A ARQUITETURA E OS ESPAÇOS MENTAIS
A ARQUITETURA E OS ESPAÇOS MENTAIS
Júlio Conte
In this paper the author links the increasingly larger architectural space to the degrees of mental confinement and contemporary illness like Attention Disorders, Panic Syndrome and other paranoid dysfunctions. The social models adopted to face the growing reduction of the vital space are characterized.
Neste trabalho o autor estabelece uma relação entre os espaços arquitetônicos cada vez menores, com os graus de enclausuramento mental e doenças da contemporaneidade como Distúrbios de Atenção, Síndrome do Pânico e outros estados paranóide. Estabelece os modelos adotados pelo grupo social para lidar com a crescente diminuição do espaço vital.
Depois que a psicanálise tomou contato com o duplo infinito marcado pela imensidão do universo e da mente, o homem contemporâneo teve que lidar com uma quantidade imensa de espaço mentais e virtuais. A possibilidade de encontros sem corpo determinou um novo homem linkado e encharcado de info-bytes e in-formação e de-formações. E este processo determinou uma interessante turbulência no dia-a-dia.
Imaginemos por enquanto o tempo de pensamento do homem do século passado e dos séculos anteriores. Era um homem que tinha tempo para pensar. Era um homem que sonhava. O sonho, do modo como a psicanálise o entende hoje, não é apenas aquele evento mental que ocorre quando se está dormindo. O pensamento onírico é a base do pensamento quer o sujeito esteja dormindo ou esteja acordado. É uma espécie de zona de alta turbulência, análogo ao limiar do caos, onde um número incrível de combinações se processa num período de tempo mínimo. Algumas se perdem, outras são recuperadas para a vida cotidiana, outras servem para deleite estético. E essencialmente este processo onírico, descrito por W.R. Bion como função alfa, (Aprendendo com a Experiência, W.R. Bion, 1962) é o fenômeno mental que determina a existência do inconsciente e o inconsciente. A existência de dois modos de atuação da mente produzem uma espécie de diálogo interno onde o sistema Inconsciente pode ser considerado sob as bases de um processamento rápido, criativo e renovador. Por outro lado, o sistema consciente é responsável pelos fenômenos de memória, atenção e retenção de conhecimento. Enfim todos aqueles quesitos que fazem parte do mundo social. Esta barreira de contato produzida pelo material onírico, faz com que estes sistemas possam trocar informações de modo que o universo conhecido tenha contato com o desconhecido, mantendo assim a curiosidade em ação e a capacidade de aprender com as experiências emocionais que são, em última análise, a capacidade de aprender com o inconsciente. Para que o aprendizado se realize de modo eficaz o material mental tem que ser estocado e armazenado no inconsciente a fim de que possa ser utilizado pelo consciente em novas experiências.
Essa breve introdução, visa situar a psicanálise desde a invenção do inconsciente, a partir do processo onírico, e destacar o esforço para desenhar e lidar com uma arquitetura de mente. Muitas teorias se formaram essa construção imaginária nunca foi uma tarefa muito simples. Rendeu para Freud a criação de duas tópicas. A primeira, mais dinâmica, surge no início da sua obra. Em A Interpretação dos Sonhos (Sigmund Freud, 1900), obra que inaugura a psicanálise como a conhecemos, aparece pela primeira vez a divisão entre Inconsciente, Pré-consciente e o Consciente.
Nesta tópica onde se privilegia o inconsciente, Freud visava dar conta de processos mentais que não apareciam na mente, mas que paradoxalmente, produziam efeitos na vida cotidiana. Assim ele desenvolveu a idéia de lapso, os atos falhos, sonhos, piadas e sintomas. Alguma coisa permanecia subjacente ao pensar e determinava estados mentais e decisões que escapavam ao nosso controle consciente. Esta concepção afirmou os três grandes choques do narcisismo humano. A evolução do homem a partir do macaco, o fim do heliocentrismo e a noção que o nosso pensar consciente é coadjuvantes nos processos mentais. Darwin, Copérnico e Freud compõem assim os algozes do narcisismo nosso de cada dia.
Se a primeira tópica freudiana primava pelo dinamismo, na segunda tópica, apresentada em O Ego e o Id, publicação de 1923, é inteiramente estrutural. A mente foi dividida então em três compartimentos, o Ego, o Superego e o Id. Ou como preferem uma nova nomenclatura o Id, o Eu e o Supereu. Aparentemente esta concepção é bastante visual e baseada em modelos arquitetônicos e carrega em si a idéia de sítios mentais onde processos diversos se realizam. Se por um lado ganha pelo estruturalismo e pela visibilidade, por outro há uma perda importante na dinâmica. E a dinâmica é o essencial do humano pois determina os movimentos do pensar, do sentir e do ser. A mobilidade psíquica, a capacidade de transitar, de suportar o transitório e a plasticidade emocional no enfrentamento das questões da vida.
Num movimento transverso que ao mesmo tempo que acolhe, reforma, W. R. Bion, psicanalista inglês que nasceu na Índia quando esta era colônia inglesa, nos oferece uma concepção de mente espectral. Escapa assim da roupa apertada do estruturalismo criando uma fértil mobilidade. Avança em direção ao movimento e coloca nossos processos mentais como que numa palheta de cores, um gradiente, e com isso desmonta o estruturalismo que durante anos nos enclausurou e deixou impotente qualquer ação terapêutica, pois uma vez manifesta a estrutura, neurose, psicose ou perversão, estamos frente a um quadro estanque. A mente espectral coloca no mesmo cenário todos os elementos que a compõe e estabelece relações dinâmicas entre elas. Elos de ligação que dão sustentáculo para a evolução e ampliação do pensamento. Abre mão das crenças em direção às experiências emocionais, o aprendizado a ser extraído destas, a imaginação e a criatividade.
Os trabalhos psicanalíticos ao longo dos anos sofreram de abstrações e carência de experiência humana. Por isso, nos últimos anos tem se apresentado cada vez mais questões onde a subjetividade entra em cena. Nesta intersecção, então, entre a psicanálise e a arquitetura, quero trazer uma experiência pessoal. Ainda criança, morava no interior, nos arredores de Caxias do Sul. A casa, aqui minha memória pode me trair, era muito grande. Longos corredores, uma cozinha onde cabiam dois fogões sendo um deles a lenha. Uma sala de jantar, uma sala de costura onde minha mãe passava a ferro as roupas usando brasas para aquecê-lo e onde brincávamos quando chovia. Havia ainda uma dupla sala de visitas que nunca era aberta e o misterioso gabinete de meu pai onde ele se trancava para seus assuntos profissionais. Nem precisa dizer que este grande sala era aberta somente em dias de visitas importantes e o gabinete era uma área interditada para as crianças. E tinha ainda uma lavanderia, e um alpendre que era usado para matar os porcos, cozinhar figos em grandes tachos de cobre. A garagem e um pátio com um chiqueiro e um galinheiro. E mais um pomar com cinco grandes árvores de Cáqui e mais ao fundo uma área quase selvagem. Pelo menos para mim, nos meus cinco, seis anos de idade.
Descrevo estes espaços porque uma das questões que quero abordar é a relação dinâmica entre o espaço de vida e a saúde mental. Havia mesmo muito espaço. A relação do sujeito imerso no grupo determina a emergência de supostos básicos que entram na mecânica coletiva sem que o sujeito tome notícias do que está ocorrendo. Bion descreveu três supostos básicos no funcionamento do grupo. O primeiro de Acasalamento na qual o grupo tenta manter relações no sentido de privilegiar o futuro representado pelo filho que irá nascer. É um grupo messiânico, esperançoso, antevê o futuro e crê. O segundo suposto básico, de Dependência, no qual o grupo reverencia o passado e as tradições. É o grupo social que se mantêm em função da história. Sustenta-se sobre um modelo rígido que mantêm a unidade. E um terceiro grupo, o suposto básico de Luta-Fuga, na qual o inimigo é o outro e as soluções coletivas se restringem à destruição do inimigo. O primeiro grupo, Acasalamento, é o representado na cultura pelo modelo civilizatório judaico-cristão. O segundo, Dependência, é o modelo Chinês e Luta-Fuga, o modelo Romano. No primeiro as questões do grupo estão relacionadas como o futuro que se equaciona com a chegada do Salvador; este modelo carrega traços histéricos enquanto que no de Dependência, as questões estão relacionadas com o passado e com a repetição. É um grupo mais obsessivo. E o terceiro, Luta-Fuga, que mais me interessa neste trabalho, é o modelo destrutivo que lida com o presente pela via da agressividade e se torna um grupo paranóico.
Pode-se deduzir pela observação da vida cotidiana que o espaço interfere diretamente no estado emocional dos indivíduos. Nos anos 80 começaram a chegar para nós pesquisas onde se observava população de ratos cada vez maior e mesmo com alimentação para todos, eles começavam a lutar entre si, se devorar e adoecer. Apresentavam perda de pelo, agressividade e insônia. Freud cunhou uma expressão durante o início da primeira grande guerra: narcisismo das pequenas diferenças. Com esta dava conta da dificuldade de lidar com pequenos detalhes nas relações mais intima. A briga entre irmãos já descrita na Bíblia, a discussão entre vizinhos, a rivalidade entre povos e a guerra entre países. Invariavelmente povos irmãos ou próximos iniciavam processos de luta e fuga e desenvolviam um sistema paranóide que dava a ilusão que o processo se resolveria com a destruição do outro. Sempre a proximidade espacial desempenhava um papel central na dramaturgia do conflito.
Quando me mudei para Porto Alegre os quartos da minha casa em Petrópolis era de 20 a 28 metros quadrados. Anos depois quando sai de casa, fui morar num apartamento, antigo, onde os quartos tinham 16 metros quadrados e eu escutava todas a brigas dos meus vizinhos. E eles as minhas. Anos depois, procurava um apartamento para minha família, eu já pai e com filhos e os quartos eram de 12 metros quadrados. Hoje tenho visto de até nove. Há um enclausuramento gradativo. As pessoas ficando cada vez mais em casa e em ambientes cada vez menores.
Olha os ratos aí gente.
Penso que o espaço cada vez mais reduzido às habitações determina um comportamento novo para o homem contemporâneo. Este homem encerrado em pequenos ambientes, com janelas cobertas por edifícios, ambientes úmidos, convive com um mundo encolhido e, ao mesmo tempo, um mundo virtual que dá a impressão de infinito. O isolamento é quebrado pela internet que cria a ilusão de intimidade, mas que, de fato, torna-se um simulacro, produzindo uma narrativa pessoal de aglomerados psíquicos, escombros mentais que caracteriza a falta de barreira de contato, falta de discernimento e uma espécie de pensamento perverso funcionando por trapaça e roubo. Relacionamentos superficiais, masturbatórios, seqüestros de dados pessoais, roubo de identidade. Seriam as maneiras de viver uma vida que não vivemos. Não penso que isso seja a única causa pois a mente é um objeto complexo e isso significa pensar numa múltipla determinação e cada gesto guarda em si um imprevisto e o desconhecido. Mas sem dúvida, este enclausuramento joga um papel fundamental no narcisismo dos nossos pequenos espaços. Em seu ciclo diário, o homem contemporâneo passa de seis a oito horas em seu trabalho. Com isso temos de quatro a seis horas para o resto das atividades. Destas, algumas acontecem em casa. O espaço que ele dispõe neste período, é o quarto e a sala. E a grande janela TV e internet conferem a ilusão de profundidade.
Doenças de moda como síndrome do Pânico, DDA, distúrbios de atenção, doenças psicossomáticas e drogadição tomam lugar das doenças clássicas descritas por Freud. Acrescento ainda uma doença não catalogada que é a Banalização e a Indiferença. Paradoxalmente, este homem-rato, ensimesmado e solitário busca através dos espaços virtual recuperar o espaço perdido das casas e dos pátios de nossa infância. Pagando o preço com dores nas costas de tanto tempo sentados na frente da tela dos computadores nossos de cada dia. Pagando o preço em nossos corpos, nas barrigas crescentes adquiridas pelos sanduíches e cervejas enquanto conversamos com o outro lado do mundo. Que pode ser o meu vizinho, mas que eu nunca vou saber. Ali na tela do orkut, tudo mundo é diferente e mais bonito.
Para finalizar. A casa do interior virou um bar. O sobrado de Petrópolis foi ao chão e sobre seu cadáver se ergueu um grande arranha-céu. Cada quarto deve ter no máximo uns 7 metros quadrados. Mas não podemos reclamar. Pois há uma indeterminação e é impossível saber o que vem antes. Ou a nossa mente encolheu fruto da ambição e da arrogância ou foi a especulação dos espaços sociais que nos empurrou para lugares cada vez menores cuja última morada é uma gaveta no São Miguel e Almas. Ou uma urna funerária quem sabe.
Referências Bibliográficas
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Conte, Júlio . (1997) . Caderno de Bion I. São Paulo, Editora Escuta.
Conte, Júlio . (1999) . Caderno de Bion II. São Paulo, Editora Escuta.
Médico psicanalista, formado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, membro pleno e docente do C.E.P., Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre, membro fundador e docente do Instituto W.R. Bion.
Diretor de teatro formado na Departamento de Arte Dramática da UFRGS, dramaturgo e ator.
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