ESTRELAS CAD-DENTES
No ano de 1980 formou-se na cadeira de direção 4, o que ficou conhecido como "Os 4 da 4". Eramos quatro alunos da direção 4 orientados pelo Zeca Capellinni então professor de direção. Um dia ele veio com a ideia de fazermos cenas sobre a realidade do CAD. Dali surgiram algumas cenas que nos anos seguintes se precipitaram no espetáculo Não Pensa Muito Que Dói. O grupo era formado por Angela Gonzaga, Nazaré Cavalvanti, Mirim Bretiman eu. Juntos a este grupo estavam também Rebeca Litvin, Mirna Spritzer, Paulo Conte, João Biratã Viera e mais uma dezena da alunos que se engajava ao projeto. O primeiro evento que inaugurou o movimento foi Ex-Cada no qual alunos esperavam sentados na escada do CAD, olhando para o movimento da rua, a espera de um professor que não comparecia e, junto com eles, um professor novato esperava alunos que não vinham. Uma espécie d e esperando Godot. Foi um impacto imenso quando a cortina do palquinho do CAD se abriu e a Escola se viu em cena. Depois vieram as Estrelas Cad-ente que transcrevo abaixo. Era uma critica a falta de critica e a superficialidade dos debates e dos objetivos do fazer teatral. Por fim, e o terceiro foi o Ensaio no qual um grupo de alunos tentava ensaiar Hamlet e era constantemente interrompido. Achei entre meus alfarrábios as anotações deste texto que compartilho com vocês hoje. Mirna Spritzer fazia uma aluna cabeça. João Biratã era um critico. Paulo Conte e Rebeca faziam os hipongas. Os outros não lembro. A encenação previa a primeira parte como se fosse A apresentação. E teve uma menina que sai antes do "debate" pensando que a simulação de cena, pretexto para o debate, era de fato a apresentação. Eu abri a porta para ela sair. Imagino, já que nunca mais a vi, que deve estar achando até hoje que teatro é uma coisa chata.
ESTRELAS CAD-ENTES
Direção 4
Júlio Conte
CENA 1
Estrelas em ação. Duas atrizes em posições simétricas, ambas com uma vassoura, uma pazinha e um cesto de lixo. Estão simetricamente colocadas no palco. Uma mesa divide a sala. Música. Caminham nervosas, competindo em ações, limpam, varrem, cada vez mais depressa. Música acelera o ritmo e elas reagem trabalhando mais rápido. Varrem, juntam o lixo e colocam no cesto. Apanham o cesto o colocam no outro lado da cena. Reiniciam o ciclo de movimentos até que as vassouras se encontram. Música pára.
ATRIZ 1
Eu hei de ficar!
ATRIZ 2
Quem hei de ficar sou eu!
Luzes se apagam. Aplausos.
CENA 2
Atrizes estão esperando os cumprimentos. Na platéia.
HIPONGA HOMEM
Tá ótimo.
HIPONGA MULHER
Muito bom.
HIPONGA HOMEM
Du caralho
HIPONGA MULHER
Da buceta
No palco, a ATRIZ 1, sorri para a platéia sentindo-se maravilhosa, recebe os cumprimentos. A ATRIZ 2, sorri amarelo. Quando ATRIZ 1 começa a se auto-elogiar e todos se movem para ATRIZ 2 e a cumprimentam entusiasmados. ATRIZ 1 sorri amarelo.
CENA 3
Forma-se um único grupo que se auto-cumprimenta, esquecendo as duas atrizes que agora, ambas, sorriem amarelo.
PÚBLICO 1
A cara da Nazaré não dá para agüentar!
PÚBLICO 2
A Míriam é ótima. A cara que ela faz!
A assim seguem num louvor de auto elogio e troca de confetes mais um tempo.
CENA 4
Platéia volta para seus lugares e começam o debate.
DIRETOR
Gente, vamos discutir o trabalho?
Silêncio constrangedor.
Casal Hiponga se move. Todos esperam que eles falem. Eles sentam no chão.
Silêncio constrangedor.
Um casal de teatreiro cabeça sentam no palco, no lado oposto.
Silêncio.
PÚBLICO 2
Eu tenho uma pergunta.
ATRIZ 1
Sim.
ATRIZ 2
Pode perguntar.
PÚBICO 2
Foi difícil conseguir as pazinhas?
ATRIZ 1
Foi.
PÚBLICO 3
Quantos dias vocês ensaiaram?
ATRIZ 2
Quatro.
PÚBLICO 4
Tiveram dificuldade com o figurinos.
ATRIZ 1
Sim.
ATRIZ 2
Não.
AS DUAS
Mais ou menos.
PÚBLICO 1
Quem transou a luz?
ATRIZ 1
Tachenco.
PÚBLICO 2
Quem transou o som?
ATRIZ 2
Tachenco.
PÚBLICO 1
Quem montou o cenário?
ATRIZ 1
Tachenco.
PÚBLICO 4
O Tachenco é diretor?
ATRIZ 2
Não.
PÚBLICO 3
Tachenco é o iluminador?
ATRIZ 1
Não.
PÚBLICO 4
Tachenco é o cenógrafo?
ATRIZ 2
Não.
PÚBLICO 3
Mas o que o Tachenco faz neste trabalho?
ATRIZ 2
Nada, Tachenco só está ajudando.
PÚBLICO 4
Mas porque só o Tachenco faz coisas aqui no CAD?
Silêncio constrangedor.
PÚBLICO 2
Quem fez o figurino?
AS DUAS
Nós.
PÚBLICO 1
E a direção?
ATRIZ 1
É minha.
ATRIZ 2
É minha.
AS DUAS
É nossa.
PÚBLICO 3
Por que montaram essa cena?
ATRIZ 1
Porque é um trabalho de direção. Tem que montar uma cena.
PÚBLICO 3
Mas por que escolheram esta cena?
ATRIZ 2
Ah, tu quer saber desta cena...
ATRIZ 1
Essa cena especificamente?
PÚBLICO 3
É, esta cena das pazinha...
ATRIZ 2
Do lixo?
ATRIZ 1
Da vassoura?
PÚBLICO 3
É, essa cena mesmo.
Atrizes ficam sem resposta, constrangidas.
PÚBLICO CABEÇA 1
Senti que no trabalho vocês usaram bastante Stanislavski na construção de um papel. Embora também tivesse um distanciamento, um pouco de Brecht, embora haja pitadas de Ionesco e uma certa delicadeza do Strinberg, sem falar numa coisa,
ATRIZ
A nível de movimento corporal foi meio Eugenio Barba e minimalismo do Peter Brook.
PÚBLICO CABEÇA 2
Eu discordo, não acho que tenha algum piteco de Ionesco, a peça não tem nada de absurdo. Além disso, em Os Rinocerontes de Ionesco...
PÚBLICO CABEÇA 1
O Rinoceronte, não é Os é O Rinoceronte.
PÚBLICO CABEÇA 2
Isso mesmo, nos Rinocerontes teriam que usar as máscaras e aquilo é caro. Feitas de papel maché... Os Rinocerontes...
PÚBLICO CABEÇA 1
O rinoceronte...
PÚBLICO CABEÇA 2
Os!
PÚBLICO CABEÇA 1
O!
PÚBLICO CABEÇA 2
Estranho, na edição da Abril era Os Rinocerontes.
PÚBLICO CABEÇA 1
Na montagem da Irene Britskie era O Rinoceronte.
LIBELU, interrompendo a discussão um tanto idignado.
Eu queria saber qual é a ideologia deste trabalho. Qual questão social que está imbricada neste trabalho. Essa questão é essencial. Por que senão estaremos fazendo teatro para uma burguesia pobre. Uma teatro digestivo e fácil. Teatro tem uma função política, social.
Discussão geral.
DIRETOR
Gente, vamos fazer uma lista para se inscrever.
LIBELU
Eu quero falar. Eu protesto contra esta lista! Acho que fazer lista para falar é uma espécie de ditadura velada, censura, é uma forma de fascismo com o intuito de inibir a livre manifestação do pensamento. Abaixo todas as formas de censura. Este tipo de procedimento é o que gerou nos Estados Unidos, a lista negra. E aqui no Brasil é uma forma de dedodurismo! Daqui a pouco estão perseguindo as pessoas.
DIRETOR
Uma questão de ordem. Vamos dar a palavra para as atrizes. Com a palavra a Míriam.
MÍRIAM
Eu passo a palavra para a colega.
DIRETOR
Com a palavra a Nazaré.
NAZARÉ
Eu passo a palavra.
DIRETOR
Agora é a Angela.
ANGELA
Eu passo a palavra para a colega.
MÍRIAM
Então eu quero falar.
ANGELA
Só uma questão de ordem.
NAZARÉ
Me concede um aparte?
PÚBLICO 1
Gente, vocês estão perdendo tempo, temos que discutir o teatro, o fazer teatral, a gente tem que se gostar muito, tem que ter muito amor, gente, amor. Clima, grupo, isso é teatro.
PÚBLICO 2
O colega está dando uma demonstração de alienação. Tem nada disso de amor, não, tem que haver é compromisso social, isso é teatro.
PÚBLICO 1
Tu é muito sectário.
PÚBLICO 2
E tu é muito alienado.
Nova discussão.
MIRNA
Questão de ordem pessoal. (locuções discursivas)
Gritaria.
PÚBLICO 1
Grito não! Grito não.
Continuam a discussão com sussurros.
Diminui o sussurro.
SAMUCA
Eu tenho uma questão. Por que os professores não assistem os trabalhos?
Alunos procuram os professores e não encontram nenhum
ALGUÉM
É não tem nenhum professor.
LIBELU
Mas pra que professor?
HIPONGA MULHER
Professor é mais uma forma de dominação burguesa que oprime o sujeito frente ao seu desejo e ao seu corpo erótico e social.
ALGUÉM
Questão de ordem, alguém tem unzinho ai?
OUTRO
Maconheiro alienado.
ALGUÉM
Nada a ver.
LIBELU
O que importar é que Professor, só serve para direcionar.
Nova discussão. Atrizes protagonistas da cena vão embora. Discussão continua ainda forte. Pessoas subindo nas mesas e nas cadeiras para falar mais alto.
SAMUCA, angustiado, gritando.
Mas afinal, por que montaram esta cena?
Pausa. Todos se dão conta que as atrizes foram embora. Percebem o ridículo da discussão. Estão em cima das mesas, das cadeiras, ridículos. Vão se deprimindo, entrando num baixo astral saindo sem dizer nenhuma palavra.
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