ÉTICA E IDENTIFICAÇÃO NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO: VIOLÊNCIA E PERVERSÃO NA INTERNET
Trabalho apresentado no Centro de Estudos Psicanaliticos de Porto Alegre 2006
Júlio Conte
A Internet fez uma revolução no mundo da comunicação possivelmente do mesmo calibre que a criação do papiro e a invenção da prensa por Gutemberg. O telégrafo, o telefone, o rádio, a televisão e o computador prepararam o terreno para esta impressionante integração de capacidades. A Internet é, de uma vez e ao mesmo tempo, um mecanismo de disseminação da informação, divulgação mundial e um meio para colaboração e interação entre indivíduos, independentemente de suas localizações físicas, raciais, sociais, políticas, ideológica ou geográficas. Essa rede também estabelece uma analogia com o mundo mental na medida que se realiza num espaço virtual e tem a mente e os bytes como residência. Sendo que o mundo psíquico é um mundo essencialmente não sensorial temos neste encontro do sujeito psicanalítico com o sujeito contemporâneo conectado, uma dobra do ser sobre si mesmo que não tem proporção na história da humanidade. Comunicações on-line, o chat, a troca de palavras, imagens e sons, afetos e emoções tudo em tempo real era objeto de ficção até pouco tempo atrás. As conseqüências dessa vertiginosa ampliação ainda é e será objeto de investigação do ser humano e dela deveremos nos ocupar ainda por um bom tempo.
A origem da Internet remonta aos anos 60. Época da Guerra Fria entre as duas potências mundiais, os EUA e a União Soviética. O mundo fraturado por ideologias, por políticas divergentes e na eminência de uma catástrofe nuclear. Neste universo de luta e fuga, o maravilhoso e paranóico mundo dos anos 60 criou as condições ideais para a produção florida de tendências que balizaram o homem contemporâneo. Dali surgiram inovações sociais, culturais, filosóficas e tecnológicas. Entre estas a manipulação de dados eletrônicos empurrados por iniciativas militaristas.
No Ministério da Defesa americano, estudava-se meios de como melhor proteger os importantes dados militares. A preocupação era não perder informações e ao mesmo, sob um ataque inimigo, dados não deveriam ser destruídos. O mundo da espionagem se associava a crescente importância da informação, cada vez mais sob códigos de acesso restrito. Assim, uma solução viável seria a criação de uma rede eletrônica de dados, protegidos e armazenados em diversos computadores, distantes uns dos outros. Para que este sistema funcionasse era necessário que sempre que houvesse alguma modificação, os dados fossem rapidamente atualizados em todos os computadores. Desta forma, a rede continuaria funcionando mesmo que um computador ou alguma via de comunicação fossem destruídos.
A ARPA, Advanced Research Projects Agency, integrante do sistema militar americano, foi quem colocou em prática tal projeto. Por isso, nos primeiros anos, a rede foi chamada de ARPA-Net. No final de 1969, foram conectados os primeiros quatro computadores ao ARPA-Net. Três anos mais tarde, já eram 40.
Para nos situarmos no tempo, 69, um homem chamado Neil Armsgtron pisa na lua pela primeira vez; a Califórnia fervilhava com a Era de Aquarius, com o Flower Power e o LSD; os Panteras Negras lutam por igualdade racial e manifestações contra a Guerra do Vietnã se proliferam, Jimi Hendrix toca em Monterey e um pequeno Festival de Rock toma proporções inimagináveis num vilarejo chamado Woodstock. . No Brasil, vivíamos o período Médici; João Saldanha, reconhecido comunista, era técnico da seleção brasileira que buscava o Tri campeonato do mundo no México. Foi derrubado porque disse que Pelé era míope. Everaldo era o único gaúcho selecionado uma vez que o zagueiro Scala do Inter fora cortado por lesão. Roberto Carlos liderava o Globo de Ouro, e no ginásio da brigada militar, aos sábados à noite, tinha lutas de telecath, onde brigadianos com roupas estranbólicas imitavam super heróis em lutas de cartas marcadas. Havia guerrilha urbana e Carlos Marighela foi assassinado na Alameda Casabranca. Desde o final dos anos 60 até quase o inicio dos anos 80, o mundo inteiro, em especial os paises então ditos de Terceiro Mundo, tiveram investidas de movimentos de guerrilha, inspirados no modelo foquista usado em Cuba por Che Guevarra e Fidel Castro, sempre apoiados pelo grande império da China comunista e da extinta União Soviética. Estes modelos de guerrilha guardavam uma peculiar relação com o modelo da ARPA.net. O “aparelho” como era chamada dentro da guerrilha urbana, tinha um sistema que também visava a proteção de informações. Apoiava-se numa rede de forma ninguém tinha a orientação completa sobre a operação. Mas de forma análoga a ARPA.net, sabia-se qual o pedaço de orientação que cada um possuía, de modo que, quando alguém era preso, já se sabia quem, sob tortura, ele entregaria e em poucas horas o aparelho poderia ser desmontado.
O conceito de “Rede Galáxica" na qual computadores interconectados globalmente, pelo meio dos quais todos poderiam acessar dados e programas de qualquer local rapidamente já aparecia em memorando de agosto de 1962 no Instituto Tecnológico de Massachussets. Na prática carecia de unificação de protocolos de troca. Com a criação do protocolo TCP/IP, tornou-se padronizada, homogênea e global, formando o fenômeno mundial.
Durante as décadas de 70 e 80, só Universidades - inclusive universidades brasileiras -, centros de pesquisa e órgãos governamentais estavam ligados à rede. Mas os estudantes, que naturalmente faziam parte desta comunidade científica, logo descobriram a rede à sua moda. Criaram "quadros de avisos", murais de notícias tão comuns nas universidades, com o objetivo de combinar caronas, arranjar bicos, conseguir vagas em repúblicas, combinar viagens ou mesmo só para deixar recados ou opiniões. Foi assim que surgiu a Usenet, a precursora dos Newsgroups de hoje em dia.
Então temos essa dupla origem de um lado o utilitarismo militarista e de outra o interesse acadêmico marcaram essa origem.
Freud destaca já no emblemático e embrionário Projeto para Neurólogos, o fator comunicação ligado a relação primordial do bebê com a mãe. No vínculo com a mãe, na elaboração do prazer e da dor, o sujeito constituía a comunicação através do choro, da vaso-constrição e outras manifestações somáticas. A comunicação assim tinha sua origem, pelo viés da psicanálise, através deste contato boca-seio, pele-mucosa, leite-amor, e todas as manifestações produzidas pelo corpo e pela mente neste encontro. Bion nos dá conta da reverie na qual sentimentos de morte são projetados na mãe e nela permanecem o tempo suficiente para que possam ser devolvidos de forma mitigada, de modo que o bebê possa absorver e compreender o que está acontecendo. Quando a mãe faz isso por amor ao bebê e por amor ao pai estabelece o vínculo que nos humaniza. A mãe quando contém pai dentro de sua mente, conduz o bebê ao social.
Para Bion a identificação projetiva é a forma de comunicação mais primitiva e sua realização acontece quando o bebê produz na mãe sentimentos que ele não pode conter. Na medida que a mãe contem tais sentimentos cria um espaço mental e uma temporalidade. Cria um futuro na qual a carne joga um papel central num primeiro instante e cede lugar ao não sensorial, na medida que o sujeito se projeta no tempo futuro.
Bion trabalha com a idéia da pré-concepção e o inconsciente para ele é o inconsciente das pré-concepções. Isso significa dizer que para o sujeito a pré-concepção é uma expectativa vaga que no futuro existe algo, também vago, de características gratificantes, acolhedoras e grandiosas esperando. Porém, o encontro dessa pré-concepção com a realização nunca é plenamente satisfatório. Pois nos defrontamos com um objeto que nunca é tão gratificante, nunca é tão acolhedor e nunca é tão grandioso. A realização parcial na busca do objeto grandioso entra em desequilíbrio e produz um tumulto, uma turbulência emocional. Mas esta pré-concepção continua em busca de uma realização que a satisfaça. O indivíduo segue tentando alcançar o equilíbrio. Quando consegue alcançar um estado emocional relativo, chegamos ao que Bion chamou de conceito. A formulação do conceito de certa forma estabiliza o desequilíbrio. A complexidade da pré-concepção é que é uma expectativa de primeiro, encontrar um seio gratificante e acolhedor que pode satisfazer as necessidades emocionais e psíquicas e, segundo, a expectativa que por trás deste seio exista um casal sustentando este seio e, terceiro, por trás deste casal, exista uma sociedade protegendo a existência do casal, e mais ainda, uma quarta instância, que por trás desta sociedade existe uma mente criativa que é capaz de gerar pensamentos que sustentem uma sociedade mais protetora, mais gratificante, para que estes pais possam viver e para que este seio possa funcionar. Então a pré-concepção chega na mente criativa como se ela volta-se a si mesma. Como num looping autoprodutivo, o seio produz a mente criativa que por sua vez produz a pré-concepção do seio. Deste modo, a mente criativa é fonte de todos os processos do pensamento criativo e sua obra máxima é a criação do humano. A pré-concepção vai abrindo e criando objetos. Cria objetos em dois sentidos. Cria com objetos na direção do Narcisismo, objetos narcísicos, e no sentido que Bion denominou socialista, cria objetos Social-istas. Estes objetos garantem autonomia e relacionamento com esta sociedade que está tentando proteger o sujeito. Ente movimento vai ao social e volta então sobre si mesmo, devolvendo a pré-concepção o caráter criativo, o caráter de originalidade e de encontro com o desconhecido.
Sob a lógica das Transformações Bion faz uma importante integração das duas tópicas freudianas. Consegue aproximação quando liga o “tornar consciente o inconsciente”, da primeira tópica, com Transformações em K. Desse modo o sujeito conquista um saber sobre si mesmo e sobre o seu ser. Mas ainda estamos no plano teórico. Necessitamos outro tipo de transformação que vai lidar com este conhecimento. Então Bion, apoiado na máxima, “onde está o Id o Ego deve vir a ser”, cria a Transformações em O, quando o saber que o sujeito conquistou se transforma no ser. O sujeito se transforma naquilo que ele conheceu, se transforma naquilo que ele descobriu de si, transforma-se naquilo que é.
A psicanálise é a ferramenta do homem contemporâneo que integra o conhecer com o ser e, se não é mais eficaz, ainda não temos outra melhor. A transformação de impressões sensórias, de sentimentos em pensamentos através da linguagem é ainda o maior passo da humanidade já deu e advém da experiência emocional. Compreende num investimento vincular que radica no abandono das crenças em nome do aprendizado, da imaginação e da criatividade. Sendo que a criação é a criação do próprio humano Esse processo uma vez alcançado não garante permanecia, pois a adjetivação de humano é uma condição instável do homem conquistada a duras penas e pode ser perdida a qualquer momento.
Nesta articulação temos a reverie, alguém que sonha o outro alguém e outro eu mesmo, sonho do ser sonhado, o vínculo criando o social e o humano. Em “Como Tirar Proveito de Um Mau Negócio”, Bion, a partir do Princípio do Prazer e do Principio de Realidade de Freud, estabelece três princípios de vida. Primeiro, sentimento; o segundo pensamentos antecipatórios; o terceiro, sentimento, mais pensamento, mais Pensamento (com P. maiúsculo, que seria sinônimo de prudência ou previsão na ação.)
Então no encontro desse sujeito humano instável e com o sistema poderoso de comunicação que é a internet, temos dois pólos do suceder humano. De um lado o sujeito humano instável., capaz de conhecer a verdade social, mas pode perde-la, e de outro, o sistema de comunicação, também instável pois, anônimo, não possui em si a capacidade de reconhecer a verdade.
A internet oferece ao sujeito contemporâneo toda a sorte de informação, de forma indiscriminada, caótica e sem censura. É um grande buraco negro. Cada vez mais nos encontramos dependentes dela e cada vez mais faz parte do cotidiano. Adultos consultam e-mails diariamente, mesmo quando a Caixa de Entrada contenha apenas spams. Adolescentes pendurados no MSN horas a fio, numa polimorfa conversa com pessoas diferentes, sobre assuntos diferentes, em lugares diferentes. Chats são um caso a parte. Substituíram os bares e as antigas “cantadas”. São pontos de encontro, contato e conhecimento. E não podemos nos iludir que o fato de estarmos frente a uma máquina torna a relação impessoal. Nada disso, o fato de estarmos lidando com a escrita, junto com o outro, na mais perfeita solidão, favorece a expressão dos sentimentos com mais ousadia e veracidade. Pois estamos livres das inibições que o corpo e a presença física e a imediatismo produzem. Estamos a sós com a nossa fantasia e temos tempo para escolher as palavras.
Isso não impede que situações inusitadas aconteçam. Certa feita, escrevia uma peça sobre a Internet e tomei contato com uma história ocorrida no Japão. Um homem conheceu uma mulher pela Internet. Ambos casados, infelizes. Comentavam as tristezas dos casamentos de cada um. Destas confissões surgiu uma intimidade e logo um apaixonamento. Quando se encontraram descobriram que eram de fato marido e mulher. A mulher que ele se queixava era a mesma para o qual ele se confessava. E vice versa. Resultado: separação judicial com direito a processo mútuo.
Sexo virtual se tornou um hábito do mesmo modo que a exposição dos atos uma praxe. Muitos dever ter recebido cópia dos e-mails eróticos trocados entre um modelo e um diretor de programa da TV Globo. A modelo, por vingança, expôs para o Brasil as fotos de diretor em jogos masturbatório dos dois.
Não é difícil constatar que homem deste século ainda vive um sistema masturbatório que visa o manejo onipotente e maníaco dos objetos. A masturbação é um modo de controlar e subjugar o objeto sem necessidade de presença. É uma forma de onipotência que nega a dependência e nega o afeto, negando o vínculo. Esse controle onipotente passou a fazer parte integrante da vida sexual do homem contemporâneo e a tecnologia sustenta a ilusão.
Outro ponto importante para pensar é a mentira. Os hoax que significa literalmente "embuste" são mensagens de conteúdo alarmante que utiliza a boa fé das pessoas para se reproduzir, sendo esse o seu único objetivo. É considerado um vírus social. Hoje o termo viral associado a fenômenos de comunicação se insere dentro da pós-modernidade. É uma rapidíssima disseminação de informações inicialmente relacionadas a sistemas de marketing, mas que evoluíram rapidamente para a disseminação de boatos potencializando um fenômeno que era original nas pequenas povoações. A fofoca, aparentemente banal, superficial e até supostamente divertida, é um fenômeno complexo e ganha proporções inusitadas dentro da cultura do cyberespaço. O lançamento de boatos, sem preocupação com as conseqüências é uma manifestação violenta do sadismo e da destrutividade. Claro que a fofoca não é criação da Internet. É algo que sempre existiu. A diferença é a potencia.
Quando morava no interior, uma pequena vila na serra, havia a figura da fofoqueira. Era uma viúva hirsuta e obesa que falava da vida de todos. Quando entrava na sacristia para falar com o padre, a comunidade tremia. Os casados que quisessem freqüentar o cabaré perto do cemitério, que não passassem perto de sua casa. A questão é que ali, na vila, o produtor da fofoca era conhecido. Com a internet e com a potencialização da comunicação viral, temos o fofoqueiro sem nome. E todos nós somos pequenos fragmentos da velha fofoqueira espalhando e disseminando vírus sem nos preocuparmos com o outro. O vídeo da Cicarrelli está aí para provar a minha tese.
Isso acontece porque a curiosidade é um dos atributos mais importantes do ser humano. Impulso epistemológico é a essência de Édipo, o investigador que vive dentro de todos nós. A busca da verdade pode ser o encontro com a essência do indivíduo. Porém, na falha da função alfa nos defrontamos com uma catástrofe emocional. A curiosidade muda de sinal, torna-se mórbida. O sujeito não busca o saber que o transforma, mas o prazer sádico e voraz. É a mesma curiosidade que faz as uma pessoa assistir vídeos macabros, acidentes com mutilações, sexo com animais e impede de usufruir um prazer estético de uma obra de arte ou um estudo científico.
Retomando a questão da pré-concepção observa-se que a mente criativa que deveria conter a oferta de satisfação social oferece ao indivíduo uma promessa de gozo que não tem condições de sustentar. A rapidez, a fugacidade, a banalização caracteriza uma falha na reverie, uma pulverização do tempo, um casal que não se ama, uma sociedade incontinente, uma mente repetitiva.
As informações que anteriormente eram sustentadas pela paranóia militarista ou pela curiosidade acadêmica encontra-se diluída num mar de informações confusas e discordante. A complexidade joga um papel que não corresponde à possibilidade de encontrar o fato selecionado que daria coerência aos fatos. O caos dobra-se sobre si mesmo e não atinge o seu limiar, e não encontrando este ponto, aborta as chances de integração. Temos então um mar de escombros, de parcialidade e de fragmentação. O campo auto-erótico se configura na ausência de um sujeito integrador. Este conjunto propícia a fragilidade de uma moral e de uma ética.
Neste espaço onipotente, sem nome, sem rosto e sem amor, nasce o terrorismo. O terror sem nome. As características bélicas da Internet retomam sua força e sua violência. E pode ser realizada apenas por um sujeito. Um adolescente briga com a namorada e coloca as fotos dela nua na rede. Brigas de torcidas são organizadas em sites de relacionamento. Tiros e mortes orquestradas sob os olhos do mundo. Racismo e preconceito tornaram-se rotina. Qualquer um que tem um computador e uma banda larga pode ser um homem bomba. Sexo é a matéria mais assistida na rede. Pornografia infantil é criticada, mas continua a se proliferar. No que nos transformamos? Imagens eróticas e bizarras, fofocas e maledicência constituem uma droga poderosa e, usando, estamos sustentando o trafico. As infovias, os hotspots, a banda larga, transformaram o mundo na vila da minha infância onde todos sabem de tudo. Só que agora a fofoca se realiza sem fofoqueiro. A relação vincular é o que nos humaniza, é uma conquista pois cria o laço social, a identidade, mas é também uma realização precária e uma utopia, pois, como já vimos, não é estável. E podendo se perder a qualquer momento, a humanidade também pode ser extraviada no caminho. Está na alma humana. Ao contrário humano demasiado humano, na maioria das vezes no encontramos aquém do humano. E nada mais humano do que isto.
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