Matemática do Desejo (conto de Julio Conte)

Já passava da uma quando consegui uma mesa para um rápido almoço. Olhei para o relógio e calculei trinta minutos antes de voltar para o serviço quando ela, segurando um prato com dois enormes pedaços de pizza, sentou na minha frente e sorriu como se me conhecesse há anos. Dei uma mordida no cachorro quente, senti a mostarda escorrendo pelo canto da boca e sorri contrariado. É muito chato mastigar na frente de outra pessoa, sempre dá uma sensação de nudez. Porém aquela mulher bonita, porém desgastada, despertou em mim algo familiar. Seus grandes olhos castanhos e seu olhar caído combinavam com cabelos claros e mal pintados, que deixavam a mostra as raízes escuras. Um vestido largo, com dificuldade, escondia um par de seios enormes. Abriu a boca, enfiou um pedaço de muzzarela goela abaixo e falou com uma voz rouca e arrastada o que evidenciou anos de cigarros e bebidas. Alguma classe ainda remanescia em movimentos delicados das mãos e o um jeito sensual que enrodilhava os dedos e apontava para o nada. Uma figura se formava. Perguntei:

- Desculpe, mas eu lhe conheço de algum lugar?

Ela se engasgou com o choop e tossiu derramando o líquido sobre o vestido. Gargalhando da trapalhada, respondeu que vinha do passado e enquanto se limpava, imagens começaram a povoar a minha mente. Comecei a fazer cálculos, viagens no tempo e localizei aquela personagem que dividia a mesa de fast food.

Aos oito anos nos conhecemos. Ela morava uma rua abaixo e jogava futebol melhor do que eu. Subia nas árvores mais altas, andava de bicicleta na Redenção, pulava dos bondes sem pagar e manejava o bodoque com maestria. Depois de tantos anos, nós ali. Não acreditava no que via.

Ela pediu emprestada a minha mostarda e a despejou sobre a calabresa. Falou de quando éramos crianças. Rimos.

Aos doze, ela virou mulher. O pescoço se alongou, surgiram curvas nos quadris e dois peitinho maduros festejaram a adolescência precoce. Nunca mais jogamos futebol. Com quinze ela não quis dançar comigo na reunião na casa do Inajé, disse que eu era muito infantil. Com dezenove acampamos na Pinheira em Santa Catarina e ela transou com meu melhor amigo que era cabeludo e tinha rodado no colégio. Dormi no lado de fora da barraca e, na falta de algo melhor, li todo o Manual de Química Orgânica. De manhã ela veio me contar que tinha deixado de ser virgem. Eu não.

Pediu uma cerveja. Não sei pra que, ela já estava pra lá de Bagdá. Notei que engordara.

Aos vinte anos, cada vez mais linda, foi Rainha das Piscinas do Petrópolis Tênis Clube e o namorado era um filhinho de papai que tinha carro, cabelo comprido e fumava maconha. Na frente do clube, sentado no muro, traguei um Minister enquanto ela passava. Me engasguei. Ela e o namorado riram.

Pedi um sushi para acompanhá-la enquanto ela comeu Big Mac depois da pizza. Acendeu o vigésimo cigarro.

Com vinte e cinco fui convidado para ser seu padrinho de casamento. O pneu furou e cheguei atrasado na festa. Fui substituído pelo meu melhor amigo que não era mais cabeludo, se formou em Engenharia Química, mas nunca conseguiu sair da turma da cannabis.

Ela pediu um doce para tirar o gosto da cerveja. Alguém trouxe uma garrafa de vinho.

Com trinta ela estava separada, dois filhos. O tal marido continuava cabeludo, foi internado na Pinel em surto psicótico depois que o papai dele faliu. Aplicava Algafan na veia e cheirava coca. Com trinta e cinco a encontrei-a numa festa de fim de ano na Casa de Cinema. Deprimida, um pouco obesa e alcoolista, porém ainda gostosa. Conversamos e me aproximei para beijá-la. Ela veio em minha direção, senti o rosto dela chegando perto, seus grandes olhos e sua boca quase encostada na minha. Tudo o que sonhara estava se realizando. Senti seu hálito. Estava azedo. Vomitou na minha camisa nova.

Pedimos a saideira. Contei que eu fizera análise durante muitos anos.

- Pra que, tu é tão normal.

Ela estava ali na minha frente, tinha trinta e nove anos e apesar da vida tumultuada, continuava uma mulher bonita. Depois de contabilizar todos estes anos de agruras, ela olhou bem no fundo dos meus olhos, segurou os meus braços e confessou:

- Eu sempre fui apaixonada por ti. Eu e todas a minhas irmãs e mais as outras gurias da turma. Todas eram apaixonadas por ti.

- Todas? – Não acreditava no que ouvia – Tu estás dizendo que...

- Todas, mas principalmente eu. Desde os meus oito anos...

- Agora que tu me diz isso?

Olhei para o relógio estava quarenta minutos atrasado. Em menos de uma hora, numa mesa de fast food desfilou na minha frente trinta anos de nossas vidas. Se por acaso, ela tivesse me falado aquilo tudo antes, teria me poupado doze anos de análise, isto é, sessenta e três mil, trezentos e sessenta reais, mais trinta e um anos de rejeição, isto é, onze mil trezentos e quinze dias me sentindo uma droga completa. Matemática estranha esta a do desejo. Paguei a conta, dei-lhe um beijo fraterno, a coloquei num taxi e fui para o trabalho. Correndo para recuperar o tempo perdido.

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