O TEATRO E O EXERCICIO DA MEDICINA

O teatro e a medicina tiveram o mesmo berço. A cultura grega que engendrou o sentido do trágico e dentro do trágico o homem como podemos reconhecer em sua essencial invariância o que determina que há mais continuidade entre o homem grego e sua relação com trágico e o homem contemporâneo apesar das exuberantes evoluções que a vida moderna e pós-moderna nos faz crer diverso. Aristóteles e Hipócrates para pinçar dois personagens, viveram em períodos de tempo próximo. Um escreveu a poética que, pelo menos o que chegou até nós, lanças as bases do teatro, sua função e sua importância social. Hipócrates pai da medicina, legou o juramento que até hoje serve de modelo ético para a medicina.

Então estamos frente a duas correntes de pensamentos e consequentes realizações que serviram para criar o homem a sua imagem e semelhança. O teatro buscava a imitação do homem, a mimesis e através do sistema trágico preservar a saúde mental da comunidade. Enquanto isso, Hipócrates já lançava as bases do que via marcar a medicina, ou seja a observação acurada e sistemática de um fenômeno, as hipóteses e as possíveis terapêuticas. Pelo teatro ou pela medicina o objetivo era cuidar, a cura. Édipo Rei, peça de Sófocles, visava curar a sociedade ateniense da grande peste da arrogância que tomava conta da cidade estado. Todas as tragédias tem em comum isso, a luta do homem para se equipar com os deuses e essa falha trágica o leva as peripécias até que ele se defronte com o destino, a moira. Ou seja, o homem trágico tem que olhar o destino de frente e os deuses brincam com a vaidade humana.

Neste momento a medicina, sem ressonâncias e exames sofisticados ficava restrito a arte. A ciência ainda não havia entrado em cena. A principio o que une a medicina e o teatro é o aspecto arte que envolve as duas áreas. Se aprende na faculdade de Medicina, eu fui aluno do Dr. Candal, que medicina é uma arte. Certo que há o técnico embutido na arte, mas também é certo que em arte convive os aspectos técnicos. A minha trajetória como artista de teatro se envolve direto com minha formação medica e na sequencia, minha relação como a psicanálise que venho praticando há mais de 25 anos. Por isso, o tema tem especial paladar para mim, pois permite que eu me desenrole aqui frente a vocês falando de duas área da minha mente que convivem em harmonia e ajuda mutua há mais de duas décadas. O teatro emprestou a psicanálise, através de Sófocles, a tragédia, Édipo Rei, embora o título mais correto seja Édipo Tirano. A diferença entre o Tirano e o Rei é de fato grosseira. Enquanto um foi untado pelos deuses e pela descendência, o tirano é fruto da inteligência, da força e da esperteza. Estas três virtudes humanas por excelência. Pois como todos sabem e reconhecem em si mesmo, o homem é um bicho frágil, principalmente nos primeiros anos de existência, nasce prematuro e tem a necessidade de completar seu desenvolvimento fora do corpo materno e demora bastante em adquirir sua autonomia. Exatamente o oposto a outros animais que nascem com as habilidades já estruturadas. Porém a prematuridade, provavelmente devido a desproporção entre o crânio e a pélvis materna, que obrigou o nascimento prematuro tem suas vantagens. E aqui destaco quer prematuro não aquele que nasce antes do nove meses, ou das 40 semanas, mas sim que todos nós somos prematuros. A prematuridade a partir deste principio uma oferece uma perspectiva única na produção humana da vida. O efeito é a diminuição do poder do inato dando lugar ao aprender com a experiência e a experiência é a experiência emocional aprendida no vinculo materno que por sua vez se sustenta num vinculo social de onde se representa o poder paterno, das leis, das regras e dos princípios.

Na intimidade desde vinculo, o pequeno animal homem tem que forjar um sujeito, partindo de um corpo precário, com poucas habilidades e sobreviver num ambiente hostil tendo como único objeto para mediação a mente da mãe como o qual trata de fazer contato precocemente. Neste encontro de mente, a do pequeno animal homem, com uma treinada mulher adulta se produz a poesia que pode ser chamada de homem. É uma invenção de algo que esta mais além do horizonte da carne, em direção a mente e as abstrações. Este universo que pode ser pensado como pré humano em direção ao humano. Uma preconcepção em busca de uma realização. Esta ocorre na medida em que exista uma mãe que sustente esta concepção, e que por trás desta mãe exista um pai que sustente esta mãe, que por trás haja a ideia de um casal criativo, e que por trás deste casal criativo haja e ideia de uma mente criativa que renova a preconcepção assim produzindo uma elipse que retoma ao início. Este movimento que foi pensado pelo psicanalista Wilfred Bion confere a ideia há um realização diária de invenção do humano nas história da humanidade e este, justamente esse, passa a ser o seu caráter essencial. É o poder criador da mente criativa.

Freud teria escrito que independente do caminho que viesse a tomar, sempre um poeta havia passado antes. A imaginação da mãe, o poder criativo do encontro, é semelhante ao trabalho do poeta neste trajeto. E convoca todos aqueles que trabalham com a relação medico paciente a um outro caráter do olhar. Estético sem duvida e ético por excelência. A afirmação de Freud carregava um misto de admiração e ressentimento. Na criação da psicanalise Freud fez um grande esforço para torna-la uma ciência. Compreensão da alma humana teve que buscar status cientifico para se diferenciar de toda a sorte de misticismo religioso ou dogma filosófico, elegeu a ciência como destino final. Em parte obteve êxito e o pensamento psicanalítico entrou na ciência, na cultura, na filosofia e segue produzindo e demandando significados. Porém o fato de lidar com um sistema extremante complexo, a vida humana, o pensamento precisou de imagens mais criativas e metáfora mais abrangentes. A montagem de um sistema de observação apoiado no trágico devolve ao encontro em paciente e analista, ou entre médico e paciente, a intimidade criativa do sujeito frente a arte, do homem frente ao mistério.

O que se sabe, desde Aristóteles, é que a alma não pensa sem fantasia. O domínio do entendimento, do saber e do conhecimento tiveram um desenvolvimento imenso nas ciências e na observação da vida interior e social. A criação do Inconsciente e do mundo dos objetos internos passou a rivalizar com o objetivismo científico e o racionalismo. Kant sustentou que a intuição era essencial para a aquisição do conceito. E o conceito por sua vez sem intuição era uma ideia vazia desprovida de ação e emoção. Quando a partir de W.Bion passamos a entender o objeto psicanalítico, essencial da alma humana, como complexo, então os esforços cientificistas, respeitáveis no empreendimento, tiveram suas abrangências relativizadas e todo ufanismo originado na apreensão da razão teve que se submeter a dinâmicas mais além. Mais além do cientifico está, num forma emblemática, a poesia e apreensão belo. Keats sustentava que a beleza é a verdade e a verdade é bela. A parte poética da personalidade que pode ser desenvolvidas nos seres humanos passa a ser um importante parâmetro para a apreensão da complexidade da alma humana.

A observação clinica, neste sentido, não difere em nada da de um espectador frente a uma obra.

O sistema reducionista dos diagnósticos serve para mostrar uma direção, mas não para encontrar o habitante essencial do sujeito. Pensar a partir de diagnóstico é uma aproximação grosseira da vida, embora real e verdadeira. Não atinge a complexidade exatamente por sua natureza reducionista. A alma humana é bem mais complexa. Bion sustentava que o objeto psicanalítico, ou seja o objeto da psicanálise, carrega dentro de si um espectro narcista e social, que havia uma força em direção a algo que ele chamou de preconcepção dependente de uma realização, e uma incógnita que denominou de M. More, algo mais, algo que escapa. Era uma antecipação da teoria do Caos com seus atratores estranhos e logicas não lineares, e enunciavam assim a complexidade na alma humana.

A perspectiva poética da apreensão do belo, ou do objeto estético, da arte oferece assim os elementos faltantes para a relação essencial entre dois sujeitos numa sala de terapia. Do mesmo modo que sofremos um impacto estético quando estamos frente Guernica ou a obra de Van Gogh, ou lemos um romance, ou vemos uma peça de teatro ou um filme, nos defrontamos com a vida humana de um sujeito que busca ajuda e está usando todos os elementos estéticos que possui para comunicar algo para vc. A apreensão de uma pessoa que busca ajuda é a mesma que nos deparamos quando temos contato com u a obra de arte. Van Gogh provavelmente teve que lidar com as mesmas dificuldades e se expressou com seus quadros. Quando eles não fizeram mais efeito, usou uma arma contra si próprio. É justamente este o paciente que procura um analista, um psiquiatra ou um terapeuta. Podemos vê-lo deste modo, uma obra de arte, alguém tentando desesperadamente comunicar o que sente e que ele é. Ou podemos vê-lo como uma síndrome e trata-lo como tal. Neste caso estaremos sem duvida diminuindo o sofrimento, ao mesmo tempo em que diminuímos a sua capacidade de viver. Pois como afirmou Aristóteles na aurora da civilização, a alma só pensa com fantasia. E a capacidade de sonhar um paciente é imprescindível. Sem ela somos técnicos sem imaginação e neste caso temos muito pouco a oferecer aos nossos pacientes.

Bion sustentou que o sistema mental em sua origem não diferenciava a mente do corpo. E com a evolução do sistema e a complexidade criaram-se instancias diversas. Estas instancias no entanto possuem canais de comunicação muito sutis e microscópicos. E a fantasia produzida pelo efeito de percepções sub clinicas oferecem ao analista, ao espectador, ao observador, indícios sutis de eventos embrionários. A contraparte mental do corpo tem uma contraparte física da mente. E esta ferramenta possui uma repercussão essencial desta forma de pensar a clinica. Implica, obviamente, na observação apoiada na curiosidade e no espanto que em conjunto, oferecem um olhar despojado de preconceitos e de teorias. O resultado pode aparecer na antecipação surgida no âmbito da psicanalise de doenças físicas. E aqui não falo de síndromes psicossomáticas, ou somatopsicoticas apenas, mas sim de uma antecipação da síndrome como se tempos antes da doença se manifestar, num nível intersticial, estímulos provenientes do corpo pudessem ser traduzido pela mente. No entanto, como o tradutor, como todos os tradutores, trai, também o nosso operador esta sujeito a enganos, uma vez que neste caso o operador responsável pela tradução do corpo para a mente é a fantasia.

Comentários

francesco disse…
seu texto é ótimo, mas precisa ser revisado.

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