O CAO - uma narrativa indefinida


Eu não acredito que animais, excetuando-se o homem e o papagaio, falem. Tenho muita experiência sobre o assunto, conheço a fundo a anatomia, a fisiologia e a dinâmica dos animais para afirmar categoricamente que cachorros, por exemplos, não falam. No entanto, por mais que hoje, aqui neste asilo de veterinários aposentados, eu pense e reafirme a minha opinião, naquele dia o cachorro falou. Apesar da minha idade e dos anos que passei em silêncio investigando o assunto, ainda não entendo. No entanto, já não posso mais contestar. Bobi correu em minha direção, balançou um toco de rabo, olhou para mim e disse:

- Pare de brincar com meu fêmur.

Estanho. Muitas pessoas acreditam que dentro de um animal pode existir um ser humano. Isso é fácil de perceber. Qualquer pessoa que fique vinte minutos olhando no olho de um cachorro vai encher que nele está aprisionado a alma de um ancestral seu. Eu vi isso com estes velhos olhos que tentam enxergar o que escrevo sob a luz bruxuleante desta vela, e não tenho dúvidas. Uma vez vi um boxer com a cara do meu primo. Depois de seis horas, vi numa caturrita o espírito da minha ex-mulher e num gambá o meu melhor amigo. O fato que permanece na minha memória aconteceu quando eu tinha seis anos. Estava no cemitério. O Tio José fora enterrado e para acomodar o caixão, fora retirado o ossuário da família. Disso só fiquei sabendo depois. Naquela hora, eu chorava sentado no muro do cemitério. Dali eu enxergava a vila, uma rua central de terra batida, casas de madeiras e ao fundo a igreja. Uma capela de uma torre única, com um sino de cobre, orgulho do subprefeito. Do alto da colina o vale se descortinava e Bobi, querendo me consolar, mordia a minha calça e puxava a minha calça. Peguei uma varinha e atirei longe. Bobi correu e trouxe um osso longo, desses na medida para brincar de pirata. Examinei e joguei-o longe. Minha mãe, noutro lado do muro, começou a gritar desesperada. O coveiro terminava o serviço e seu irmão era definitivamente sepultado. Mais um tijolo e adeus. Nesta hora sempre tem uma choradeira, um desamparo toma conta. Mamãe não se conteve. Eu podia escuta-la em seu choro convulsivo, mas não a enxergava. Bobi voltou com o ossão e parou na minha frente. Foi neste momento, neste exato instante que o sino bateu seis horas, o mundo parou e vi nos olhos de Bobi aquilo que até hoje não entendo. Vi o olhar do meu Avô lá no fundo dos olhos do cachorro. Achei engraçado, pois ele havia morrido há três anos e eu guardava dentro de mim seu gestual cálido e tranquilo. Foi aí que escutei e por mais que tentasse, não conseguia saber de onde vinha aquela voz: - Pare de brincar com meu fêmur – só então descobri que aquele osso se chamava um fêmur e que pertencia a um ser humano. A voz era possante, clara e insofismável. Olhei para os lados buscando o sujeito que falara. Não havia ninguém. Só eu e meu cão.

Fiquei assustado com tudo o que estava acontecendo em minha volta, meus olhos vidraram no cachorro, como se fossem ser devorados por ele. Sentia que ele queria se comunicar comigo de algum modo de alguma forma. O tempo passou e já era tarde, hora de me recolher. Na noite fiquei imaginando o que Bobi queria comigo, Não sei se era sonho ou se estava mesmo acordado. No dia seguinte sentei na varanda e fiquei só, pensando na vida dos veterinários que mesmo não entendendo a linguagem dos animais os entendia como ninguém, sabia o que estava sentindo ou até mesmo deixando de sentir. Ao longe vi Bobi correndo em minha direção com aquele osso na boca, quando chegou perto de mim afobado de tanto correr rápido escutei: -pare de brincar com o meu fêmur! Fiquei tão abismado que num impulso perguntei : -Quem esta falando? Estou ficando assustado, me responda ;Calmamente Bobi olhou para mim e disse seu avô esta aqui,ele é osso com quem eu estou brincando. Bobi você fala?perguntei. Ele rapidamente me respondeu: -Só falo com as pessoas que me respeitam e gostam de mim , e você é uma dessa pessoas que sabem entender os animais.

Quando se tem seis anos, tudo é fantasia , e eu, estava impressionado mas feliz. Afinal eu não só estava falando com meu cachorro mas falava também com o meu avô. Segui para casa tentando continuar a conversa com o meu amigo cachorro ou era com meu avô que eu falava? De repente Bobi saiu correndo em direção ao cemitério, e fiquei sem saber o que fazer, corri atrás dele e vi quando ele fazia sinal com a cabeça para que eu me aproximasse, e acreditem, ele falava, dava risadas e me olhava.

As risadas de um cão são como fantasmas brincando na madrugada. Gargalhadas entraram em ressonância, fazendo eco, num interminável sussurro do além. Manchas sonoras invadiam o entardecer deixando na minha mente uma sensação de morte. Fechei os olhos e adormeci.

Acordei agora, todos dormem. Um gato perambula por baixo das camas do asilo. Três da manhã. O ar parado, janelas fechadas, uma porta bate no andar de baixo. Um vento frio congela espinha. Sonhei que eu tinha morrido e reencarnado. Aparecia uma Doutor que me servia um grande prato de ração. Eu me apoiava sobre as patas traseiras e deixava uma grande língua babando sobre meu pêlo dourado. O Doutor fala alguma coisa sobre um osso que eu gostaria de morder. Passa a mão na minha cabeça e eu me enrosco todo abanando o toco de rabo. Nessa hora, a comunicação é perfeita e eu entendo o que é felicidade.

O Médico afasta o estetoscópio. Balança a cabeça e contrai o lábio inferior:

- Descansou – completa – pode chamar a Funerária.

A Enfermeira do Asilo comenta que ele era simpático e ultimamente não parava de falar em cachorros. Cobre o rosto do velho com o lençol branco.

Um cão uiva para a lua.


Comentários

Rute Favero disse…
Fantástico, Julio!! Fantástico... Belo desenrolar, belíssima narrativa.
Uia!

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