In-fidelidade a Freud versus Revitalização da Psicanálise.

Trabalho apresentado na Jornada Psicanalítica e Feira do Livro do CEP
Setembro de 2004.

Quando me defrontei com este tema, o primeiro pensamento que me assaltou foi o que é fidelidade? E o que é esse in tracinho fidelidade? Foi um estímulo sutil. Prefixo in produz o negativo, o inverso, significa não. Mas in com um tracinho, pode ser o inverso do inverso. Ou in de interno, insight. Uma armadilha que poderia levar, num exame superficial, a um inverso do interno. Ser fiel a Freud versus uma evolução do pensamento psicanalítico. Obviamente não se trata de contrapor Freud com a evolução do pensamento freudiano. Mas também não se trata de transformar tudo que se criou num freudismo formal. Então a questão me parece bem colocada. Há uma fidelidade interna a Freud que é bem diferente de se manter submetido a Freud. Comissão, com este título, está de parabéns.
Podemos imaginar uma noite em Bellevue. Freud avança na madrugada, escreve, reflete e provavelmente envolto na névoa azulada de um charuto, adormece. Em sua mente realiza um evento, que vinha acontecendo na humanidade desde o início dos tempos: sonha. O homem foi dormir um e acordou outro. Freud extraiu um sentido que acabou sendo um grande passo para a humanidade. Assim, sendo ao mesmo tempo criador e criatura, analisando seus sonhos, criou a psicanálise.
O início da psicanálise se confunde com a análise pessoal de Freud. Fusionando as conseqüências para o indivíduo e para o corpo teórico que se cria neste momento inaugural. Não é fácil pensar sobre isso, pois nos ancoramos sobre pilares frágeis e precários. Temos que fazer uso de imaginações para avançarmos. Especulações, intuições e se deixar envolver por um clima nebuloso. Manoni num trabalho muito interessante fala da análise original de Freud com Fliess e pergunta como sustentar uma identificação com um pensador que transcende a si mesmo, que se subverte, que se re-inventa o todo momento? Freud cria a psicanálise num processo extremamente rico e audacioso na história do pensamento humano, pois com ela arremessa o homem em direção a modernidade. O mundo se transforma com a análise de um sonho e cria o sonho da psicanálise. As custas de um investimento do pensador Freud sobre o paciente Freud. Tem assim que analisar a si mesmo fazendo uso de um artefato que ele mesmo tem que in-ventar. E inventa uma análise original na relação epistolar com Fliess. Qualquer análise é de fato e sempre, uma auto-análise. Porém aqui temos um grande problema, pois uma análise não pode se realizar sem o outro. E nem sem o si mesmo. Freud assim inventa um interlocutor fazendo uso de Fliess e é sem dúvida, uma ajuda precária especialmente em nível de conteúdo. Fliess não tinha de forma alguma elementos teóricos para sustentar a posição do analista, porém tem a seu favor uma experiência emocional apoiada na relação transferencial amorosa e idealizada de Freud. Fliess era o depositário de um saber que Freud supunha que ele tinha. Quando Fliess começa a dar sinais de fracasso, Freud começa a liberta-se da submissão e tem o famoso sonho da injeção de Irma, em Bellevue.
A descoberta da psicanálise é a abertura para um espaço novo e desconhecido para ambos que, envolve o duplo viés da idealização e o seu negativo, a desidealização. Fliess, de um lado do processo sob a ilusão que ele é mesmo o portador de tal saber, fica para trás, enquanto que Freud, no outro pólo, extrai desta experiência a matéria para construir a psicanálise. Essa criação vem de duas vertentes: a experiência emocional do próprio inconsciente somado a uma abstração. Um processo pelo qual Freud percebe que de vivências subjetivas e particulares pode extrair regras e generalizações que servem para entender sua vida e mais a vida de outros. Freud descobre o seu Édipo e depois generaliza para a humanidade.
Neste processo ele se serve de alguns parâmetros originados das circunstancias da época, somado a um “algo a mais”, que marca as personalidades criativas e os gênios e que hoje pode ser pensada a partir da Complexidade. Os gênios lidam com o excesso de variáveis, com meias verdades, com modelos provisórios, para deles extrair esse “algo a mais” do corriqueiro e cotidiano. Assim foi com Sheakespeare, John Milton, Ibsen e muitos outros. Freud tinha a Biologia como Ciência Ideal e sonhava com a Física como Ideal de Ciência. Uma relação ambígua com a Filosofia com a qual se abastecia, mas ao mesmo tempo recusava. O projeto Psicanálise, diferente da filosofia, teria que dar conta de uma prática. E essa clínica teria segundo ele, que se sustentar num campo científico. A ambição científica de Freud o levou muito à frente de seu tempo e possibilitou a criação da psicanálise. E isso aconteceu na medida que ele, foi suficientemente precavido para não se embretar numa ilusão cientificista pura. Freud acreditava na ciência, mas não muito. Não a ponto de perder o senso do observador agudo, do teórico sagaz, e principalmente, não a ponto de permitir que o cientificismo detivesse o seu pensamento e a sua criatividade. Aqui temos um marco importante, pois sustenta a possibilidade de manter valências livres que seguem fertilizando novos pensamentos e fecundando novas idéias.
Esta possibilidade da obra freudiana de se re-inventar, esse caráter de Phoenix, pode ser observado nas sucessivas revisões que Freud faz sobre sua própria obra, suas idas e vindas, seus avanços e retrocessos que nunca são abandonados, mas sim incorporados como novas experiências, como pedaços de futuros. A imensa capacidade criativa de aproveitar as matérias oferecidas e reformá-las sem jogar nada fora, acaba por transformar sua obra numa espécie de banco de células tronco para a psicanálise. Imagino que em muitas de suas cogitações, ele sabia que acessava redes de pensamento que ele não teria tempo para desenvolver, mas que no futuro alguém poderia aproveitar. Isso é uma característica dos pensadores criativos.
Bion veio a chamar isso de elementos alfa. Ou seja, experiências emocionais que podiam ser armazenadas para serem utilizadas em situações futuras. O aprender com a experiência que é aprender com a experiência do próprio inconsciente. Este, o legado de Freud.
Sobre o trajeto freudiano, Bion faz uso de uma metáfora usada por Michel Serres que é a Passagem à Noroeste. O homem pôde atravessar os continentes a pé através do Alasca, sobre um terreno mutável e transitório. A Passagem à Noroeste demarca um caminho que nunca é o mesmo, em constante mutação, obrigando ao caminhante avanços e retrocessos.
Este tipo de experiência acontece em grau maior ou menor em todas as análises. Há um limite no dispositivo analítico, no analista, no analisando e na ferramenta teórica que impede a realização plena da experiência analítica. O analista tem que, ao mesmo tempo manter um grau suficiente de contato e empatia que permita estar junto com o paciente na experiência emocional. Porém, invariavelmente ele terá afastamentos e equívocos, retrocessos e impedimentos que o distancia. A capacidade de pensar desvitaliza-se, se torna inorgânica como areia no corpo de uma ostra. Sobre esta areia na ostra se joga o destino da análise, seu sucesso e sua permanência. Joga-se também o suceder geracional, pois a elaboração pós-análise marca a diferença entre a autonomia e a submissão. O dispositivo analítico avança dessa forma entre o sonho e a pérola.
Foi assim com Freud e Fliess, mas foi também com Melanie Klein e Abraham onde ela teve que lidar com morte real do analista. Aconteceu com Freud e Ferenczi sobre a questão da falta de análise da transferência negativa, artefato teórico que Freud não tinha durante o tratamento. Acontece com Lacan quando fez um acordo Loewstein para receber a autorização e depois abandonou a análise. Pode-se, no entanto, dizer que a verdadeira análise de Lacan teria sido com Aimée e se assim for, temos então uma evidência a mais. Também aconteceu com Bion e Melanie como veremos a seguir.
Bion numa Conferência em Nova Iorque, 1977, fez o seguinte comentário sobre sua análise com Melanie Klein: "penso que ela dava um fluxo contínuo de interpretações. Depois acabei pensando que estas interpretações eram excessivamente coloridas por um desejo de defender a acurácia de suas teorias de tal modo que ela perdeu de vista o fato de que aquilo que se supunha que ela fizesse seria interpretar os fenômenos que se lhe eram apresentados."
Não é difícil de perceber que aqui temos uma evolução do pensamento de Bion em direção a sua idéia do “sem memória, sem desejo, sem necessidade de compreensão”.
Cada uma destas análises teve seus problemas, suas falhas, seus desafios e daí se extraíram avanços teóricos. E cada um, a seu modo, privilegiou algum aspecto: a diferença sexual, a lei, a separação, o corte, a exclusão, o desamparo e a criatividade.
Todos estes pequenos eventos aqui rapidamente listados servem para perceber que sobre os sucessos e as limitações do dispositivo analítico a psicanálise evolui. E também que cada analista e cada analisando tem que lidar com o fardo da transferência. Ou ocorre trabalho psíquico para que areia se torne pérola, haja ganho simbólico com ampliação do mundo interno, da capacidade de produção de pensamento, que se produza um universo em expansão, ou teremos um tumor, um enclausuramento, uma gangrena simbólica, em outras palavras, o fracasso do processo analítico e o nascimento do filho bastardo da análise, a submissão.
A experiência analítica se defronta com um processo que lida com um sistema cujo contido é maior do que o continente. E esta é a marca da criação: um conteúdo que rompe o continente. A característica da psicanálise, desde o início, foi ter que lidar com uma equação cujo número de incógnitas é maior do que as frases matemáticas. A temporalidade se expande para um mais além da lógica linear e um mais além do tempo referencial. O passado tem valor quando vivo, como presente histórico e precisa conter um futuro que não seja uma ilusão. Assim teríamos como extrair sentido do particular para o geral, do subjetivo para o universal, do fato para a abstração, da coisa para o pensamento.
A conseqüência deste pensar é que temos que abandonar um sistema estável, estrutural, para nos atermos aos sistemas instáveis, que seria a passagem do estrutural para o espectral.
Para Freud o Complexo de Édipo se realiza na fase fálica entre três e quatro anos. Para Melanie Klein, o Édipo precoce inicia no limiar da Posição Depressiva. Lacan fala dos três tempos de Édipo, sendo que o primeiro se realiza no momento estável na qual o sujeito é o falo para que, posteriormente este se desloque para a mãe até alcançar a plenitude da instabilidade no terceiro tempo. Para Bion o Édipo é uma pré-concepção, que não deve ser confundida com filogenética. Isso significa que o objeto da psicanálise lida com uma pré-concepção, uma realização que por singular confere o caráter indeterministico da relação, o espectro narcisismo versus social-ismo e mais um fator chamado M, que confere complexidade, “um algo a mais” na experiência: o inesperado, o novo.
Temos diversas evoluções, óticas distintas, para lidar com o desconhecido. O mistério que se expressaria através de uma fórmula matemática que poderia ser a formula da criatividade: 1 + 1 = 3.
Bion, não teve a lingüística a sua disposição, mas a sua intuição o leva estabelecer na mente primitiva os quesitos que vão marcar a sua obra. Partindo de um aparente kleinianismo ortodoxo, sugerido pela nomenclatura, sobrepõe-se uma seqüência de pensamentos radicais. Desde o início, na teoria do pensar, radicaliza a concepção edípica. Abstraindo os vínculo K, L, H, (amor, ódio e conhecimento), e na equação de PC+R=C (pré-concepção + realização = conceito) enfatizam a triangularidade do pensamento, afirmando a filiação freudiana. Desde o início, um mais um é três, e o Édipo insolúvel e interminável remanesce cada um de nós. E nos remete também para um mais além da posição depressiva, pois um sujeito deprimido é um sujeito ávido de criatividade. E que depressão é o lugar onde o seio estava.
São perspectivas múltiplas. Mas quem se atreve a requer a verdadeira herança freudiana? Psicólogos do Ego extraíram um ego com áreas livres de conflito da obra freudiana e foram criticados por Lacan, que criou a fase do espelho, uma nova tópica e o tempo lógico que foi criticado pelo establisment freudiano. Melanie Klein produz um Mundo Interno de objetos parciais marcados criação da identificação projetiva e, denunciando um Superego sádico, e foi amada e odiada. Bion mergulhou na teoria do pensar e posteriormente na Teoria das Transformações para no fim da vida revelar o Bion da Memória do Futuro, buscando contato com a nossa mente primitiva e foi isolado do movimento.
Para concluir, a fidelidade in-trínseca a Freud não me parece essencialmente uma fidelidade de conteúdos, mas sim a “um algo mais” essencial. A identificação com uma personalidade ávida de criatividade, capaz de suportar os avanços, as frustrações e os retrocessos. Um modelo capaz de fazer abstrações a partir do observado. A fidelidade com as descobertas sobre o si mesmo, a valorização da experiência emocional que é aprender com o inconsciente, que é, a rigor, a própria análise.
Hoje infidelidade seria seguir Freud dogmaticamente, e, por outro lado, a maneira de ser fiel é buscar o espírito freudiano que é, em última análise, seguir a si mesmo. Mantendo a filiação, mas não a ponto de perder a perspectiva da observação clínica. Submissamente autônomo. O que constitui o paradoxo e, justamente por isso, o trabalho segue.

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