O RADIO DA MODESTA - um conto de Julio Conte

Modesta fez o pedido: "Um rádio só para mim", enquanto secava as pernas numa toalha felpuda e atravessava a cozinha molhando o chão. Pietro parou de mastigar, engoliu um pedaço de pão e tentou argumentar que já havia um rádio na vila. Poderia ir todas as noites ao salão paroquial, pagar a taxa da querosene e escutar as notícias e as músicas, como todo o mundo. "Não gosto de caminhar no escuro. Posso torcer o tornozelo." Ela não aceitou. "Quero um só para mim, quero ouvir as músicas que tocam na Capital." Pietro jogou o cabelo para trás e perguntou se ela estava com saudades, suas mãos tremiam e encheu a xícara até a metade. Ela falou do tempo, do frio e que para o almoço do domingo já queria o rádio, crispou a boca escondendo os lábios grossos. Ele ainda que tentou faze‑la mudar de idéia, argumentou o preço, a falta de luz elétrica mas as dificuldades só fizeram aguçar o desejo de Modesta de possuir um rádio só para ela. Sem alternativa ele concordou. Iria encomendar o rádio com bateria a querosene e tudo o mais necessário do Onofre, um desempregado que recebia encomendas e atravessava a colônia de um lado a outro cobrando uma pequena comissão para pequenos serviços. Pietro conseguiu depois de muito esforço prorrogar o prazo até o final do mês.

Modesta era seu nome, não sua qualidade. Movia‑se com elegância numa vila de colonos usando vestidos caros, sapatos de salto, cabelo impecável. Sua chegada para casar com Pietro foi uma surpresa, pois não havia notícia de namoro ou noivado. Numa tarde de sábado o povo da vila se reunia no clube para jogar carta ou bocha enquanto esperavam o jogo de futebol e Pietro desenbarcou uma dúzia de malas de sua camionete, abriu a porta e ela pisou pela primeira vez o chão da vila provocando arrepios, olhares, comentários e inveja. Na missa de domingo seu perfume inundava a igreja provocando indignação da beatas. Durante o sermão os homens saiam para conversar e o assunto era variava entre a roupa, o perfume ou a maquiagem. Pietro passou a ser respeitado, teve crédito na cooperativa e foi indicado para ocupar o cargo de subprefeito nas próximas eleições. Tornou‑se outro homem, nem sombra daquele boticário de camisa puída e sapatos velhos. Mudou o penteado, usava gravata em dias de semana e olhava no olhos de quem lhe falasse.

Pietro se encontrou como Onofre no armazém e fez o pedido. Depois jogaram cartas e beberam graspa. Onofre estava alegre, contou sobre negócios e Pietro lhe perguntou sobre a Capital. Com uma piscadela respondeu que há mulheres na rua, caminhando que não precisava nem ir para a zona. As ruas eram cobertas por pedras encostadas umas a outras formando um piso uniforme que o carro deslisava sem levantar poeira. Havia não uma mas muitas casas de comércio. "Você precisa conhecer". Pietro baixou os olhos e se agarrou as cartas, trocou o valete de lugar com a dama e descartou o rei. Onofre festejou a escova em voz alta e começou a contar os pontos: "Três de baralho, ouro, belo e primeira, mais duas escovas sete. Sete e oito, quinze!" Pietro subiu e desceu os ombros, uma leve careta entortando a boca e por fim levantou‑se. Reiterou a encomenda e marcou o último domingo do mês como data de entrega. Na porta foi seguro por Onofre que quis saber mais. Perguntou que tipo de rádio a mulher queria, explicou que havia vários modelos. Os dois homens parados na escada decidiram, então, perguntar para a Modesta.

Sentada num sofá, ela falava devagar, sublinhava cada detalhe com um gesto de mãos, molhava os lábios quando parava para pensar. Um cliente bateu a porta da frente e o boticário foi atender. Conversou com o homem e depois entrou numa sala escura, acendeu um pequeno lampião e começou e misturar um pó amarelo com ervas maceradas. Entregou ao cliente dizendo que tomasse antes de dormir e quando acordasse. Ao voltar a sala, Onofre já de pé se despedia de Modesta. Solícito, falou que tinha tudo que precisava para trazer a encomenda certa. Pietro divulgou para toda a vila que em breve teria um rádio só para si. Não precisaria mais se reunir no salão paroquial para ouvir rádio.

No terceiro domingo do mês a poeira da estrada indicava que a camionete de Onofre estava chegando. Confirmou‑se com a festa de buzinadas que porporcionou em frente da casa de Pietro. Modesta estava com um vestido vermelho quando abriu a porta. Uma pequena multidão se agrupou no jardim. Pietro e Onofre carregaram uma grande caixa e ficou para o marido a honra de abri‑lá. Rasgou o papelão. Os botões dourados, o mostrador colorido em delta, um envólucro de madeira provocaram admiração no povo que entrava sala adentro. Pietro ligou a bateria e como se fosse o subprefeito ligou o rádio. Um zumbido se propagou pela sala. A mão grossa do boticário moveu o seletor e aumentou o ruído. Ouviu‑se algumas vaias, gritos, sugestões. Até que se fez silêncio e entrou no ar uma valsa de Strauss fazendo a sala, a multidão, todos, flutuarem. Num compasso um‑dois‑três regeu as cabeças e os corpos em movimentos harmônicos. Extasiados pela beleza, sorriam como um máscara de prazer. Os olhos de Pietro ficaram lustrosos, depois de um tempo duas lágrimas rolaram e ele nem se preocupou em esconder. Buscou Modesta com o olhar e a viu através da janela aberta entrando na camionete de Onofre e partindo em direção a Capital.

A valsa estancou e começou o repórter Esso.

Comentários

Postagens mais visitadas