ÉTICA DA INSTITUIÇÃO E A INSTITUIÇÃO DA ÉTICA

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sobre os impasse do establishment na transmissão da psicanálise

O impasse do establishment na transmissão da psicanálise tem sido uma questão eterna tanto para os psicanalistas quanto para as Instituições que se iniciou, quem sabe, com a própria psicanálise no exato momento em que cruzou na mente de Freud a idéia de que sua teorias só sobreviveriam se elas estivessem sob guarda de uma Instituição. Ali, naquele momento imaginado e mítico se inicia a dialética entre a Ética da Instituição e a instituição de uma Ética. É estranha a psicanálise porque, ao contrário de boa parte das ciências, das arte ou mesmo as religiões e seitas transcendentais, surgem questões que nunca saem da pauta. São repetições e criações constantes sobre o mesmo tema. Uma busca interminável de sentidos e significados. Estamos sempre entre dois fogos, o repetir e ao inventar.

De imediato me pareceu que perguntar sobre a Ética da Instituição e a instituição da Ética é a tentativa de dar conta do Ética da Psicanálise e também da Ética na Psicanálise. São questões delicadas pois se alojam na intimidade de cada um de nós e sua comunicação implicam na difícil passagem do pensamento privado para o coletivo. E a comunicação é sempre duvidosa, pois as palavras tem sentidos diferentes para cada pessoa e uma mesma palavra, as vezes plena de sentido, ao ser repetida perde a eficácia.

Mas, frente a impossibilidade de recuar frente ao meu desejo, percebo o trabalho se processa de forma irreversível em mim. As vezes, uma simples pergunta nos joga direto ao olho do furacão e as origens. E frente estes fatos, pensamentos, sonhos, imagens, emoções nada mais podemos fazer senão exercitar a nossa capacidade negativa e seguir a corrente do rio, não recuar nem se congelar frente a verdade, mesmo quando ela se apresenta como uma Cabeça da Medusa.

A Medusa de hoje, a questão institucional e Ética da/na Psicanálise, começa então com algumas perguntas:

1. Se a teoria psicanalítica apresenta os fundamentos de uma ética, com elementos para a compreensão da vida moral de um indivíduo? E que, sem a psicanálise teríamos acesso a essas compreensões?

2. Se o conhecimento que a psicanálise oferece as pessoas tem pertinência clínica relativamente a capacidade de torná-las moralmente melhor?

3. Se o objetivo da psicanálise é transformar o sujeito em alguém moralmente melhor, adaptá-lo ou oferecer os meios faltantes para que ele exerça a sua autonomia?

4. Se o modo de transmissão da psicanálise influencia no tipo de moral psicanalítica do analista e se isso possui implicações teórica, técnicas e existências com repercussões na clínica? Se o sistema de transmissão da psicanálise, a via institucional, possui os quesitos que permitam uma produção autônoma e se, por outro lado, os indivíduos sob formação possuem ferramenta para exercer a sua autonomia? Se ao autoritarismo institucional se contrapõe a permissividade individualista, como diferenciar a perversão num caso ou outro?

Parto da premissa que a psicanálise forma um si um sistema teórico embora com diferenças de Escolas, mas que ao final possui pontos em comum e, com isso, aceitando a proposição de que Freud, Klein, Lacan, Bion, Ferenczi, Winnicot e outros formam, em seu conjunto um corpo teórico chamado psicanálise.

Em segundo lugar, o conhecimento originado da psicanálise possui uma repercussão das mais intensas na vida humana. A forma de ser do homem contemporâneo está definitivamente cortada pela psicanálise a ponto não só de exercer influência sobre os pensamentos e sintomas, mas na vida de relação, no plano emocional e afetivo e chegou a tal ponto de popularização que pode virar piada e comercial de TV. Levando em conta que toda a globalização de um conhecimento fatalmente leva ao vulgar, o impasse entre o mosteiro e a mídia é onde se trava o destino da psicanálise nos dias de hoje, relativamente a inserção social, eficácia clínica e a sua transmissão.

INDIVÍDUO E O PROCESSO DE AUTONOMIA

Quero situar a questão da Ética da/na Psicanálise e seu exercício e transmissão neste conflito, sempre atual, entre o indivíduo e a comunidade. Sabemos que a construção histórica da consciência do ocidente o papel do indivíduo e sobretudo a autonomia individual não era tão destacado como passou a ser a partir do século XVII. Ao contrário o sujeito tinha que se submeter essencialmente a comunidade e era dada como proposta indiscutível a adesão do sujeito as demandas da comunidade. E isso implicava em assumir as normas que vigoravam no interior dessa mesma comunidade.

A partir do século XVII, começam a se enunciar os conceitos contemporâneos de indivíduo, de autonomia e de independência em relação ao grupo social. A Moral Tradicional vigente cujo fundamento era a Autoridade, impunha os seus valores que implicavam num determinado comportamento obrigatório. Estes valores eram dotados de validade universal e a Autoridade que os determinava dispunha de certos atributos privilegiados. Esta Autoridade tinha contato direto com os Deuses e falava, reinava e legislava em nome dele.

Claro que uma moral deste tipo não possui o mínimo de plausibilidade contemporânea embora as vezes Deus se esconda nos detalhes. Os motivos para a não plausibilidade se devem ao fato de que a aceitação deste tipo de Autoridade transcendente é matéria de fé, não de argumentação, nem demonstração. A segunda razão, empírica, é que, nesta mesma linha, existem de fato várias autoridades. Esta multiplicidade inviabiliza a preservação de uma ética ou uma moral universalizada. Com isso há um colapso histórico deste tipo de concepção moral.

Além disso o sistema autoritário da Moral Tradicional possui uma lógica da exclusão. Isso significa dizer que para os antigos a Moral Tradicional impõe regras morais que servem para todos mas os privilégios serão de alguns. Com isso a moral Grega guarda uma relações de proximidade com ideologias vigentes no mundo atual, tais como a Globalização e no Neoliberalismo, na medida que também estas doutrinas morais se baseiam na exclusão. Sendo que a exclusão é a forma mais antiga e mais grosseira de lidar com as diferenças. Sob o signo da exclusão incluo assassinato, extermínio, suicídio e indiferença.

Uma outra concepção de moralidade que se tornou importante na vida contemporânea, moderna, é uma moralidade que pretendia uma fundamentação absoluta da moral e do caráter absoluto desta fundamentação, cujo representante mais bem sucedido é Kant. O ponto principal é verificar se conseguir-se-ia justificar a moralidade sem introduzir de contrabando algo transcendente, algo da ordem da metafísica. Deus ou qualquer artifício que esteja para além da experiência e que exija um ato de fé. Fé não é base para justificar uma moralidade universal. Seja como for há um ponto que é uma conquista da consciência contemporânea que não se abre mão, e que é uma conquista da modernidade. As nossas ações se realizam porque julgamos que aquela é a maneira correta e além disso, porque aquela maneira está prescrita em algum lugar. Porém o ponto essencial é que se torna necessário que se reconheça autonomamente que alguma coisa é certa ou errada. Qualquer projeto de moral contemporânea e a psicanálise se insere aqui, não pode deixar de levar em conta o Projeto de Autonomia. É necessário que a moral disponha de um fundamento, que seja válido para todos e além disso, que este seja autonomamente reconhecido por cada indivíduo como um bem. Em suma, a objetividade da justificação que é apresentada deve ser aceitável por todos e que qualquer pessoa deve ser capaz, autonomamente, e não por imposição, treinamento, traição ou submissão a engajá-lo.

A modernidade de Freud é que, ao contrário da Moral Tradicional, ele preserva o traço de autonomia neste processo de formação moral. Aparenta haver em Freud este traço de autoridade da Moral Tradicional, mas o momento da internalização é tão fundamental quanto é a figura autoritária do pai e esta equivalência valorativa coloca Freud para além da Moral Tradicional.

Por fim a Moral da Vida Moderna inaugurada por Kant e desenvolvida por Freud, reivindica direitos absolutamente autônomo, irredutível ao mandamento divino e além disso, este sistema ético pode ser contestado, pois não é mais uma lei divina mas, sim, uma criação dos homens.

FREUD E O PROJETO ÉTICO

O Projeto Ético da Psicanálise segue linhas básicas demarcadas pela Filosofia porém com suas próprias vicissitudes. A gênese da moralidade em Freud é colocada no superego, a instância psíquica capaz de fazer a manutenção da autoridade paterna interiorizada. E a interiorização de algo que vem de fora é o momento próprio de construção do superego. Há uma autoridade externa cuja existência não depende da vontade do sujeito e, para que seja válida e efetiva, é necessário que seja interiorizada, endossada e aceita. Temos então a conjunção de dois aspectos que apresentam o problema mais importante da moral que é como se pode conjugar:

1) a objetividade da moral (que deve ser distinguida de um mero juízo de gosto ou ato de fé);

2) a pretensão de universalidade.

Na construção de uma moralidade da/na psicanálise temos por, por características identificatórias, incluir a própria criação e desenvolvimento da Psicanálise.

Não pretendo fazer citações dos textos freudianos pois eles são bastante conhecidos de todos e representaria uma enfadonha repetição. Faço pequena referências, pois já no Projeto (1895) ele destaca que durante a Experiência de Satisfação resultante da Ação Específica o sujeito se introduz no campo da Comunicação e que o Desamparo inicial do ser humano é a fonte primordial de todos os motivos morais. Ou seja a moral de instala desde o início. Se por um lado, em textos posteriores Freud vai colocar o Superego como herdeiro do Complexo de Édipo ligado a fase fálica, no Ego e o Id, ressalta que a primeira e mais importante identificação do indivíduo é com o pai de sua própria pré-história individual e completa em nota de rodapé, tão conhecido por todos nós, que trata-se da identificação com os pais antes da diferença dos sexos. Isso é, antes do Complexo de Édipo. Implica também falar de uma identificação com o Pai Primitivo da Horda. Esta identificação nos coloca frente a um impasse, pois nos identificamos com o pai morto e interditor mas também com o Pai que tudo goza. Esta dupla vicissitude da instalação desse superego precoce representa a incorporação de uma interdição e de um imperativo de gozo. Melanie Klein tomando uma idéia de Money-Kirley vai falar de uma dupla moral. Uma pela qual nos julgamos e outra com a qual julgamos o outros.

A relação do eu com o si-mesmo e com os outros nos remete também a mais uma questão eterna: o Narcisismo. Quando em 1914 Freud trabalha a diferença entre Ego Ideal de Ideal de Ego, onde no primeiro o homem fixa um ideal em si mesmo e por este mede seu Ego atual. Já no segundo, o sujeito, atingido pelas críticas e descomposturas de terceiros e, ao mesmo tempo, pelo despertar do seu juízo crítico, sente-se incapaz de sustentar a perfeição imaginada e busca recuperá-la sob a forma de um Ideal de Ego.

A LEI E A ÉTICA

Com a evolução da psicanálise, em especial, contribuições Kleiniana e Lacanianas, que já estavam esboçadas em Freud, o superego teve uma origem mais precoce que a clássica fase fálica do Complexo de Édipo. Não se pode perder de vista a citação do Projeto e no Ego e o Id sobre a precocidade da moral. Me proponho a um exercício de aproximação entre Escolas, um tanto temeroso, mas parece evidente, que mesmo linhas teóricas tão diversas, possuem pontos em comum. Tanto Klein como Lacan em suas respectivas teorias, apresentam a idéia de um superego inicial que vai ter sua organização final na fase fálica do Complexo de Édipo, para onde converge em seu desenlace.

Se o superego é tão precoce isso significa pensar a moral também desde esta precocidade. Frente a estes imperativos a força da psicanálise desliza não para a lei mas para o desejo. Pois se no desenlace do Complexo de Édipo e formação final do Superego passamos a ter por um lado, contato com interdições e leis, por outro, neste momento, também se qualifica e viabiliza o desejo. Erram os que pensam que a Ética da Psicanálise é determinada pela lei. A lei sozinha não determina a ética embora seja necessário que leis existam para que uma proposição moral possa ser assumida como um valor para todos. Se a Lei determinasse a Ética, pura e simples assim, Schereber não teria psicotizado, pois efetivamente leis não lhe faltaram. Contra Schereber se contrapõe Antígona.

A interdição provoca o dano narcísico, a castração, e com isso oferece significação fálica, moeda de troca, significante, função alfa, e com isso viabiliza o desejo. A proibição paradoxalmente interdita e oferece a representações substitutas. O Nome do Pai intermedia o Desejo da Mãe e ao assim fazê-lo abre-se as portas para o deslizar constante e interminável do desejo.

IDEAL DE ÉTICA E ÉTICA IDEAL

Penso, utilizando o Narcisismo e a “dupla moral” que me referi a pouco que podemos definir a Ética da Psicanálise em duas éticas: uma Ética Ideal e um Ideal de Ética.

A Ética Ideal marcada pela violência do discurso que impõe um sentido final contrariando o processo humano de evolução e re-criação. Marcada pela fascínio de Narciso. Pela violência impositiva, educacional e política. Pelo estancamento da vida. Pelo saber autoritário sobre o outro. Pela vitória pessoal e pela soberba. Uma Ética cisionada, idealizada e parcial. Centrada no ego, no falso self e no establishment. Promove a submissão e a adaptação. Enfim, numa análise terminável. Por outro lado, o Ideal de Ética, sempre em busca de um novo sentido, um eterno refazer, um eterno criar e re-criar. Inserido no reinado de Édipo. Um trabalho interminável de elaboração, frustração e transformação. Onde a palavra psicanálise seja plena de sentido, de eficácia e de vida. Integrada, contraditória, paradoxal e fértil. Promove o pensamento, o fluxo imaginativo e produtor do inconsciente e a autonomia. Alcança um homem liberto para pensar, com capacidade negativa, que suporta o medo e a ansiedade, a frustração e o desamparo. Que comporta em si o homem poético e o científico. O dialético e o materialista. O racional, o místico e o animal. Enfim, uma análise interminável.

Destaco que o essencial é manter uma idéia de espectro entre o a Ética Ideal e o Ideal de Ética, pois nenhuma instituição se furta de trafegar neste terreno sem percorrer uma estrada tênue, tortuosa e escorregadia.

Baseado nesta formulação de Ideal de Ética da Psicanálise me arrisco a afirmar que mesmo quando falarmos em Pulsão, de Relação Objetal ou Anobjetal, Complexo de Castração ou Inveja do Pênis, Édipo ou Narciso, Objeto Total ou Parcial, Em Nome do Pai ou Desejo da Mãe, Significante, Desejo do Outro, Função Alfa ou Função Beta, Reverie, Continente-Conteúdo, Mãe Suficientemente Boa, Holding etc, estaremos falando “da” psicanálise e não “na” (no sentido em+a) psicanálise. Este discurso não será psicanálise se nossa linguagem estiver marcada pelo signo da imposição final de um sentido, se estiver marcada pela ilusão de verdade última e definitiva, se estiver marcada por uma linguagem de substituição ao invés de uma linguagem de êxito. Se estiver marcada por palavras vazia, por sentidos esgotados ao invés de palavras plenas, cheia de efeito, de vida e de solidariedade. Não uma palavra arrogante, vencedora, uma interpretação política, educacional, mas uma palavra poesia, uma palavra que transforme o sem sentido do mundo, o sem sentido da vida, que acalente o nosso desamparo e acalme, mesmo que temporariamente, o animal adormecido que temos dentro de todos nós.

ÉTICA E A TRANSMISSÃO

Falar da ética da psicanálise e a sua transmissão nos remete a questão institucional sempre presente da formação psicanalítica ligada a um sistema oficializado e internacional ou a um sistema não oficializado. Parto da proposição básica que há formação analítica dentro e fora da IPA.

Este confronto se presta a mal entendidos. De um lado, as instituição não filiadas a IPA e um certo rechaço a tudo que é oficial; por outro, uma oficialidade que não reconhece outras formação. São os extremos de um festival de equívoco. Felizmemente este quadro já apresenta evoluções. Deixando de lado a radicalidade, temos dois modelos diferentes que possuem espaço diferenciados e particulares. Sem falar que em momentos, um se alimenta do outro e vice-versa. Grandes mudanças se processaram de fora para dentro de instituições internacionais e mudança interna buscaram o extra oficial para se realizarem. Vide Klein que se manteve dentro e Lacan que se excomungou. Bion é o exemplo maior de trans-ito criativo entre o dentro e o fora. Porto Alegre também é um bom exemplo. O Centro de Estudos Psicanalítico de Porto Alegre, CEP de PA, inaugurou um espaço psicanalítico dos mais importantes da história da psicanálise no Brasil. Abriu as portas da psicanálise, num momento em que a formação oficial estava restrita e a clínica era por demais elitista. A presença do CEP neste cenário não só obrigou a um certa democratização e abertura da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre como gerou um movimento que veio a se tornar a Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. E, talvez tão importante quanto, gerou uma série de instituições que oferecem formação e prestam atendimento a população de baixa renda como o Instituto Bion, por exemplo. O que significa estar dentro ou fora são questões pessoais. Sabe-se com certeza que a psicanálise existia antes da IPA, mas não se sabe qual das duas sobreviverá, talvez as duas, talvez nenhuma. Há vantagens e desvantagens de se estar dentro assim como de estar fora. Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. Tudo depende de como a Instituição, oficial ou não, vai se colocar. Se do lado de uma Ética Ideal tendo a si como medida do seu produto final ou no polo do Ideal de Ética, instituindo um caminho sempre novo, sempre a construir, de uma transmissão marcada pela eterna busca de si e de sua verdade.

O establishment institucional implica em uma manutenção de um conhecimento adquirido as custas de um gênio, ou como chamou Bion de um místico. Alguém de visão privilegiada que atinge um conhecimento que não se seria possui alcançar sem a sua participação. O mérito de toda instituição é a preservação deste conhecimento e o ponto frágil é que, ao assim fazê-lo, destrói o que há de revolucionário e congela o seu desenvolvimento. A vicissitude inevitável de qualquer ato criativo é a descontrução do sistema. A ruptura do continente para emergência de um novo conteúdo marca o processo criativo. Uma estranha matemática onde um mais um que é três. Seja fora da IPA ou dentro dela, a transmissão tem que creditar a si uma ética essencial marcada pela constante busca da verdade e isso implica numa constante descontrução do si mesmo. E esta descontrução está ligada a rupturas e a ruptura diretamente determinada pelo desejo.

ÉTICA DO DESEJO

Freud vai em busca de uma metapsicologia e cria o conceito de pulsão porque precisa caracterizar, nomear, definir esta força o momento original e originário do ser humano que é a representação. O momento mítico que o homem recebeu a palavra e com ela o desejo. Não deve ser um acaso que o último trabalho concluído por Freud seja Moisés e o Monoteísmo. Um homem de oitenta e dois anos, doente, debruçado sobre os manuscritos que falam das origens.

As origens nos remetem ao “vazio infinito e sem forma” que Bion retirou do Poema Épico de John Milton, O Paraíso Perdido. Arnaldo Chuster escreveu um belo artigo sobre este, intitulado O Mito de Satã, publicado em livro e apresentado numa versão final em Turim no Centenário de Bion realizado este ano.

No Paraíso Perdido temos Satã, personagem central e destacado por Harold Bloom, o professor de Harvard - não o psicanalista homônimo - como um personagem cânone da história ocidental. O Cânone, como Bloom o define, é uma criação humana, uma ficção de algum escritor, que passa, pelo seu vigor de sua origem, a originar e constituir os próprios homens. São a um só tempo criaturas e criadores, mergulhados num interjogo enigmático de quem cria quem. Ao mesmo tempo estranhos e familiares.

Satã, o personagem canônico, no canto de Milton sobre a origem do mundo, era o anjo perfeito, o mais querido e mais inteligente, único a se aproximar da chama de Deus e ao rivalizar com ele, sofre por isso o castigo de ser jogado ao caos. Condenado a um eterno cair, Satã, começa a descobrir sua identidade que se constrói a partir desse vazio infinito sem forma. Ao cair em si, percebe quem ele efetivamente é. Todos analista com uma boa escuta pode ouvir seus paciente nos divã em quedas vertiginosas e originais. Também São João da Cruz, citado por Bion, descreve uma passagem parecida com essa. Ele fala de uma noite escura onde mora o mistério e as trevas e do amorfismo surge a forma. O Mário Quintana, poeta gaúcho, diz que “a sucata, quanto mais sucata mais pode vir a ser outra coisa”. Desse caos começa-se a organizar algumas imagens e essas imagens vão adquirindo um sentido de realização, um sentido de resolução, questões pedindo mudanças. E essas imagens vão se organizar como narrativas sob o signo do desejo. Narrativas por imagens como, por exemplo, nos mitos. Categoria C da grade, os mitos contam a história fantasiosa da humanidade e residem no fundo da alma de cada um de nós. O imaginário da humanidade está condensado nas histórias míticas.

Então, se por um lado Freud mergulha na pulsão e representação, Lacan busca no Simbólico a possibilidade de intermediar o Imaginário e o Real, Bion, por sua vez, defende a idéia de um inconsciente das pré concepções e a importância da realização para extrair a experiência emocional e, com ela, desenvolve o conceito de função alfa. Poderíamos seguir com outros exemplos. Teriam como invariante o enigma da origem da vida mental que é sempre, em última análise, um casamento e um divórcio entre o somático e o psíquico, entre o indivíduo e o social. E para mediar esta divisão temos a criação de sistemas de intermediação, representações. E aqui circular por esta zona obscura Freud, Ferenczi, Lacan, Bion, Winnicot e muitos outros. Todos com um princípio básico de buscar a origem da representabilidade e do desejo.

A ética da psicanálise, por isso tudo e mais o que me escapa, é a ética do desejo porque o desejo é ético. Numa reviravolta do sistema de pensar, subvertendo a Filosofia, a Religião, a Pedagogia e a Política, a psicanálise se investe da ética do desejo. O desejo como já escreveu Freud é a única força capaz de pôr em movimento o sistema psíquico. Diferente da necessidade pois esta tem compromisso com a obrigatoriedade da imposição biológica e social. O desejo cuja gênese na experiência de satisfação e na ação específica ministrada pelo outro, se perde para sempre no caos original. E deste ato mítico de comunicação e inaugural do ponto de vista moral, nesse trans-e onírico entre-dois, neste momento de reverie, se origina e estrutura o humano. O desejo originado dos movimentos pulsionais passa a ser uma realização em eterno processo. Na mesma medida que uma realização é satisfeita carrega dentro de si um quantum de insatisfação, um resíduo que insiste, uma invariante não transformada pela simbolização. Um mais além da função alfa. Esta impossibilidade de realização final, impossibilidade de comunicação e impossibilidade de representação, tal qual a coisa-em-si de Kant, resiste a domesticação. A irredutibilidade da Parte Psicótica da Personalidade. Em torno desta falha, dessa impossibilidade, como um pequeno grão de areia dentro da ostra, se reconstrói a maneira de um Sísifo contemporâneo que carrega a pedra até o cume da motanha para que role a seguir. Sobre este mais além, eterno mais além, a ostra elabora sua pérola.

Ética da Psicanálise é a Ética do sujeito em movimento, em busca da cidadania e da civilidade; se opõe a crueldade e a estreiteza mental e suporta a flexibilidade das idéias e diferenças. Não necessariamente a ver com o certo e o errado.

Se a Ética Ideal é marcada pelo mito de Narciso e o Ideal de Ética pelo mito de Édipo, a ética da psicanálise e de sua transmissão é marcada pelo mito de Antígona porque se trata da narrativa do sujeito que não recua frente ao seu desejo, que mantém intacta a sua convicção ética mesmo quando se depara com uma lei da polis, a lei dos homens e encontra dentro de si atributos éticos com os quais pode questionar e enfrentar o sistema.

Todo sujeito que mergulha num processo analítico toma contato com sua realidade última, todo sujeito que por esta travessia se arvora, emergirá, queira ou não, tangido pela ética do desejo que marcará sua existência para sempre. A lei é a paterna agindo sobre o desejo da mãe, e a lei viabiliza o desejo. O desejo é o trabalho da transformação e do trans, do entre dois, da reverie e da função alfa, é o desejo do Outro, desejo da mãe, é o sonho partilhado da mãe e do bebê, única força capaz de por em movimento o aparelho psíquico. Por essas e por outra, o desejo move o mundo.

Contra a violência do discurso que força a imposição de um sentido, a ética psicanalítica institui o eterno rolar, um constante trabalho sobre as questões sem nunca saturar o significado. Uma busca constante, concepções que geram pré-concepções, um trabalho titânico, um evoluir que não obtura nunca e nunca alcança a paz. A Ética da Psicanálise é a ética do desejo pois a psicanálise assim como o desejo se desloca like a rolling stone.

Agosto/ Setembro 1997

Dr. Júlio César Conte

Médico psicanalista, dramaturgo, diretor de teatro, membro pleno do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre, membro fundador do Instituto W.R. Bion e professor substituto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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