LINHA 77 EM DIREÇAO AO FUTURO (julioconte.com.br)

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Nos anos oitenta , na linha 77 do Menino Deus, cruzavam atores, artista e personalidades da incipiente cena teatral gaúcha. Era possível ver Angel Palomero (Ven-de-sê Sonhos), o futuro fotógrafo L.E. Achutti, Marcia do Canto (School’s Out – Bailei na Curva – Escondida na Calcinha) e Nega Lu, (cantor, bailarino e rainha da bateria da Saldanha Marinho) todos no mesmo coletivo, indo e vindo do Centro para o Bairro e do Bairro ao Centro. Tinha ainda Cleyde Fayad e sua irmã Claudia, sempre juntas em grandes silêncios enigmáticos. Havia o Marcel Dumond que depois destilou-se na América, e a Xala Felipi, atriz fetiche do Luiz Fernando Verissimo que mergulhou no mercado paulista. O Flávio Bica, não havia composto Horizonte, e ainda trabalhava no Banco do Brasil e morava primeiro num casarão na Venâncio Aires e depois no Morro Santa Teresa, mas este já tinha seu fusca creme com um dispositivo de corta corrente estrategicamente escondido no porta luvas. Menino Deus em suas extensões, era um bairro prosaico, com cadeiras na calçadas durante o dia e putas batendo pé e rodando bolsinhas a noite. Alugueis baratos eram atrativos. Além, é claro, da proximidade do Centro da Cidade, da UFRGS, do Teatro de Arena e da Cidade Baixa antes de ser a CB da moda. Um bairro de contrastes, uma metáfora de uma cidade que ainda não decidira seu destino. Hamletianamente em duvida entre se tornar uma grande São Paulo miniatura como todos os vícios e virtudes de uma grande metrópole, ou assumir os vícios e virtudes de uma cidade pequena, delicada e claustrofóbica. Mal sabia que a mimese urbana e a seleção natural do mercado a tornaria uma cidade sem as virtudes e sem as ofertas de uma grande metrópole, mas com todos os vicio de uma cidade grande, com suas artérias esclerosadas de um urbanismo estático e sem criatividade. Menino Deus e Porto Alegre eram cantados por Caetano Veloso e por Maria Helena Lopes. O primeiro destacando o clima de sensualidade difusa, transverso com o por do sol sobre as telhas do casario. E o segundo, ela, a grande diretora de teatro, que desenhou o nostálgico e o trágico em Crônica de Uma Cidade Pequena e em Reis Vagabundos, retratos mais que antecipatórias quem nem Porto Alegre em si sabia, mas a mestre que toda a minha geração nunca cansou de reverenciar, Maria Helena Lopes, já antecipara. Embaixo do meu apartamento, esquina da Rodolfo Gomes com a Getúlio Vargas escutava as conversas de Lurdê, uma puta morena alta e forte. Mais adiante, esquina com a Ganzo outro grupo noturno gerava debates sobre o verdadeiro DNA, XX ou XY e seus integrantes feitos de pernas longas e roupas de uma sensualidade ambígua e ingênua. Pois na linha 77 da Carris, quase invariavelmente, embaixo do braço de todos aqueles projetos de artistas que habitaram o Menino Deus, haviam livros e mais livros que embalavam os nossos sonhos, lidos aos pedaços entre uma parada e outra, pausas para olhar a cidade pela janela do 77, e deixar que as ideias se assentassem dentro da mente, a procura de um lugar, a espera de um entendimento. Entre estes livros havia um em especial que, junto com o Manual do Arqueiro Zen, era muito falado, discutido e debatido por toda a geração que fez Verdes Anos, Bailei na Curva e Scholl’s Out. Não lembro o titulo, mas sei que era um manual de telecatch. Uma análise semiótica das forças que compõem a luta livre desde os primórdios da civilização até os dias de hoje. Buscava invariantes que desse conta de algo que permeia e sequencias de rupturas e continuidades simultâneas. Para quem não lembra, era uma luta fake que sobre um ringue de cordas frouxas se desenrolava todos os elementos do drama. O bom e o mau, o mocinho e o vilão, a torcida, a provocação, o resultado arranjado, a marmelada. Sua origem remonta Roma e o Coliseu, mas que atravessa os tempos até o Ringue Doze que acontecia no Ginásio da Brigada Militar onde um dos propósitos era arrancar e revelar a verdadeira identidade de Fantomas, Escaramuche e outos lutadores mascarados que enfrentavam Hercules, Arnaldo e outros, jogadores sem mascaras e de corpos desenhados, esbeltos, leves e honestos. Ao contrário dos mascarados, quase sempre fortes, pesados e desleais. Todo o jogo que forças do teatro se condensava no Manual de Luta Livre. A mesma luta livre que arrancou do ostracismo um Mickey Rourke, ícone daquela geração. Não só por isso, mas por isso também, o espetáculo Breves Entrevistas Com Homens Hediondos, do grupo Sarcáustico surpreende e produz um prazer entranho nos espectadores. A peça, para mim muitos pontos acima do premiado Wonderland, sem as repetições e barrigas daquela, Homens Hediondos é enxuto e intenso. O telecatch, pano de fundo, o verdadeiro narrador da peça, faz as ligações sutis, as máscara do lutador Fantomas se espalham e se multiplicam dentro de um ringue de ferro e grades. Até mesmo a votação roubada, juiz ladrão, injustiça temos na encenação. Os atores autores, característica do grupo, sustentam o clima de disputa, drama, realidade e ficção do qual o espectador não deseja sair, nem verificar a verdade. A ficção é mais real e a imaginação é mais estimulante. E neste embate entre ideias, corpos e sentimentos os sarcáusticos despejam garrafas de cerveja, palavras, sensualidade, lutam para discutir o bom e o mau. O textos do autor David Foster Wallace mesmo sendo extrema contundência, se revela como paisagem para a criatividade do grupo. São pretexto, motivo, mas não são de modo algum o fim. A finalidade está mais além. E transcende, como transcende as ideias veiculados num obscuro livro que nem me lembro mais o titulo lido enquanto o ônibus da linha 77 cruzava Porto Alegre ligando o passado ao futuro. Ainda em direção incerta.

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