A NARRATIVA QUE NOS CONSTITUI

O homem se auto-representa e a maneira pela qual o faz é a sua produção cultural. Desde o primitivo homem das cavernas que desenhava nas paredes os animais que desejava caçar até a arte conceitual exercida nas esquinas de Nova Iorque ou Berlim até o repentista popular do nordeste, temos uma gama imensa de formas e conteúdos. Difícil para qualquer um dizer quais os pontos de conjunção desta humanidade que tenta se contar através de tão variadas maneiras. O temos em comum é a narrativa. Sejam ela feita por palavras, por sons ou imagens. Seja ela dinâmica ou estática, uma foto, um filme ou uma peça de teatro. Seja um flagrante, um suspense ou um ato em si, seja pleno de movimento e luz ou uma mínima tinta jogada sobre a tela neutra, seja o rigor dionisíaco da dança e do teatro, seja um acorde dissonante sobre uma sinfonia do acaso, em qualquer dos casos o que sobra por trás disso tudo é a narrativa.

O homem lida com este estranho processo de se narrar. Não adiantaria os feitos dos grandes conquistadores se não houvesse um poeta para cantar os seus feitos. Esta seria um função do homem, se contar, se revelar, se reconhecer se auto-representar. É a função narrativa. E a função narrativa é a articulação entre a verdade e a mentira.

Como se estabelece esta função narrativa é um ponto em aberto. Existem aqueles que tem explicações para tudo. Podem partir das ciências, da fisiologia e do corpo biológico para extrair as suas hipóteses. Existem por outro lado, o que buscam no transcendental, no místico e no religioso as respostas. Há também aqueles que buscam na filosofia, na estética um sentido original e definitivo. Estamos frente a uma indicidibilidade da origem. Se é verdade que sem corpo não se produz sentido, sem uma mente para processar também não há. Prefiro manter a incerteza e cultivar as perguntas mais do que as respostas, sustentando dessa forma este espaço de interseção, pois penso o inconsciente, a partir de Bion, como um universo das possibilidades. Um mundo de sonhos, imaginações e preconcepções a espera de alguma realização que lhes dê vida. Um força ctônica, uma urgência de existir, move o homem e vemos isso todos os dias. Os pensamentos sem pensador pairam no ar a espera de alguém que tenha uma mente suficientemente aberta para contê-los. Quando afirmo isso, quero enfatizar que há um ser, um humano, carregado de possibilidades e também há um sistema lógico, emocional e plástico que paira no ar e pode, em contato com uma mente aberta, se transformar em representação. Sabemos hoje, por exemplo, que a Ilha do Brasil ou também chamada a ilha de São Brandão povoava a imaginação do europeia na Idade Média. Era uma ilha móvel que se afastava toda a vez que um marinheiro dela se aproximasse. Já aparecia nos mapas e teria sido colonizada por São Brandão, monge irlandês. O nome Brasil advém do celta “bress” quer gerou o verbo, já no inglês, “to bless”. Abençoar. Muitos anos antes de Cabral aportar e muitos anos antes de Jorge Benjor cantar que morava num país abençoado por Deus e bonito por natureza. Em 1761 Marquês de Pombal já propunha mudar a capital do império português para o interior do Brasil Colônia. José Bonifácio, o Patriarca da Independência, foi a primeira pessoa a se referir à futura capital do Brasil, em 1823, como "Brasília". A primeira constituição republicana, de 1891, havia um dispositivo que previa a mudança da Capital Federal do Rio de Janeiro para o interior do país, determinando como "pertencente à União, no Planalto Central da República, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada, para nela estabelecer-se a futura Capital Federal". Fato interessante dessa época foi o sonho "premonitório" tido pelo padre italiano São João Bosco, no qual disse ter visto uma terra de riquezas e prosperidade situada próxima a um lago e entre os paralelos 15 e 20 do Hemisfério Sul. Acredita-se que o sonho do padre seria a futura capital brasileira, pelo qual o padre, posteriormente canonizado, se tornou o padroeiro de Brasília. O sonho moldando a realidade e a realidade passando a existir porque foi sonhada. Somos feitos da mesma matéria de são feitos os sonhos já nos fez saber Shakespeare. Os sonhos são funções narrativas da mente humana, uma dramaturgia de imagens, talvez o dramaturgo inglês esteja nos dizendo que por isso, somos carne e verbo, verdade e mentira.

Existem por outro lado toda uma gama de teorias que visam explicar a realidade com tal precisão e de tal forma que o desavisado pode confundir a representação com a realidade. Esforço inútil. Estamos rompidos com a realidade desde o momento que temos que lidar com ela através de representações. Estamos, neste momento, no mundo do das ilusões e das arbitrariedades convencionais. Só uma convenção arbitrária diz que a palavra cadeira representa aquele estranho objeto sobre o qual depositamos nos corpos neste momento. Da mesma forma, quem pode sustentar, de sã consciência que trinta anos de prisão é o equivalente a uma vida humana interrompida? Um advogado, um juiz com certeza sustentariam esta convicção na medida que são personagens ausentes da cena. Talvez, se a vítima tivesse chance de opinar não concordaria que esta equivalência fosse chamada de justiça. Quanto custa uma sessão? Quem pode dizer que o preço de uma interpretação ou de um insight? Estamos mergulhados num mundo de ilusões onde a ciência chama para si o sentido do mundo tanto quanto a religião ou a filosofia. De certo modo estamos como o homem primitivo, rabiscando nossos sonhos nas paredes. E são estas as ferramentas que temos para lidar com a vida: poesias e teorias.

A função narrativa é esta possibilidade de articular o pulsional com o representacional e especular sobre os mistérios do corpo. É o trabalho operativo da fantasia inconsciente. Da metáfora, da metonímia, condensação e deslocamento. Imagens em ação. Estas imagens quando articulada, casada, pareadas serve de reticulo para a imaginação criativa, imaginação produtora. Esta se refere a um conceito filosófico que integra, conjuga, aproxima duas coisas incompatíveis do encontro delas se produz algo novo. É a chave da produção simbólica. (...)


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