrado. Shakespeare afirmou que há mais mistério entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia. Freud sustentou que havia mais continuidade entre a vida uterina e extra-uterina do que a impressionante cesura do nascimento nos faz crer. Bion por sua vez escreveu que havia mais continuidade entre quanta autonomamente apropria­das e as ondas de pensamento consciente e sentimento do que a impres­sionante cesura da transferência e contratransferéncia nos fariam acreditar. Por isso, a investigação se produz no transito, na cesura: não no analista, nem no analisando, não o inconsciente, não o consciente. Não na sanidade, nem na insanidade. Mas sim a cesura, o vínculo, a sinapse, a (contra-trans)-ferência-tranferência,o humor transitivo-intransitivo. Com isso podemos supor que há mais continuidade entre o sagrado e o profano do que supõe nossa vã filosofia. Talvez por isso, os primeiros registros humanos falam de um homem teatral que habitava as cavernas e desenhava o corpo humano sob peles, garras e movimentos animais. Sob peles de animais mimetizam danças e movimentos mágicos num misto de desejo e religiosidade, sagrado e profano que ganhou importância histórica no teatro. Na encruzilhada entre o sacro e o profano o homem teatralis opta por Dioniso. A psicanálise, para ser coerente com sua história, deveria buscar o dionisíaco também. Psicanálise como elo para o futuro homem que habitará o planeta nos próximos séculos e precisará dela para se manter humano.

A história do teatro é um exemplo deste descolar continum da religiosidade para o profano e mantém submersas as características de um e de outro. Há muito de religiosidade no teatro, de transcendência e rito. E há muito de teatro na religiosidade.

Para encerrar quero contar uma pequena história que pode ser uma espécie de insígnia das coisas que tenho tentado falar aqui hoje. Bion se analisou com Melanie Klein com a qual preservou uma relação criativa sem idolatria. Provavelmente ele criou boa parte de sua obra verificando as pequenas rupturas do pensamento dentro da obra de Klein. Em uma palestra proferida em São Paulo ele afirmou que Melanie interpretava intensa e sucessivamente com o intuito de provar a acuracea de suas teorias. É bem plausível que deste tipo de experiência, Bion tenha extraído a sabedoria que se tornou um tanto conhecida para os estudiosos da psicanálise. Trata-se do estado emocional necessário para a observação de um fenômeno e conseqüentemente para a produção do pensamento, qual seja a negatividade. Bion sustentou que a observação deve ser feita sem memória, sem desejo e sem necessidade de compreensão, o estado da mente que sem o qual ficaria alterada a observação do objeto. O analista, ou pensador, que se encontra tomado pela memória estará vendo o passado no lugar do presente. Se ele estiver tomado pelo desejo terá sempre o futuro a obstruir a observação. E dispensar a necessidade de compreensão não é pregar a ignorância, mas evitar a busca ansiosa de uma resposta que serviria apenas para aplacar a ansiedade do analista e do paciente sem o tempo essencial para a descoberta, a experiência, a imaginação e a criação. Em sua última sessão com Sra. Klein, Bion perguntou depois de um longo processo percorrido pelos dois:

- Afinal, Sra. Klein, o que é análise?

Ao que Sra. Klein respondeu:

- Em suas mesmas palavras, Dr. Bion, uma pré-concepção em busca de uma realização.

Espero que uma pequena realização tenha se processado hoje, aqui e agora.

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