PRO-LOGO MEMORIA DO FUTURO DE W.R.BION


Estou cansado. Um dia repleto de atividades sem ter programa para a noite inteira já basta. De qualquer maneira, não me lembro do que aconteceu. Foi alguma coisa sobre a reversão de perspectivaEu estava escrevendo algo sobre ela. A vantagem de lançar mão de vértice, um termo matemático, é que isso torna possível conversar com lunáticos que ficam confusos quando se diz coisas como "do ponto de vista do cheiro". É simplesmente exasperante topar com um sujeito que te interrompe, dizendo: "Meus olhos não cheiram" ou "Meu cheiro não consegue ver nada". Mas também não ajuda nada eu ficar me exasperando. Suponha que esses vértices, é disso que estamos falando, sejam separados e distintos, e que os dois possam contribuir para uma har­monização, como numa visão binocular. Suponha que eu tenha uti­lizado meu trato alimentar como uma espécie de telescópio. Eu po­deria entrar lá por baixo, pelo cu, e olhar pra cima e ver a boca cheia de dentes, as tonsilas, a língua. Ou correr para a extremidade mais alta do canal alimentar e ficar sacando qual era a do meu cu. Diver­tido mesmo, hein? Ia depender de como meu trato digestivo iria se sentir comigo zanzando pelas tripas, pra cima e pra baixo, a noite inteira. Vai ver que foi por isso que eu passei uma noite tão ruim. Se fossem então, vértices separados e não mais distintos, mas coincidente? Isso aconteceria se um dos pontos, que era separado e distinto, corresse arco abaixo para encontrar o outro, coincidente. Mas a julgar pelo que o vértice andou sentindo ontem à noite, seria mais como o som viajando atra­vés de tubos retorcidos. Ontem à noite os vértices não estavam sendo nada respeitáveis; estavam muito mais parecidos com peidos e arrotos percorrendo de cima para baixo os canais alimentares. Se isso é respeitável ou divertido dependeria de qual vértice, ou de quem ou do quê estaria nele. Mas, aqui e agora, não sei nada a respeito. Se eu estivesse lá, em companhia da pessoa com quem desejo me comunicar, poderia apelar a ela para que visse a evidên­cia que sou incapaz de formular, mas sobre a qual desejo montar minha estrutura. Esta é a grande vantagem da prática da psicanáli­se sobre qualquer outra coisa mais abstrata como teatro por exemplo na qual vocês ficam ai sentado vendo uma história que não aconteceu e eu vivendo aquilo que não foi bem assim. Mas a psicanálise e o teatro tem em comum que ambos não sabem, e tem em comum que ambos podem imaginar, justamente por não saberem. Também é um fato que, para mim, faz com que qualquer enigma acerca do desacordo en­tre paciente e analista, ator e personagem, entre palco e plateia, num encontro científico ou artístico, fosse um espécie de desacordo essencial. Reivindico que  isto é um relato fictício de psicanálise, nem Bion, nem Beckett viveram isso dessa forma. Foi um sonho artificialmente construído; tal condição onírica também é reivindica­da para pensar enquanto estamos acordados, num estado chamado de vigília, tanto quando dormindo e efetivamente sonhando. Pretende-se que essa hipótese seja levada a sério e seja aplicada com toda a seriedade, na prática da psicanálise, do teatro e da arte de viver em geral,  mas só por aqueles que desejam confrontar-se com aquilo que acreditam serem os "fatos" de modo tão próximo ao numeno quan­to o animal humano possa chegar. Sustento, ao lado de Kant, que a coisa-em-si é incognoscível. Falstaff, um artefato conhecido, é mais "real", nas formulações verbais de Shakespeare, do que incontáveis milhões de pessoas que são opacas, invisíveis, desvitalizadas, irreais, em cu­jos nascimentos e mortes — e, que pena! Até mesmo casamentos somos obrigados a acreditar, já que sua existência é certificada e garantida por uma certidão oficial escrita e registrada no cartório da nossa civilização! Muitas pessoas que tive contato, são de tal modo sem vida que, em silên­cio, suspeito não acreditar na evidência de meus senti­dos. Também não acredito que a "ciência" — tambores de fuma­ça, estatísticas ou outros aparatos que geralmente se admite como pertencendo a este domínio — pudesse algum dia acorda-las e insuflar nessas pessoas,  vida. Ciência seria arte. Arte beleza e beleza, verdade. Num extremo do espectro, a evidência "científica" pode me convencer de que essas pessoas existem; no outro extremo, existem personagens de ficção, das quais com certeza poderia ser dito que não existem. É um paradoxo.  Os "bronzes que respiram suave­mente", mencionado por Virgílio, pode ser descritos como uma formulação poética de uma imagem visual. Ocorre o mesmo com os heróis resgatados da noite escura da existência que en­golfou tantos homens corajosos sem que Homero os imortalizasse como fez com Agamêmnon; ou com as esculturas conjuradas do mármore por Michelangelo ou Praxíteles. Eles podem ser re-enterrados. Existem "ho­mens espertos que, confrontados com uma obra de arte, podem ver que ela é genuína e que vale muito dinheiro, mas não percebem aquilo que o artista revelou. Voltando à psicanálise, um especialista pode ver, vértice -  que uma descrição é de Freud ou de Melanie Klein, mas permanecer cego para a coisa descrita. Freud disse que as crianças eram sexuais; isso foi negado ou re-enterrado. Tal destino poderia ter ocorrido à psicanálise in­teira, se não tivesse havido alguém, como Horácio dizia de Home­ro, para conferir-lhe imortalidade. Se a intuição psicanalítica não provê uma reserva para seus pensamentos selvagens, onde se vai achar um zoológico para preservar as espécies? 

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