EDIPO NA ENCRUZILHADA

Mais do que a guerra o peso das medalhas o incomodava. O caminho árido e tempestades de areia delimitavam a insistente solidão. O homem avança sob as lembranças de guerra. As mortes agora eram devaneios que se intrometiam no fluxo do pensamento sem serem convidados. Ameaças. Um passo, um corpo, uma sombra, uma morte e o dia e a noite se revezando num cenário íngreme. Dos fantasmas era fácil se livrar. A dor encarregava-se de fazê-lo esquecer, pois a longa caminhada deixara com herança um corpo dolorido e pesado. Anestesiado nas articulações, pés inchados, caminhava com dificuldade. O ferimento no pé ainda não cicatrizara e as botinas faziam o serviço final mantendo as lembranças da luta.

Olhou ao redor: ingressara numa zona limítrofe. Para a frente, as montanhas desenhadas no horizonte, sem relevo, perdiam o contorno nos azuis e confundiam a neve com as nuvens. A umidade do ar lubrificou as narinas secas. Ficara para trás a solidão. A longa trajetória pelo deserto chegava ao fim. A farda começava a ceder, maleável, articulada no corpo, longe da rigidez provocada pela areia e o vento. A mão no rosto tomou contato com uma pele áspera, sulcada, desconhecida. Esboçou um sorriso que não refletiu em lugar algum. Tentou se imaginar espremendo os olhos, teve saudades de seu rosto no espelho. Desenhou a face de um homem na areia e urinou em cima. Retornou a caminhada cruzando a fronteira.

Verdes: um córrego, a luz opaca, vegetação desconhecida cultivava nos olhos um sabor de proximidade. Pequenos pássaros cruzavam buscando o esplendor da montanha. Subiu o estreito em direção aos céus, esbarrando na rochosa natureza, firme e intransponível. A água correndo aos seus pés, moldava a rocha. Entre pedras, correntezas e pequenas cascatas desembocavam no rio onde peixes saltitavam, respirou fundo, luxúria. Parou um momento para absorver tudo de uma vez só. Ajoelhado, lavou o rosto, no turbilhão, em lancinantes fachadas, imagens surgiam e desapareciam. Bebeu a cristalina e aconchegado, dormiu.

Amanhecia quando retomou a estrada ampla, de terra úmida e cascalho que foi se estreitando até o pé do morro. Estrada única, caminho pessoal.

Baixou os olhos contando as pedras e brincando com os escorpiões. Um deles, corre para o lado, um de rabo vermelho, movimentos ágeis, salta, cai e volta a tentar. Ele ri.

Uma bota dourada, restos bélicos, esmaga o escorpião. O encontro.

Frente ao homem, um velho, alto e forte, barra‑lhe o caminho. Examina os traços, queixo quadrado sob a barba de dois ou três dias. Barriga de sexagenário, pernas vergadas, embora aparente uma disposição maior. Botinas, seu corpo tende para a esquerda. Perna mais curta que a outra, torto. Fala e a voz ecoa no istmo, uma ordem secular se estabelece.

O homem frente ao velho, observa. Dois golpes seriam o suficiente. Com sua flexibilidade de guerreiro, treinado no deserto, herói de silente guerra, colocaria sem esforço o pé na face do velho fazendo‑lhe estalar o pescoço e voar penhasco abaixo. Mais uma medalha. Outra possibilidade: atingir a perna curta, no frágil do equilíbrio. Uma condecoração, outra medalha. Prepara‑se para o confronto. Os dois parados. Nenhum cede. Ouve‑se bater as asas de um condor. Mais uma profecia se apronta. Os deuses expectam.

O velho ordena, arrogante, desta vez é para sempre. Não há mais volta. O rosto do velho, sulcado, olhos espremidos, pele áspera. Alguma coisa estanca dentro do homem. Um passo atrás, o velho passa. A história muda, um par de pés errantes, inchados atravessa as montanhas.

Sem tragédia.

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